Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

1.10.20

Dia 198: por Roselena Colombo

Os sons ao redor 

Que barulho é esse? Será que são aqueles empresários enlouquecidos de novo para abrir tudo? Mas já tá quase tudo aberto. Menos a mente de quem, por ganância ou ignorância, não percebe a merda em que estamos. Estarão eles novamente enrolados na bandeira (agora sei por que nunca fui com a cara da bandeira do Brasil) dentro de seus carrinhos mandando a “pobretagem” ir se infectar? É isso dai. Olho pro Pedrão que uiva fingido de cão selvagem e penso no que fazer – me esguelar xingando, atirar ovos como os vizinhos fizeram da outra vez ou fugir pra debaixo da cama... O som vai aumentando, invade meu parco aparelho auditivo e quando num arroubo atiro-me na sacada para berrar impropérios, escuto sons, palavras que me caem bem aos ouvidos...Outra carreata, outras bandeiras, outras cores – vermelhas e generosas, a plenos pulmões. Passado o fervo, olho para a gaveta do escritório e penso no texto que escrevi em maio, tão cheia de esperança e ao mesmo tempo tão longe dos dias que vieram depois daquelas noites de maio...Gosto de escrever à mão, de rabiscos e erros, da mente exposta no papel...Eis:

“As estantes com livros e postais, os quadros e caixas com fotos, a rede. A saleta toda é um baú de memórias pronto pra ser acessado a qualquer momento, como uma constelação provisória.  O pé direito alto e o ranger do piso – estalos da madeira levemente comida pelos cupins – sinalizam o passar do tempo na casa. A janela e a pequena sacada abrem-se direto para a rua.

Estreito, seu traçado foi desenhado como um braço de rio, serpenteado por moradas outrora indígenas. Essa arquitetura longa e fina a mantém até hoje livre de ruídos e fumaças de ônibus superlotados. A cidade nasceu assim, banhada por águas calmas e caminhos tortuosos. 

Ao abrir a sacada, os sons de gentes e pássaros preenchem a quietude de sua manhã e o sol subverte a geometria dos prédios, invadindo ângulos. Em confinamento, cada detalhe da casa é como se fosse uma extensão de seu corpo. Estreita como a rua, transita nela até seu oásis de plantas ao fundo. Espera o anoitecer. Espera que algo de novo aconteça. 

A lua cheia esparrama sua luz na rua iluminando de um jeito todo especial aquele prédio vizinho, quase centenário. Não havia reparado como ele era bonito com seus detalhes, simples mas com um acabamento da época em que prédios eram assim – baixos e com uma pitada de arte.  

De repente, outros sons. Desafinados e com ritmos diversos, aumentam paulatinamente até engolir a rua como uma sinfonia anárquica.  Chegara a hora de se juntar ao cortejo. Estavam ali seus instrumentos. Esticou os braços e alcançou a colher de pau e a panela velha, escolhida a dedo. Não estava sozinha.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário