5.5.20

Dia 49: por Cris Beck

No dia seguinte, ninguém morreu. Assim começa o livro Intermitências da Morte, do José Saramago, não vou fazer sinopse, leia nesta quarentena se você não leu. E assim eu gostaria de encerrar este texto ou crônica das mil mortes anunciadas. Desde que perdi a noção do tempo já se passaram várias semanas, mas volta e meia tenho dúvidas quanto a isso. Às vezes suspeito que o movimento diário do sol faça parte de um grande cenário como no filme A vida de Truman. Os dias e noites se repetem em um eterno looping do qual parece não ser mais possível sair. Todo dia é o dia da marmota. Talvez eu esteja sofrendo da febre da cabana, alucinações que costumam atormentar pessoas atormentadas que passam longos períodos em isolamento. Você já viu O Iluminado? Claro que viu, que pergunta idiota. Febre da cabana. Mas no dia seguinte, ninguém morreu. Não lembro a última vez que saí de casa, é possível que tenha sido semana passada, ou no mês passado, ou na Idade Média. Eu, que nunca gostei de trabalhar, agora sinto falta da rotina. Pelo risco do contágio, estou pedindo tudo por tele entrega, inclusive dezenas de máscaras dos mais diversos modelos (tem umas meio bizarras com coronas estampados, já viram?), que não uso por medo de sair na rua. Meus dois gatos já passaram da fase inicial do estranhamento e entraram em depressão profunda, provavelmente imaginando que nunca mais terão paz e privacidade em seu próprio lar. O mordomo e zelador agora faz parte da família. Porém, no dia seguinte, ninguém morreu. Gosto das estórias de distopia, mas confesso que gostava mais quando eram apenas obras geniais de Huxley e Orwell e moravam na minha estante de lives, digo, de livros, e não a pauta diária do Jornal Nacional. Eu estou entre os que contou as horas para o fim de 19, e caí direitinho no conto do “2020 será um grande ano”. Vai ser mesmo: fiquei sabendo que a Globo vai lançar uma série de 18 temporadas com a retrospectiva 2020, isso se não houver impeachment. Também tenho assistido com entusiasmo as reprises: novelas, séries, partidas de futebol. Se o isolamento ainda durar muito tempo, em breve veremos as caravelas do Cabral desembarcando no litoral brasileiro antes do programa do Faustão. Às vezes acho que a qualquer momento o Bial vai aparecer na tela da minha TV dizendo que com 188% dos votos eu fui eliminado e finalmente posso sair (sem máscara) e abraçar minha família e meus amigos. Eu sou antigo, do tempo do Bial. Febre da cabana. Assistindo aos noticiários em breaking news desde a última era glacial (se tudo é urgente, nada é urgente), lembro das palavras proféticas do profeta Renato Russo:

“Vamos comemorar como idiotas/
Os mortos por falta de hospitais/
Vamos celebrar o horror de tudo isso/
Com festa, velório e caixão”

(velório de 10 minutos, por favor)

ATENÇÃO - PODE CONTER FINAL REDENTOR: Mas sigo percorrendo os versos do poeta que por fim me diz que vai chegar a primavera, que nosso futuro recomeça, e (dizem os mais otimistas) que o que vem é perfeição. Talvez, para isso, basta sabermos que no dia seguinte, ninguém morreu.

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