6.5.20

Dia 50: por Maria Williane

Semana passada eu tava escovando os dentes no meio da aula, ainda de estômago vazio. Hoje acordei mais cedo e deu tempo de preparar algo pra comer. Ovos na frigideira, massa de tapioca jogada por cima – com menos cuidado que vontade –, café. Banana com mel. “Flor de laranjeira e jabuticabeira, é o que mais tem lá no sítio, as abelhas amam”, disse a vizinha do 303 e de repente eu me vi comprando mel pela imagem que ela me deu, abelhas que amam, flores. Shut up and take my money. Ando ainda mais suscetível à poesia. Super trunfo: o mel é mesmo muito bom, valeu o sabor da imagem, a grana e o desejo.

Casaquinho matinal, blusão back to the future, calça de moletom e, nos pés, pantufas de lobo. São patas enormes pra se levar a sério. Assisto à aula do Assis Brasil e me pergunto o que ele acharia desse visual de outono com o máximo de conforto e o mínimo de elegância. Aulas via Zoom são cada vez mais absurdas pra mim. Nesses dias de isolamento, ando escrevendo pouca prosa, deixando muito texto sem desfecho e sem partida também, por isso acabei entrando em débito nas disciplinas da faculdade. “Paciência!” – eu me prometo, mesmo que não cumpra.

Quando tudo isso tiver fim, quero me mudar. Ontem o síndico chileno, do 203 (que é mesmo chileno, apesar de morar aqui há uns 40 anos), e a vizinha Arigatô, do 201 (uma senhora com seus 70 anos em média, sulista o suficiente, mas que morou no Japão por muitos anos e agora cumprimenta todo mundo com “Arigatô”, querendo dizer “até logo” mais do que “obrigada”), me chamaram do térreo. Apareci na janela e vieram pedindo a vaga de garagem emprestada por dois ou três dias, pro filho da senhora Arigatô que deve chegar por aí no final de semana. “Ela tá de mudança pra São Paulo, tentando alugar o apartamento e ele vem ajudar...”, “tu quer alugar meu apartamento?”, ela interrompe, tentando a sorte. Nunca fiz questão por essa vaga. Mas, e o coronavírus?

O fato da vizinha que mora bem ao meu lado, com a porta a menos de um metro da minha ter atravessado o corredor para ir falar com o síndico sobre a minha vaga de garagem ilustra bastante como são as relações pessoais por aqui. A vizinha do 303 também só conheci quando apareceu na porta pra me vender mel, mas é uma comerciante simpática – agora ela tá tentando me vender pudins. Espero outra sentença bonita pra me convencer.

Dali a pouco, o síndico chileno solta “Maria, essa é só pra brincar contigo: eu sou o síndico desse prédio e se eu te pego batendo panela tu ganha uma notificação, hein?”. Eu já suspeitava que tinha muitos vizinhos bolsominions, mas a cordialidade sempre foi mais forte aqui no prédio. São 9 apartamentos, nem todos ocupados, e as pessoas trocam cumprimentos amenos, falam do tempo ou nem falam, apenas um aceno de cabeça (mesmo antes do vírus), parece que tá todo mundo fazendo de tudo pra não se encontrar. (Eu também). Cada um vive sua vida como se não escutássemos uns aos outros o tempo inteiro, dividindo o som das flatulências diáfanas que atravessam as paredes finíssimas sem poupar vexames (eu sei, essa frase é ridícula, mas vou deixar aqui pra rimar com a temática), ou as vozes de TV nos corredores.

Aliás, a acústica é mesmo horrível. Todo dia escuto a vizinha Arigatô abrir torneiras, conversar banalidades com alguém (pelo telefone, eu suponho), receber semanalmente a filha e um Lulu da Pomerânia que ela chama de neto e diz que ama e faz a maior festa na porta de casa. Todo dia também escuto o vizinho do 302 bater o pé no chão ou socar alguma superfície, gritando “puta que pariu, caralho, porra” três vezes, enquanto joga videogame e conversa com alguém usando fones de ouvido – isso eu concluí junto com o Isaac, que mora comigo, pela repetição, sempre de noite, e pelo monólogo estranho que é mesmo um diálogo com falas ausentes. Ainda não descobri o que ele joga, mas deve ser algo bem hétero-másculo-fodão (metendo tiro, porrada e bomba em alguém), como a moto bem hétero-máscula-fodona que ele tem na garagem e sempre me faz pensar que deve dar uma dor de coluna terrível. Ele é novo no prédio. É policial também. Risos. Tenho uma fraca esperança de que a brutalidade seja só no videogame. Isaac, por exemplo, joga Far Cry e usa a violência que experimenta em todas as versões pra escrever artigos que falam sobre a relação entre fascismo e liberalismo e depois submete à publicação em revistas A2 ou B1 – invejo muito essa produção, inclusive; até ontem eu nem jogava videogame e já tô cheia de entregas atrasadas na faculdade. Ele bate a almofada contra o sofá se não derruba os helicópteros que precisa, ou diz “fuck fuck fuck fuck, a talkin’ pussy that says fuck”, bem rápido, gesticulando com uma das mãos. A vizinha do 402 escuta todas as lives sertanejas. Antes do isolamento ela dava algumas festas de arromba que enchiam o prédio de nascidos nos anos 2000. Da última vez foi um aniversário.

Não sei se todo apartamento é assim, é a primeira vez que moro em um lugar que não tem jeito de casa. “Bato panela sim, não aguento mais nem olhar pra cara daquele escroto que chamam de presidente”. Lá embaixo eles riem ou se assombram ou ficam sem graça, e “tu estudou em escola pública?”, a vizinha Arigatô que, antes, disse ter estudado na PUCRS, formado em história e trabalhado muito tempo como professora na área, me pergunta. “Sim, formei em uma universidade pública”. “Ah, por isso é Lulista”. E saiu. “Sou da terra do Lula também”, fiz questão de dizer, imitando a lógica errante dos dois. Subindo as escadas, eles riam e se espantavam com a vizinha baderneira que sou. Ainda escutei ela confessar “sabe o que é que mais me indigna do Lula? É o fato de ele ter tido uma amante!”. Chiiiild. Olhei pro Isaac e só conseguimos dividir caretas de “que merda foi essa?”. “E roubou”, completou o síndico chileno. Então “adiós”, “Arigatô”. Eu ainda tô presa na informação “professora de história”. Vou seguir batendo panela – ou dando play naquele áudio que poupa minhas frigideiras (obrigada, Julia!).

Fico pensando que faltou terapia pra salvar o Brasil do bolsonarismo, algumas sessões e as pessoas seriam melhores, mais sãs, menos suscetíveis ao umbiguismo. Faltou educação também, sempre faltou educação, e respeito, empatia. Falta muita coisa, né? Quando tudo isso tiver fim, quero me mudar. Meu apartamento não pega sol, há apenas um pedaço pequeno de céu que alcanço com a vista das janelas, muitos telhados e o tempo é sempre atrasado. Se hoje faz um frio intenso, só vou sentir na mesma medida duas horas depois, quando já nem estiver tão frio assim. Procuro os defeitos pra me convencer a sair da zona de conforto que me segurou aqui nesses dois anos e meio. Mudança dá um trabalho danado, mas às vezes é bom, necessário, “não acomodar com o que incomoda”. E parece uma casa anfíbia.

Uma casa anfíbia era a imagem que me faltava pra terminar um conto, acabo de me dar conta! Apreciem minha epifania, mesmo que em retrocesso.

Ao lado do prédio, tem uma casa em sanduíche (porque em seguida tem outro prédio), que é mais ou menos minha paisagem principal desde as janelas do quarto e da sala. Sempre que amarro as cortinas, vejo uma senhora assistindo TV, bordando ou tomando coca-cola (a garrafa também fica à vista, na mesa, junto com um calendário da caixa econômica federal). O Isaac começou a chamá-la de “Dona Fátima” e todo dia nos perguntamos como deve ser a vida dessa mulher, o que ela deve assistir e se é seguro tomar tanta coca-cola nessa idade. Mas Dona Fátima parece bem. Hoje ela só abriu a janela e sumiu de vista. Pode ser que esteja no quarto, tá um friozinho. Dona Fátima certamente não tem esse nome, mas é uma senhora idosa, negra, de óculos, que adora usar sua cadeira de balanço.

Sobrou batata doce do jantar. Cortei em rodelas e passei na manteiga pra servir junto com as lentilhas que Isaac preparou há um par de dias, arroz com brócolis e carne (na verdade eu comi calabresa). Foi com a quarentena que criamos a tradição de assistir Will & Grace no almoço. Morremos de rir e ficamos o episódio todo discutindo quem é quem. Hoje Isaac era o Will, comendo cereal colorido que deve ser feito de açúcar + corante + câncer em pó, e eu era a Grace, pedindo opinião sobre a roupa pra um evento importante e pouco satisfeita com as respostas rasas do meu amigo que entende de moda mais do que eu e não se esforça pra me ajudar. Antes de ontem eu era o Will falando pra Grace que ela não precisava levar uma bolsa de lantejoulas pra um fim de semana no meio do nada. Mas minha personagem favorita é a Karen Walker, começo a rir assim que ela entra em cena serrando as unhas.

O Lulu da Pomerânia acabou de chegar na vizinha Arigatô.

Abro o calendário pra checar há quanto tempo estou em isolamento. Desde o dia 15 de março, saindo apenas duas vezes: banco; mercado. Já faz 84 anos 53 dias que estamos nesse exílio ao avesso por aqui. Da última vez que contei, o número foi 45. Perdi o dia com ondas de pânico e palpitações de desespero, me deixei levar por uma sensação claustrofóbica e pelos números: dias, doentes, mortos, quilômetros até minha família. Às vezes é mais saudável não falar sobre a pandemia, acho que não estamos prontos. Talvez acreditar nisso também seja um sinal de saúde.

Uma vez eu disse pra Natalia Polesso, no meio de uma aula na UFRGS, que eu pensava em perguntas pra escrever: “O que é a ruína?”, por exemplo. Ela riu. concordou, mas riu da pergunta, desaforadíssima (um beijo, Natalia!). O que eu não sabia era que estava enterrando minha paz. Agora vejo a ruína em toda parte, no corpo, na Língua, no texto literário, na arquitetura, na arte, na comida, na vida. Com o isolamento tenho pensado muito mais sobre isso. É o exílio ao avesso, somos empurrados pra dentro em troca de sobrevivência, quando tá todo mundo acostumado a olhar pra fora, a sentir pra fora. Por dentro é o caos. Toda ruína é um limite inexpressivo entre o que vive e o que morre, entre o que se inventa também. Toda ruína é memória. Ainda é fim de tarde, eu paro por aqui. Os dias não se desamarram mais.

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