Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

24.10.20

Dia 221: por Elenir Souza

Um triste desencanto

Estou entre as pessoas que, logo no início do surgimento do vírus, se deu por conta da gravidade da situação. O mantra "fique em casa" ecoou forte aos meus ouvidos.

Tínhamos que nos proteger. Era mesmo tudo muito assustador e deveríamos seguir todas as regras e normas dos protocolos da saúde. Muitos resistiram ao não acreditar na situação epidêmica. Houve dificuldades em aceitar as privações. O amor e o ódio andaram paralelos, apontando para os governantes. 

Dentre as barreiras exigidas e para seguirmos em frente com segurança, o distanciamento social foi o mais sofrido. Não me ressinto de andar mascarada, já acostumei, até procuro combinar a cor da máscara com a roupa que vou usar.

Passamos por um período de transformação e tivemos que repensar nossa trajetória de vida. Eu jamais imaginei passar por tudo o que estamos vivendo. Teve um dia em que me deparei comigo mesma, parecendo fazer uma viagem interna para dentro de mim. Revi tudo o que já tinha vivido até agora. Aí pensei: "Não é à toa que tenho que procurar manter o equilíbrio emocional. Não posso falsear o pé". Sentia, que era pouco o que tinha vivido até agora. Eu queria mais, tantas coisas mais...

Pensei, também, que eu poderia ter conduzido de outra forma minha vida. Meus pensamentos ficavam brigando entre si, tumultuando minha mente já confusa.

Na minha rotina diária gosto de levantar cedo, já entre os primeiros raios do sol. Ouvir os pássaros cantando na minha janela do quarto é um convite para sair da cama. O fato se deve, também, pela saudade que sinto logo ao acordar, dos meus animaizinhos queridos. Tenho dois cachorrinhos da raça cockers, e uma gatinha que é uma gracinha.

A cada manhã, quando sinto o vento soprando leve o frescor da primavera, aliado ao aroma do pó de café que já exala pela casa toda iluminada pelo sol, sinto o quanto "A vida é bela"!

Aqui, claro, lembrei-me do filme de Benígni de 1997. A história do filme, de certa forma, ajuda-nos a refletir sobre pôr em prática nossa capacidade de resiliência, para irmos podendo superar isso tudo.

São cenários diferentes. Bem diferentes. Aqui temos um vírus como inimigo e, no filme, são os humanos contra eles mesmos em plena segunda guerra mundial.

Mesmo assim, mesmo sentindo a beleza da vida, às vezes o torpor toma conta de mim e fico me sentindo inerte. Não foram poucas manhãs que, ao acordar, a primeira coisa que pensava é se era mesmo real o que estávamos vivendo. Fazia uma retrospectiva dos últimos dias e dizia para mim mesma: "Estamos sim vivendo uma experiência dolorosa de vida. Isso é aqui e no mundo todo".

O que tenho a fazer então? Cair em desvalia? Esconder-me por detrás da minha fragilidade e desesperança como se fosse um escudo a me proteger? – Não, não é isso!

Não posso ficar na neutralidade e nem na neurose maníaca da negação. Hoje, a fase mais difícil do isolamento está em arrefecimento. Estamos exaustos da quarentena, mas a pandemia não acabou ainda. Estão ocorrendo flexibilizações e temo pelo risco de termos que nos trancarmos em casa novamente. Tomara que não. Torço para que isso não aconteça aqui como está acontecendo em alguns países europeus.

Com isso tudo, procuro evitar a inatividade, escrevo e leio, leio e escrevo. Vivo refugiada em meus livros. Gosto de escrever sobre tudo o que sinto e penso, se parar posso escorregar com o tédio e a desesperança vindo, então, o desencanto.

Afinal, não posso ficar paralisada frente à vida que segue. Neste tempo triste, não quero a intensificação de meus conflitos. Carrego dentro de mim lembranças salpicadas de nostalgia de um tempo de vida alegre, parecendo vida encantada. Tudo nos leva a crer que a vida pode mesmo ser bela.

1.10.20

Dia 198: por Roselena Colombo

Os sons ao redor 

Que barulho é esse? Será que são aqueles empresários enlouquecidos de novo para abrir tudo? Mas já tá quase tudo aberto. Menos a mente de quem, por ganância ou ignorância, não percebe a merda em que estamos. Estarão eles novamente enrolados na bandeira (agora sei por que nunca fui com a cara da bandeira do Brasil) dentro de seus carrinhos mandando a “pobretagem” ir se infectar? É isso dai. Olho pro Pedrão que uiva fingido de cão selvagem e penso no que fazer – me esguelar xingando, atirar ovos como os vizinhos fizeram da outra vez ou fugir pra debaixo da cama... O som vai aumentando, invade meu parco aparelho auditivo e quando num arroubo atiro-me na sacada para berrar impropérios, escuto sons, palavras que me caem bem aos ouvidos...Outra carreata, outras bandeiras, outras cores – vermelhas e generosas, a plenos pulmões. Passado o fervo, olho para a gaveta do escritório e penso no texto que escrevi em maio, tão cheia de esperança e ao mesmo tempo tão longe dos dias que vieram depois daquelas noites de maio...Gosto de escrever à mão, de rabiscos e erros, da mente exposta no papel...Eis:

“As estantes com livros e postais, os quadros e caixas com fotos, a rede. A saleta toda é um baú de memórias pronto pra ser acessado a qualquer momento, como uma constelação provisória.  O pé direito alto e o ranger do piso – estalos da madeira levemente comida pelos cupins – sinalizam o passar do tempo na casa. A janela e a pequena sacada abrem-se direto para a rua.

Estreito, seu traçado foi desenhado como um braço de rio, serpenteado por moradas outrora indígenas. Essa arquitetura longa e fina a mantém até hoje livre de ruídos e fumaças de ônibus superlotados. A cidade nasceu assim, banhada por águas calmas e caminhos tortuosos. 

Ao abrir a sacada, os sons de gentes e pássaros preenchem a quietude de sua manhã e o sol subverte a geometria dos prédios, invadindo ângulos. Em confinamento, cada detalhe da casa é como se fosse uma extensão de seu corpo. Estreita como a rua, transita nela até seu oásis de plantas ao fundo. Espera o anoitecer. Espera que algo de novo aconteça. 

A lua cheia esparrama sua luz na rua iluminando de um jeito todo especial aquele prédio vizinho, quase centenário. Não havia reparado como ele era bonito com seus detalhes, simples mas com um acabamento da época em que prédios eram assim – baixos e com uma pitada de arte.  

De repente, outros sons. Desafinados e com ritmos diversos, aumentam paulatinamente até engolir a rua como uma sinfonia anárquica.  Chegara a hora de se juntar ao cortejo. Estavam ali seus instrumentos. Esticou os braços e alcançou a colher de pau e a panela velha, escolhida a dedo. Não estava sozinha.”