25.4.20

Dia 39: por Sara Albuquerque

(diário incompleto como esses dias também parecem ser)


“o coro”, “o coro na”, “o coro na janela”, o verso-zigoto em loop durante minhas delicadíssimas três horas de descanso, levantei-me com dor de cabeça, assim como nos últimos dias. Notívago, Gabriel deitara há pouco, entrou por debaixo da coberta e me enlaçou pelas costas, dessa vez eu acordei. Para fugir do limbo, basta o tropeço, o poema não me deixava dormir.


Entramos juntos em quarentena, dezessete de março, eu, Gabriel e a poesia. Desde então, só vamos até a entrada do prédio buscar tele-entrega. Nesse meio tempo, pelos cômodos, transitei entre o otimismo surrealista e o desespero romântico. Estacionei no realismo: se não sou da área da saúde, hoje, manter a distância social é um ato solidário, não é? Para além disso, são tantas as formas de contribuir sem pôr os pés na rua. Não pensei que coubesse dentro de mim tanta raiva como a que eu senti no domingo passado diante da imagem daquele aglomerado eufórico pedindo retorno à ditadura. 


spoiler


poupemos a pauta
por favor, poupemos
sobre passeata de antas não se têm pistas
sobre passeata de antas em antro de sucuris, tampouco
— animais têm instinto de sobrevivência


na passeata de ontem, Bandeira,
o bicho asséptico cuja gravata você não viu
era um homem que engole antas com voracidade


Pelos sonos truncados, fui eu quem pedi a Gabriel que, se ele também quisesse, encostasse em minha pele quando fosse deitar, seria o nosso “boa noite”, confio na memória orgânica. Não precisaria muito, o contato entre nossos pés bastaria, ambos dormimos largos e largados. Mas Gabriel, na maioria das vezes, prefere me abraçar inteira e depois comenta que geralmente relaxo um sorriso nos lábios, às vezes até sussurro, nunca lembro. Colocar-me na horizontal com outro ser humano me posiciona numa vulnerabilidade enorme (e vice-e-versa), a confiança é recíproca. Permanecemos grudados por pouco tempo, há coluna que aguente? São duas discopatias na dorsal e se meus ossos se comprimem, o sintoma é o grito. Mas o tato, ainda que curto, é suficiente para saber que estamos ali compartilhando dos efeitos da oxitocina. Por mais de um ano, a ponte aérea nos encurtou a distância dos encontros olhos-nos-olhos, eu, em Maceió; ele, já aqui em porto bonito. Fazia apenas dois meses da mudança para cá quando redescobri o significado de pandemia.

Subi a tela do computador, está ligado há dias.


o coro na
janela de quem cabelos brancos
o coro na
janela de quem crônicas
o coro na
janela de quem sem leito
o coro na
janela de quem paga as contas
o coro na
janela de quem veste o jaleco
o coro na
janela de quem reveste a cova
o coro na
janela de quem conta os corpos
o coro na
janela de quem carrega os dados
                                    as compras
                                       os dardos
                                           os lixos
                                 — ACABOU


Repetiu-se até virar hashtag, #sepuderfiqueemcasa

Pelos técnicos da saúde, fomos incentivados a neutralizar o superego (os que o têm): se quiserem nos ajudar no enfrentamento da pandemia, acomodem-se literalmente no privilégio de, um, ter um lugar confortável para morar; e, dois, continuar trabalhando na segurança da sua casa sem prejuízo de nenhuma das partes envolvidas, apenas processo de readaptação. Fazia apenas um mês da minha chegada naquela instituição, mas, por causa do ascendente em capricórnio, já tinha feito um Manual com todo o passo-a-passo das minhas atribuições, motivada pela ansiedade sim, mas mais que isso: quem passa por um esgotamento aos vinte e oito anos, lembra-se bem que outrora já esqueceu a data de aniversário, a senha do e-mail, onde estava, de repente, o branco, a despersonalização, a pressão alta, os derrames: a casca me denunciando: você está exausta — estafa, burnout, tudo a mesma coisa. Desde o início do tratamento, saio colando post its pelas paredes, quem convive comigo acha uma graça, me chamam de fofa, embora não seja fofo o motivo que me levou a escrever aqueles lembretes para mim mesma.

Foi assim que vim parar nessa cidade (onde já havia morado por dois anos num passado recente): o novo trabalho me ajudaria na recuperação também, novas metas, novos riscos, novos ambientes e uma nova eu, em busca de equilíbrio.


alinhamento:
mentes  para
lelas  lavram 
melhor as m
ãos depois q
ue o trem tor
na a correr a
pesar de nós
humanos sob
re os tri lh os

“acórdão haitiano” seria o título do poema. Pensei em fazer café, mas o auto-recadinho na geladeira dizia: “evite café, troque por chá”, ao lado, Gabriel acrescentou Porchat. Fiz de alecrim: minha amiga Taiane jura que alecrim é o que há nesse mundo, tenho pensado tanto nela, e também na Harini, no Jorjão, no Mateus, no Gui, na Fátima, nas Gabis, no Ravi, na Fabi, no Davi, na Júlia, na Moema, na Stefanie, na Andrezza, na Cacá, na Lisley, na Fernanda, na Diva, na Mari, no Bakker, no Gentil, no Buga, no Sérgio, no Magno, no Nilton, no Lucas, no Richard, na María Elena, no Fred, na Ângela, no Pietro, são tantas as saudades, às vezes, dou um jeito de fazê-los saber o quanto os amo e gostaria de dividir com eles aquela xícara quentinha (ou uma boa dose de catuaba, não dispenso), apesar de hoje, especificamente, estar calor.

O caos na televisão.


    desmascarado
    o gado expõe o couro
    na varanda em círculos
    a corte congestionada cumpre a etiqueta
    álcool-gel no cu
    o coro
    na rua na chuva na fazenda
    ou numa casinha de sapê
    — EM 2022 RETICÊNCIAS


A jornalista diz que tem um sol para cada pessoa neste sábado, na maior parte do estado gaúcho, mas os moradores devem ficar em casa para conter a disseminação do vírus. Pela janela, a avenida se deita esparramada, sessenta quilômetros, o limite máximo, consigo ler a tinta branca da sinalização agora que o asfalto tem pouca movimentação de carros, mesmo daqui do décimo terceiro andar.

Alguns vizinhos passeiam com seus cachorros, fiquem em casa — a moça da propaganda reforça; um senhor monta uma churrasqueira na pracinha, fiquem em casa, todo mundo tem dito, só abrir as redes sociais.


(Estou com medo, sim, no fundo, estou apavorada, mas, ao me narrar a história de que o isolamento não precisa ser uma prisão da subjetividade, mas sim bom senso e generosidade consigo e com o outro, que o foco é reduzir o número de mortes, me quero longe de ser uma bomba-relógio pro mundo, é assim que me convenço a ficar um tico melhor, o realismo azul clarinho)


Na reunião do trabalho, meu chefe foi assertivo: “o que tu ainda faz aqui, guria?”, o D.O.U. me obrigava a voltar para casa — o suprassumo do privilégio social — e se, numa democracia, o Diário Oficial da União manda, a servidora pública obedece. Até ontem, vinte e quatro de abril, os atos ali publicados tinham pressuposto de legitimidade. Até ontem, pelo menos, quando o circo pegou fogo e o palhaço deu sinal, acuda, acuda, acuda a bandeira nacional.


a.tu.a.ção

um sete
com firma
— nódoa


Do dia pra noite, passei de novata para grupo de risco, mais um para a anamnese, mesmo que depois tenha ficado evidente que nenhum de nós está livre de impacto, frise-se “Nenhum de Nós”, além de ser a banda porto-alegrense que nos lembra: o tolo teme a noite e como a noite vai temer o fogo, significa que ninguém está fora do alvo, inclusive atletas ou “atletas”. Corpo é labirinto sui generis.


(decidi não fazer faxina hoje, talvez amanhã eu não faça também)


cantemos

Morei numa Casa
muito engraçada
não tinha plano mas tinha vaga
ninguém podia falar nada não
porque o dono tinha um tresoitão
e quatro filhos no videogame
que de bobeira divulgam fake
ninguém podia sequer tossir
— humildemente se reprimir
mas era feita por convicção
na rua dos brocos
verde-amarelos

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