Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

31.5.20

Dia 75: por Juliane Vicente

Já são 87 dias em casa. Quase noventa dias de promessas não cumpridas e falta de ar. O corpo acostumado à dança sente em cada nova dobra as consequências de estar parado. As juntas enferrujam, subir a lomba para ir ao mercado causa arritmia e a posterior consternação que termina em dor de cabeça, com o pensamento involuntário: será que isso é um sintoma?

Tenho inveja daqueles que precisam acessar o calendário para ver em que dia estamos, habitantes que orbitam em seus planetas particulares vivendo seus infernos próprios. A Universidade cobra e já são mais de dois meses conseguindo escrever apenas sobre a pandemia e seus desdobramentos. Talvez eu consiga entender agora o cerne de narrativa de escritores que conseguiam escrever apenas sobre aquilo que viveram - enclausurados na realidade que só se liberta no papel. O som do despertador anuncia a aula, a reunião da semana e o encontro com o orientador. Horários simbólicos de um tempo sem nome, turnos que se atropelam em dias e noites, horários trocados de quem está acordada antes que o Sol insista em invadir a janela do quarto.

Eu queria falar sobre tanta coisa, especialmente sobre os casos de racismo que têm sido noticiados nos últimos dias e como eles desvelam problemas tão emergentes quanto a pandemia. Do menino João que foi assassinado pela polícia, das manifestações de #blacklivesmatter nos Estados Unidos, mas não dá.

Um amigo fez uma enquete  pra escolher o nome da planta que ele adquiriu pra cuidar durante a quarentena. Um conhecido policial utilizou o argumento "nem todo o policial".  No grupo de escritores, os colegas de profissão trataram a questão lembrando que "o racismo lá é pior".

Simplesmente não dá.

A pandemia só revela chagas abertas há séculos que se tornam menos importantes no passar de dedos na tela para a próxima notícia do momento.

É preciso se exercitar, arrumar a casa, adquirir novos hobbies, postar hashtags pra ajudar movimentos, não esquecer de disseminar o quanto se é contra injustiças e crimes.

Nesse enclausuramento forçado tudo que eu queria era ir pra rua pra quebrar tudo. Quero gritar.

Eu não consigo respirar.

Do lado de fora da bolha tem gente morrendo.

O mundo virou uma live.

E eu estou cansada de assisti-la.

30.5.20

Dia 74: por Aurora

Dia nem sei mais qual do isolamento.
Dia nem sei mais qual de desespero generalizado em ruas, salas de estar, cozinhas, mercados.
Dia nem sei mais qual de pura infelicidade e desespero interno - às vezes transborda e se torna externo.

Não apenas dói ver muita gente morrendo ao redor do mundo, e o resto assistindo, sem esperança do que fazer.
Mas dói ver pessoas próximas morrendo.
Pessoas próximas que não terão velórios ou funerais, pois é proibido o contato. 

Não é o pior, mas é ruim ficar trancado dentro de casa, com pensamentos que bloqueiam todo e qualquer estímulo de perseverança e alegria. É ruim ter de voltar a um lugar no qual não se sente segura em nenhum tempo. É ruim não conseguir dormir mais do que duas horas por noite. É ruim chorar de 6 a 8 vezes por dia.
Quem diria que meu olho direito lacrimeja mais do que o esquerdo? 

Mexo no cabelo, gravo aulas particulares para minhas alunas, envio meus manuscritos infantis para o trabalho - que agora não mais parecem fazer sentido, histórias com finais felizes em meio à histeria -, corrijo os textos dos quais fui solicitada, limpo a casa - afinal, é o que uma boa menina faz - e tento sorrir. 
Mais da metade faço por obrigação.
O resto faço porque preciso me distrair. 

Já é o décimo dia que minha avó e minha oma vêm visitar. Então é o décimo dia que sou obrigada a me ajoelhar no tapete da sala, rezar o terço inteiro, e em seguida, fazer uma reflexão bíblica com direito a queimação de uma folha de sálvia. Sabe-se lá para quê, mas minha avó diz que funciona. Então contenho a vontade de revirar os olhos e apenas a ajudo. Neste dia também comecei a pedir para Deus que ele tire da minha memória as coisas que aconteceram com meu corpo. Comecei a rezar incansavelmente, para que o passado se altere, e que nada daquilo tenha acontecido – e que não continue ameaçando acontecer. Troquei as “Ave Marias” por “Por favor, Deus, faça com que os dedos do passado não me segurem mais”. Troquei o “Pai Nosso” por “Eu imploro, tire toda a sujeira dos lugares que eu gostaria que estivessem limpos.”

Os pelos das coxas se eriçam todas as vezes que alguém entra pela porta, quando alguém me diz "boa noite", quando meu irmão tosse e eu fico no quarto com ele, para que consiga vê-lo respirar, e me certificar de que nada de ruim irá acontecer com ele. E os sinto cada vez que lembro que minha própria psicóloga interrompeu o tratamento, pois não é saudável continuar nestas condições.

Arrepiam os braços toda vez que a TV é ligada, que minha avó vem de uma caminhada na rua como se nada estivesse acontecendo; me arrepia toda vez que minha mãe me olha com cara de escárnio, e que meu pai grita para eu parar de ficar com rosto de choro, porque o mesmo incomoda as pessoas. 

Quando era pequena, me explicaram que quando você sente um arrepio, era porque um anjo passou perto. Todos eles devem estar dentro desta casa, então.

É o 12° dia que faço bolos, e que olho cuidadosamente a sopa batida no liquidificador para meu irmão comer. 

É o 11° dia consecutivo que não consigo parar de pensar em ganhar dinheiro de todas as formas e sair daqui.

É o 10° dia que começo a acreditar que realmente sou inútil como eles dizem.

É o 9° dia que tomo banho duas vezes ao dia para parar de me sentir suja. 

É o 8° dia que passo maquiagem todos os dias para esconder as olheiras.

É o 7° dia que tento focar em algo a mais do que olhar para as paredes e contar quantas tábuas tem no chão.

É o 6° dia que pego escondida a chave da porta do meu quarto e a tranco à noite.

É o 5° dia que paro de prestar atenção sobre como preciso casar logo.

É o 4° dia que paro de ouvir músicas, porque elas me remetem a algo que amo fazer, e que não posso e nem consigo.

É o 3° dia que planejo sair daqui, porque consegui dinheiro.

É o 2° dia que paro de rezar o terço, de conviver com a desculpa de que tenho aula, que tento manter minha sanidade mental o mais intacta possível para conseguir voltar.

É o 1° que escrevo sobre isso.

29.5.20

Dia 73: por Camila Ferreira

Olá, me chamo Camila, possuo 31 anos, sou advogada e estou em distanciamento social desde o dia dezessete de março de dois mil e vinte. A Julia me convidou para participar deste lindo projeto bem no dia do meu aniversário, que foi nesta segunda-feira. Aliás, foi o único dia, desde que entrei em “quarentena”, que esqueci um pouco desta loucura que estamos vivendo, pois, felizmente recebi tanto carinho (ainda que à distância) e ganhei tantos mimos (deixados na minha portaria) que os parabéns, cantado via zoom por muitos amigos, pareceram como se fossem cantados ao vivo e a cores.

Pois bem. Moro eu e minha yorkshire de dois anos de idade, a qual me tira completamente do tédio e ajuda a manter minha saúde mental. Sou advogada empregada e o escritório onde trabalho optou por nos manter em casa desde o meio de março. Felizmente – e ao contrário do que ocorre com a maioria por aí – temos recebido o apoio e a estrutura para continuar a produzir do conforto e da segurança do lar. Mas, sinto muita falta de ir até o escritório e interagir com as pessoas. De sair para almoçar com os colegas e poder escolher qual restaurante ir. Sinto falta da gritaria do Centro de Porto Alegre e até daquelas coisas chatas ou irritantes que eram vivenciadas no cotidiano, por exemplo, as pessoas andando devagar na tua frente. Sinto falta da minha família (maioria do grupo de risco e que não os vejo desde março), dos meus amigos, de ir em um parque tomar um chimas e de comer uma pizza e tomar um Spritz em um bar. Basicamente meus “passeios” consistem em duas vezes na semana andar pela quadra com a Mel, ir ao mercado uma vez por semana e ir de vez em quando presencialmente na terapia (demais sessõea feitas online).

Hoje fui acordada pelo despertador e pela Mel jogando um dos seus brinquedos (o Pingo) na minha cara. Era seu convite para acordar e brincar. Não consegui fazer algumas posições de yoga para me despertar e alongar e fiquei me enrolando um tempo na cama brincando com a Mel. Nestes tempos de pandemia tenho tentado me permitir e me julgar menos. Mas, quando tomei coragem para sair da cama, tomei meu café, mudei a água da Mel, dei a sua comida e dei uma leve geral na casa (tirei o lixo, passei aspirador e lavei a louça que havia ficado da noite anterior). Depois de feito isso, passei um novo café e sentei para trabalhar. 

O trabalho da manhã pouco rendeu e fui almoçar. Marmitas congeladas caseiras me salvam em muitos dias e hoje o menu foi panqueca de frango, arroz e feijão. Após o almoço, dei uma olhada nas redes sociais, mais atenção para a Mel, tomei um banho para tirar a preguiça e fiz novo café para iniciar o turno da tarde.

Sentei para o novo turno e fui interrompida pela Mel, que roubou minha piranha de cima da mesa (?) e veio me “desafiar”. Foram alguns minutos perdidos atrás da yorkshire de três quilos que se move com muita destreza. Recuperada a piranha e tendo sido dado um “pito” na dog, já sem concentração pedi um doce para alegrar a tarde.

Recuperar a concentração em tempos de pandemia é algo que tem sido desafiador para mim e para muitas pessoas, mas o trabalho fluiu. Não como eu gostaria, mas fluiu. O doce pedido por um aplicativo deu uma animada e consegui cumprir com meus principais objetivos do dia de trabalho.

Chego ao final da tarde um pouco irritada por não ter minha vida normal de volta, mas faço os planos para a noite: uma(s) taça(s) de vinho branco, pizza, Mel, whats com amigos e ver “As telefonistas”, seriado da Netflix.

Esse foi o meu dia. Um dia normal (?) de uma cidadã porto-alegrense que vive momentos de altos e baixos em seu distanciamento social, mas que não perde a fé e a esperança de que dias melhores virão.

28.5.20

Dia 72: por Edvanio Ceccon

Um pouquinho de história.

“Para quem está muito assustado com o que ocorre hoje, uma reflexão:
Imagine que você nasceu em 1900. No seu 14º aniversário, a Primeira Guerra Mundial começa e termina no seu 18º aniversário. 22 milhões de pessoas morreram nessa guerra. No final do ano, uma epidemia de gripe espanhola atinge o planeta e dura até o seu aniversário de 20 anos. 50 milhões de pessoas morrem disso nesses dois anos. Sim, 50 milhões. No seu 29º aniversário, a Grande Depressão começa. O desemprego atinge 25%, o PIB mundial cai 27%. Isso vai até os seus 33 anos. O país quase entra em colapso com a economia mundial. Quando você completa 39 anos, a Segunda Guerra Mundial começa. Você ainda nem chegou ao topo da colina.  E não tente recuperar o fôlego. No seu 41º aniversário, os Estados Unidos são totalmente atraídos para a Segunda Guerra Mundial. Entre os 39 e os 45 anos, 75 milhões de pessoas morrem na guerra. Aos 50, a Guerra da Coréia começa. 5 milhões morrem. Aos 55 anos, a Guerra do Vietnã começa e não termina por 20 anos. 4 milhões de pessoas morrem nesse conflito. No seu aniversário de 62 anos, você tem a Crise dos Mísseis Cubanos, um ponto de inflexão na Guerra Fria. A vida em nosso planeta, como a conhecemos, deveria ter terminado. Grandes líderes impediram que isso acontecesse. Quando você completa 75 anos, a Guerra do Vietnã finalmente termina. Vamos tentar manter as coisas em perspectiva, tá tranquilo”.

Daí eu lembrei de uma conversa com um grande e sábio amigo:

"Tempos difíceis criam homens fortes, homens fortes criam tempos fáceis e tempos fáceis criam homens frágeis que criam tempos difíceis"...

A vida é um ciclo e teremos que passar nossos próprios tempos difíceis... Que possamos olhar o passado e aprender com ele, e construir um futuro verdadeiramente novo!

Recebi esse texto ontem e refleti bastante.

Primeiro, me impressiona que em apenas um século tenha ocorrido tanta desgraça. Não era para ser assim. No início do Século XX vínhamos do Iluminismo, da era das ideias e da razão, o homem triunfava sobre os mitos e divindades. A arte moderna e a diversidade cultural floresciam, a indústria e a tecnologia avançavam. A década de 1920 foi marcada pela criação literária e artística na Europa, especialmente em Paris (lembram do filme do Woody Allen, Meia-Noite em Paris?). Os direitos humanos se expandiam, as mulheres ganhavam direito ao voto, as jornadas de trabalho diminuíam, a seguridade social se ampliava. O que deu errado com o homo sapiens?

Também acho que olhar para essas milhões de mortes passadas não pode nos conformar com o que acontece hoje com o coronavírus. Claro, sabemos que isso vai passar, mas duvido que aqueles que morreram com a gripe espanhola em 1918 não tentaram fugir dela a todo custo. Cada vida poupada é uma vitória. Temos que evitar o raciocínio de Stalin, de que uma morte é uma tragédia, mas milhões de mortes são só uma estatística. A morte jamais pode ser encarada como somente um número. Hoje no Brasil, mais de 26 mil pessoas sentem a falta de um ente querido levado pela covid-19. Tente colocar 1+1+1... até chegar aos 26 mil e terá a ideia dessa falta.

Claro, a humanidade não acabará com essa pandemia, “tá tranquilo”. Mas não voltará a ser como antes. Disse o ex-ministro da Saúde Mandetta que o Século XXI começou agora em 2020. Acho que é isso mesmo. Antes de 2020 e depois dele. Não faço previsões, falo do agora: pessoas isoladas, viagens canceladas, comércios freados, turismo inexistente. Fronteiras fechadas, controles rígidos, migrações interrompidas. A internet virou a vitrine da morte. Foi preciso apenas quatro meses para que a exaltada globalização fosse varrida do mapa. Por um vírus microscópico e invisível. Com o avanço da medicina (mapeamento do genoma, células-tronco, exames e pesquisas cada vez mais avançados) não era pra estar tudo no controle? Até o final do ano passado, diziam que já tinha nascido quem iria viver até os 150 anos. Agora ninguém mais fala disso.

Não sei se essa pandemia foi um “cisne negro”, evento imprevisível, improvável e de grande impacto, na definição do escritor libanês Nicolas Nassim Taleb. Isso porque vários epidemiologistas previam que ela poderia acontecer, mas ninguém dava ouvidos. Mas é inegável que ela fez ruir toda a certeza e controle que pensávamos ter sobre nossa vida. Em quatro meses ficamos acuados e indefesos, olhando pelas janelas para um inimigo invisível. Isso nos faz parar para pensar. O homo sapiens não era tão sapiens assim.

27.5.20

Dia 71: por Annie Müller

Faz tempo que eu não sei exatamente quando começa o dia. Estou num ciclo repetido de ser alimento da cria, experiência materna que além de nos tornar os animais humanos que somos, também nos confunde noite e dia.

Penso que, hoje, a Helena acordou perto das cinco da manhã, pois ainda estava escuro. Mamou peito, capotou. Estou evitando ligar o celular durante o nosso momento, afinal, é o nosso momento, por isso não sei que horas ela acordou. Quando a mamada se estende e eu quase caio no sono com a bebê no colo, então prefiro pegar o Kindle no lugar do celular. O celular abre espaço para o mundo inteiro, e nos dias de COVID-19 é preferível resguardar as notícias para depois da simbiose mãe e filha. O Kindle salva. Eu havia deixado o dispositivo de lado há quase dois anos, quando concluí o mestrado. Na época, usei bastante, especialmente para ler os teóricos (sou mestre em escrita criativa). Mas, desde que a Helena nasceu, o Kindle é uma companhia nas noites, me possibilita ler mais do que eu conseguiria se estivesse limitada ao livro de papel. Tudo isso porque ele tem luz e não preciso acender a luminária e incomodar o homem que dorme ao lado nem a bebê que está grudada na teta. Além disso, posso manipulá-lo e mudar as páginas usando apenas uma mão, enquanto a outra segura a Helena. Aperto o botãozinho, a mágica acontece. O Kindle é silencioso, discreto, estou apaixonada (sou publicitária, caio logo num merchandising natural sobre produtos que aprovo). Abro num livro facinho, leitura que não exige muito, mas me deixa feliz. Nessa madrugada quase dia, escolhi um texto budista de um dos tantos mestres Rinpoches, que eu adoro. Mas também Caio Fernando Abreu tem me acompanhado. Venho preferindo contos faz tempo. Os romances, ah, os romances são privilégios da vida sem tantos filhos (tenho três com menos de três anos).

A minha leitura mudou muito desde que me tornei mãe, mais ainda na quarentena. Não somente eu mudei com o isolamento necessário: os meus jeitos de fazer as coisas mudaram. Leio trechos, pauso, parto para outra atividade. Tarefa em cima de tarefa e a noite vira dia. Desperto de novo pelas sete. Alimento a cria, depois ainda faço meu último sono matinal. Nove horas e o despertador vem em forma de canção do outro quarto: ‘ ia-ia-ô, o seu lobato…’. São dois meninos, gêmeos, que despertam ao mesmo tempo, desde que nasceram (impressionante a conexão entre gemelares, ela existe mesmo e não é crendice popular). Os garotinhos nos chamam: “mamãe, papaiii”, e o meu marido busca os dois ao mesmo tempo; ainda dormem em berços e precisam da nossa ajuda. Ele traz os meninos para a nossa cama e viramos um amontoado de humanos sem hora para sair do ninho (vantagem da quarentena). Brincamos, rimos, nos beijamos, os gêmeos começam a se empurrar e lutar pelo espaço preferido da cama — o meio, entre os dois travesseiros "gandes”. Arthur logo nos deixa, saindo para a sala, resmungando pela mamadeira, e o dia começa oficialmente ali, quando a calmaria e o silêncio são substituídos pela agitação e a lista mental dos afazeres do dia: mamadeira para eles, mate para mim, teta para a Helena, lanche da manhã — mingau, panqueca, o que desejam hoje?, brincadeiras pré-almoço, teta da Helena no almoço, sono da tarde, teta da Helena da tarde, lanche da tarde dos meninos — banana de novo?, brincadeiras que se limitam aos oitenta e nove metros quadrados do apartamento. Nos acostumamos a viver apertados, todos muito próximos, e poderia ser pior. Acontece que Arthur e Gabriel estão vivendo a fase dos dois anos, a chamada adolescência da infância, o que significa que estão (ainda mais) inquietos, rebeldes, irritados, agressivos. Sim, agressivos. Com o isolamento social, começaram a se bater a toda hora, a lançar objetos longe e já quebraram uns quantos. Quarentena também do prejuízo, a nossa. Eles sabem que existe um bichinho no ar. Um bicho que, agora, estão associando com a escola, para onde não querem voltar depois das “férias". Tratamos de falar pouco sobre o Coronavírus, mas as crianças pegam as coisas muito mais fácil do que julgamos. Crianças sentem antes, seres abertos que são. Seres que não pensam em nada muito grandioso, mas sentem muito grande. Tentamos falar, dialogar, mas além do medo do bichinho no ar, eles também sentem a falta do pai, que continua trabalhando, gerenciando a tele-entrega dos restaurantes para (tentar) não se afundar na crise. Ainda assim, será difícil sair dessa sem se endividar para pagar as contas e honrar as pessoas que trabalham com ele. O Coronavírus é, primeiro, uma crise sem precedentes na saúde, claro. Mas ele nos testa não somente o corpo físico, mas o mental. Não saber o dia de amanhã é o mais louco de tudo. As campanhas publicitárias nos dizem que “vai passar”, e tentamos quantificar esse tempo, em vão. Aqui em Porto Alegre alguns muitos já se vão às ruas, inclusive sem máscaras, mas a minha família escolheu se manter quieta para cuidar de si e da vida dos nossos pares. Porque mesmo quando sairmos de novo para a rua, estaremos ainda menos seguros do que já estivemos e mais cautelosos e solidários do que nunca. Assim espero. Que a transformação aconteça a começar por nós mesmos.

O vírus se transforma a cada dia, dizem os especialistas. E a gente também. Estamos mais ansiosos, mas talvez mais criativos. Mais sensíveis, me parece, e por isso empáticos. Ligamos para os nossos amigos e familiares a toda hora. Oferecemos ajuda, nos cuidamos. Afetos surgem como bolhas de sabão lançadas pelas crianças: voam e enchem de brilho e frescor o nosso arrastado período de confinamento. Na nossa casa, oscilamos entre nervosismo e aceitação, paciência e compaixão, desânimo e esperança. Tentamos nos deslocar para aqueles que vivem situações tão mais difíceis. Mentalizamos pela saúde de todos. Agradecemos pela nossa matilha. Quando já é noite, bastante tarde, depois das dez, e nos sobram alguns minutos, meditamos, com as crianças no colo, quase adormecidas, ao som de um mantra poderoso.

Correm dias e noites e nos colocamos assim, em nosso clã, a nossa família a nos blindar das ventanias, conscientes da nossa miudeza e da força daquilo que não podemos controlar. Sinto a pandemia como tentar o controle sobre a nossa vulnerabilidade. Porque o mundo já tem gente demais e sorte a de quem escreverá mais algumas páginas de diários nessa existência.

Vou dormir pensando que estou com eles. Estamos vivos. Estamos aqui, juntos. Mais juntos do que nunca.

26.5.20

Dia 70: por Felipe Zanini

Sabotando a rotina de sono que estou tentando seguir há alguns dias, encontro-me na escuridão do meu quarto, possibilitada pelas cortinas blecaute que cortam a luz do poste da rua que fica praticamente em frente à minha janela.

Algumas semanas atrás, uma amiga minha colocou dicas de leitura em seu stories do Instagram. Uma delas foi que, para ler mais, ela costuma ler antes de dormir. Como é uma pessoa ansiosa, a leitura a impede de ficar pensando sobre as mil e uma possibilidades de como as coisas poderiam ter sido ou poderão ser. Ao mergulhar entre as páginas de um livro, ali fica presa até que, eventualmente, dorme.
Tenho seguido essa dica e tem funcionado. Na verdade, eu não leio antes de dormir para ler mais, leio antes de dormir para, de fato, dormir. Hoje isso é nítido pra mim: estou deitado há mais de uma hora com a tela do celular próxima a meus olhos e o sono que estava acostumado a sentir já pelas 23:30 se foi por completo (já são 00:40).

Pack yourself a toothbrush, dear
Pack yourself your favourite blouse

É claro que tinha que ser essa música que o Spotify colocaria no aleatório. Você (ou “tu”, tanto faz. Nunca me importei muito com isso) já parou para assistir o clipe de Sleep on the floor, da banda The Lumineers? É a mesma banda que fez aquela música que ficou muito famosa alguns anos atrás em que várias vezes é dito "ho, hey" (esse é o título, a propósito). Eu sei que o clipe é só uma parte da narrativa que eles criaram para seu último álbum/EP ou qualquer-que-seja-o-nome-disso (adoro colocar hífens entre as palavras, mesmo não sabendo se é apropriado), mas que pode ser assistido separadamente. Eu considero um clipe meio desconfortável. Vou te resumir (não me pergunte por que aqui escolhi te tratar como “tu” e não “você”): a moça está no enterro do pai e tem tipo uma visão da Raven, sabe? (Millennials, uni-vos) Ela enxerga como sua vida pode ser se fugir com o namorado. Aí segue a história: eles pegam um carro, viajam por aí, se casam e nunca mais retornam. Mas ela não foge com ele.

'Cause if we don't leave this town
We may never make it out

Como se já não me bastassem as diversas crises existencialistas que tenho ao ver as pessoas caminhando pela rua da janela do meu quarto (a propósito, moro algumas quadras de distância da Willi, que teve seu texto publicado uns dias atrás. Fica aqui o registro que vou convidá-la para um café e bolo pós-pandemia) e das noites em que deito na rede que tenho ao lado da janela da sala, de onde passo alguns longos quartos de hora admirando as estrelas que têm se tornado cada vez mais brilhantes desde o início do isolamento, meio que ignorando o fato que quase nunca são visíveis no céu porto-alegrense, o clipe do The Lumineers me faz pensar em coisas que poderia ter feito, em instintos que poderia ter seguido e, principalmente, em pessoas a quem poderia ter me entregado.

Já desisti de dormir. Estou na cadeira que tenho ao lado da janela do quarto. Levantei as cortinas blecaute até a metade e abri a janela. Está frio, mas tenho duas cobertas sobre meu corpo. O vento parece brigar comigo, me empurrando, me fazendo tremer um pouco, mas tenho esperança que isso me acalme e me faça relaxar. Um casal passa de mãos dadas na rua.

Há alguns bons anos assisti Principe Caspian, da saga As crônicas de Nárnia, e eu lembro até hoje uma fala de Aslam (aquele leão-falante, sabe?): "Não vale a pena pensar em como as coisas poderiam ter acontecido, porque isso nós nunca saberemos". Talvez não tenham sido essas as exatas palavras, mas essa era a ideia, basicamente.

Por que cheguei até aqui?

I was not born to drown.

Ah sim, claro. A música do The Lumineers (agora já mudou pra um reggaeton qualquer, mas tudo ok).

Essas crises existencialistas que tenho ao olhar para as pessoas, ou para as estrelas, são as mesmas que me fazem escrever. Ainda não achei o estilo exato que tenho mais afinidade com. Às vezes sinto que não sou bom nem para conto, nem para romance, nem para poesia, nem para crônica, nem para qualquer-que-seja-outro-formato-de-texto-literário-que-não-esse-que-escrevo-agora. Mas é nesse ritmo, meio que vomitando as palavras que tenho soltas dentro de mim, que tenho escrito mais. Essas noites em que paro para observar as estrelas, são as que me sinto mais solitário, pois me sinto um mísero grão de areia em meio a imensidão do universo de constelações que marcam o céu noturno. Estranho, acabei de reparar que as estrelas são bem frequentes em meus textos. Mas, voltando. Essas noites em que paro para observar as pessoas caminhando na rua, são as que me sinto mais perdido, pois fico imaginando qual o trajeto que elas seguem, se tem família, se tem ambições, se tem amores. Qual o seu destino? Qual o nosso destino? Há um destino? Essas noites em que eu paro, são as que me sinto mais fluido. Não é nem que eu me sinta inspirado, sabe? Eu só sinto que as palavras vão pro papel, ou para a tela do computador, de maneira mais natural, mais corrente, feito água. Escrevo fluxos de consciência, ao estilo do que estou escrevendo agora, mas que são muito mais profundos. 

Meu objetivo com esse texto? Não sei. Acho que quero apenas deixar um pouco da oscilação da minha produção literária em meio ao caos atual. Meu professor de não ficção disse uma vez que tenho aptidão para escrever sobre sentimentos. Espero que isso não tenha ficado tão profundo.

Já fechei a janela e voltei para a cama. Meu deus, como está frio. Opto por não colocar um alarme no celular, porque não preciso levantar cedo amanhã, então me darei ao luxo de acordar o horário que meu corpo quiser. Boa noite.

25.5.20

Dia 69: por Ana Ávila

Mamá, mamá, mamá. Um gritinho cada vez mais alto e ansioso me tira de um sono profundo. Passo os olhos pelo celular: 5h47. As noites não têm sido fáceis. Dezenas de dias se amontoam muito parecidos. Sei que lá por meados de março nos fechamos em casa. De lá pra cá, contamos as raras saídas nos dedos das mãos. Às vezes, me pego pensando com incredulidade que quase não vi tv, li, deitei no sofá ou na rede com meus próprios pensamentos por uns poucos minutos em todo esse tempo. 24 horas em casa, como é possível? A natureza ansiosa nunca me deixou aquietar corpo e mente por muito tempo, é verdade. Quando um para, o outro acelera. Mas, a rotina de repetir à exaustão atividades às quais não podemos nos furtar com uma bebê em casa exige, do corpo e da mente, uma energia diferente.

O engraçado é que parece tudo igual, mas não é. Longe de ser. Assim como o mundo muda lá fora, a gente muda aqui dentro. Em 28 de abril acordei às 5h50, fiz café cantarolando trechos de não mais de 10 segundos de músicas variadas - de Tiquequê a Belle de jour -, o entretenimento favorita da Flora enquanto a gente prepara a refeição e atende ao pedido recorrente: ‘mais pão’. Uma mão mexe os ovos, a outra passa o café, um pedacinho de pão pra nenê, ah hei! ah hei! ah hei!, pica o mamão, busca o copo d’água que ficou no quarto, e batedeira, e furadeira, pipoca e liquidificador, torra o pão que já tá ficando velho, se eu fosse uma formiguinha, seria pequenininha, mais pão, empurra o cadeirão pra sala, senta, uma colherada de ovo, uma de mamão, mais pão, o café esfriou, esquenta o café, mais pão, ovo, mamão, acabou o pão, filha. Troca a fralda depois de uma longa, longuíssima argumentação, história sem fim sobre o porco da fralda cheia, distração com o quadro do coelho, argumentações totalmente infrutíferas, risadas, cafungadas no pescoço e um pouco de gritaria também. Bola, balão, dancinha pela sala, o papai acordou, eba! Ele levanta com a cara ainda amassada pela maratona noturna com a nenê. Parece tudo igual, mas não é.

Fecho a porta do quarto pra última revisão da apresentação. Leitura dinâmica, uma olhada rápida nos slides. Testo o skype, que não usava há uma eternidade. Lento, travando, desisto. Volto pra sala já na hora do almoço da nenê. Dou a comida. Da cozinha vem um cheiro bom de alho fritando na manteiga. Leo caprichou no tradicional, rápido e delicioso espaguete com molho de tomate. Ele bota a nenê pra dormir enquanto eu finalizo almoço e arrumo a mesa. Sempre comi rápido, mas ultimamente tenho a sensação de que a comida simplesmente desaparece do meu prato sem que eu nem perceba. Volto pro computador. Meu orientador avisou que não será mais por skype. Microsoft Teams. Desconheço. Login, teste, tudo certo. Às 14h30 começa a defesa. Depois de dois anos, vou enfim me tornar mestra em Ciências da Comunicação.Títulos nunca pareceram tão inúteis. O pensamento vem pronto. Repenso. Não é o título. É uma pesquisa que me orgulha, que consumiu boa parte dos meus dois últimos anos, que tensiona a relação entre violência de gênero, mídia e redes sociais. Ok, me deixo estar feliz e orgulhosa de mim mesma por uns instantes. Parece tudo igual, mas não é.

Em 16 de março fui à Unisinos pela última vez. Fazia poucos dias que tinha me dado conta da gravidade da situação. Naquela semana embarcaríamos para a Espanha de férias. Até dias antes, mantínhamos os planos como se possível fosse. A minha medida mais extrema havia sido comprar um vidro de álcool gel, meio por acaso, quando vi no caixa da farmácia. Quando olho pra trás, tudo parece ainda mais absurdo. Desistimos e insistimos umas quatro vezes em poucos dias até batermos o martelo. Enquanto isso, eu lia ansiosa o noticiário nos principais sites espanhóis várias vezes ao dia. Parecia controlado, estaríamos exagerando? Fazia contas, pensava e repensava. Quando tomamos a decisão e partimos pros cancelamentos, alguns anfitriões do airbnb indicavam que a decisão era um equívoco. ‘Em Sevilla, no pasa nada’, me respondeu uma delas. Em 15 de março a Espanha iniciou o bloqueio nacional. No dia 20, quando chegaríamos ao país, superou os mil mortos. Em 25 de março, já era o segundo com maior número de vítimas fatais no mundo, atrás somente da Itália. Dois meses depois da data em que terminariam nossas férias, voltei a receber mensagens e e-mails com promoções de viagens. ‘É tempo de… sonhar, planejar e em breve viajar’, diz um deles. Parece tudo igual, mas não é.

Ainda é estranho pensar que passamos meses achando passagens pelas quais pudéssemos pagar, pesquisando as melhores opções de hospedagem com bebê, montando o roteiro de carro, planejando reencontrar gente querida e, de um dia pra outro, nada disso era possível. Decidi, ainda assim, tirar uma semana de férias. Foi a mais fácil até aqui, talvez por ser a primeira, possivelmente por ter me mantido o mais longe possível do noticiário - tarefa impossível no restante dos dias, quando a natureza da profissão me obriga a mergulhar sem emergir no esgoto que se tornou o que precisa ser noticiado. Naqueles dias, no entanto, ainda era difícil imaginar como seria passar meses praticamente sem sair de casa. Não sabíamos o limite entre a organização e o desespero. Fizemos listas de compras insuficientes, que exigiam saídas mais frequentes do que o necessário. Aos poucos, fomos nos adaptando à nova rotina. Chegou o dia em que um dos porteiros do prédio interfonou só pra saber se estava tudo bem. Me dei conta de que sumimos, apenas. Parece tudo igual, mas não é.

O barulho tão comum no centro de Porto Alegre foi se fazendo cada vez menor. No começo, chegava a ser esquisita a ausência de vozes e risadas na calçada movimentada noite adentro. Logo virou o novo normal. Nas raras descidas, bares e lancherias com fitas de isolamento, mesas recolhidas e poucos funcionários. No rosto, máscaras e olhos apreensivos. Mas esse novo normal também se foi. Na semana passada, um decreto municipal permitiu que bares e restaurantes reabrissem. Muitos outros serviços já haviam sido retomados. Havia quem acreditasse que não seria o suficiente pras pessoas saírem de casa sem necessidade. Parecia o óbvio quando o país já tinha mais de 20 mil mortos e 300 mil infectados. Mas não foi. O burburinho na calçada voltou, misturado aos carros, às obras, ao caminhão de lixo que ganhava protagonismo quando todo o resto era silêncio. Parece tudo igual, mas não é.

Flora já tem cabelos que podem ser presos em colinhas. Fala dúzias de palavras. Sabe o que são vídeochamadas. Lembra dos membros da família por grupos de nomes que repete volta e meia, canta trechos ou completa palavras de várias músicas. Escala sozinha o sofá, pula pra poltrona, desce da cama, se pendura no peitoril da janela. Isso tudo aconteceu desde que nos fechamos em casa. Parece tudo igual, mas essa criaturinha efervescente ao nosso redor nos faz ver que não é.

24.5.20

Dia 68: por André Roca

Saí para correr. Deixei o celular em casa para não cair na tentação de ligar o Strava e registrar meu crime (mas usei máscara, o que me faz um criminoso à moda antiga. Se bem que...).

Tive de intercalar, claro. Corre um pouco, caminha muito mais, corre outro pouco. Porque são sei lá quantos dias de quarentena, sem futebol, sem outras corridas, sem qualquer atividade física mais intensa fora as aulas do Filipe via Instagram, e com uma bagagem extra que já está literalmente na cara.

De casa até o Pérola Negra dá uns quatro quilômetros, pensei, e isso deve queimar alguma coisa do café da manhã e, com aquele morro no meio do caminho, talvez parte do almoço.

Foi bem nessa subida, na volta, já pensando no café da tarde, que me dei conta, pela primeira vez, que odeio correr sozinho.

Era isso! Faltava uma parceria para competir, ver quem chega primeiro, quem vai mais rápido, quem vai pedir antes para ir mais devagar.

Pensava nisso quando dois cachorros, um branco e um preto, cruzaram por mim, língua pra fora, uma cara de felicidade. Eles corriam livres, sem saber dos perigos do coronavírus. Provavelmente, competiam.

Cheguei a me virar para ver aqueles dois rabinhos abanando enquanto se distanciavam em velocidade.

Já estava no pé do morro quando uma idosa com ares orientais me interpelou:

– Moço, viu dois cachorros, um branco e um preto, passarem por aqui?

Sim, eu tinha visto. Subiram o morro. Foram em direção ao Pérola Negra. Corriam livres e leves e despreocupados. Nem devem saber da pandemia, pensei em dizer.

– Foram por ali.

Apontei. A senhorinha tinha ares muito frágeis. Começou a caminhar apreensiva, mas vagarosamente. Não chegaria nunca até eles.

Pensei nas minhas avós e em como eu gostaria que alguém as ajudasse.

– Faz assim, a senhora segue em frente, mas eu vou correndo, chego antes e seguro eles. Pode ser? Qual o nome dos dois?

E lá fui eu, correndo muito mais rápido do que antes, com uma missão a ser cumprida.

Encontrei Antônio e Joaquim já bem depois do morro. Um deles latia para uma moita, mordiscando o que parecia ser um pano enterrado. O outro, invadia as águas do Guaíba num banho de liberdade.

Chamei-os.

O preto me olhou. Rosnou. Depois latiu com ameaça.

O branco saiu da água e fez mesmo.

Os pedestres não entendiam nada, olhando um cara chamar dois cachorros por nomes de gente sem que surtisse qualquer efeito.

Eu olhava na direção por onde a velhinha deveria surgir, mas nada dela aparecer.

Os cachorros, então, resolveram seguir a corrida.

Fui atrás.

Pararam de novo.

Eu chamava.

– Joca! Antônio! Já pra casa!

Latidos e rosnadas eram tudo o que eu recebia.

Pensei de novo no prazer de competir. E na figura de um orientador. Alguém que por vezes é responsável por nos dizer que a postura está errada, que temos de aguentar mais um pouco, melhorar a passada. E que temos de ir.

Estava na hora de ir.

Peguei uma vareta na grama, tasquei uma chibatada no chão e falei ameaçador:

– Joca! Antônio! Já pra casa, agora!

Ganhei mais latidos e mais rosnadas, mas eles iniciaram a jornada de retorno.

Pude correr de novo, agora atrás deles, batendo a varinha no chão vez ou outra:

– Joca! Antônio! Já pra casa, agora!

Foi tão boa essa corrida que nem dores eu senti no dia seguinte.

Sobre a dupla? Teve uma hora em que sumiram de vista. Mas já estavam nas imediações de casa. Também não achei mais a senhorinha. Talvez ela tenha descoberto o prazer de uma competição naquele dia.

23.5.20

Dia 67: por Liége Biasotto

Antes de começar a compartilhar minhas percepções cotidianas sobre o isolamento, permitam-me que eu me apresente. Acho necessário contextualizar como era a minha vida  antes pra que se possa entender o agora. 

Sou produtora cultural, moro com meu companheiro Mateus e nossos três gatos, e minha rotina sempre foi muito ativa. Embora já trabalhasse de casa, meu dia era ocupado por diferentes reuniões e encontros, refeições em restaurantes - por não ter tempo e nem vontade de cozinhar -, academia e vida social agitada, onde a melhor parte do dia era ir para um bar, para um show e encontrar pessoas. Sempre me ocupei muito, um pouco por querer fugir da realidade, por ansiedade, pela vontade de devorar o mundo.

Mas hoje faz 65 dias que tudo mudou, virou de cabeça para baixo.

As primeiras semanas de quarentena foram difíceis. Vi vídeos de pessoas isoladas em outros países, relatando o que estava por vir. O que me trouxe pânico e, metódica e planejadora que sou, montei logo uma rotina, cheia de metas e objetivos. Comecei aulas online de yoga e de francês, me inscrevi em três cursos gratuitos online, criei um projeto pessoal para me dedicar, comecei a desenhar estratégias de trabalhos alternativos em nova versão e conceito, pensando em manter a cabeça ocupada e as perspectivas ativas.

As semanas têm passado como uma montanha russa de emoções. A euforia de preencher os dias deu lugar a um par de semanas de muito sono e depressão. Medo e desmotivação pela falta de caminhos, pela de falta de controle, por não ver mais sentido em fazer ou criar nada novo. E então chegamos no aqui e agora. Dois meses e um punhado de dias.

Faz duas semanas que não me exercito, larguei as aulas de yoga, não faço mais as aulas de francês. Um mês que não abro os cursos gratuitos e quase dois que não encosto no meu projeto pessoal. Meu tempo foi reconfigurado. Minha prioridade passou a ser as próximas horas, o hoje. E começo a gostar disso. 

Gosto das pequenas coisas. Do dormir sem despertador e ver que meu corpo acorda sozinho depois de 8 horas de sono bem aproveitadas. E não importa mais que horas são neste acordar, se é cedo, se é tarde. Saio da cama e faço meu ritual: tomo café com calma e fico procurando os cantinhos de sol pela casa. No amanhecer, pega sol no sofá da sala. Perto do meio dia, tem sol na cama e posso voltar pra lá por mais um tempinho pra ler alguma coisa. Pelas 16h, o sol atravessa o apartamento e posso pegar mais um calorzinho. 

Fazia dois anos que eu não cozinhava. Agora, é uma das coisas que mais me acolhem nesta quarentena. É como se a cozinha fosse meu espaço de criação. Abro a geladeira, vejo o que tem, o que está prestes a estragar e precisa ser cozido antes. Me arrisco a fazer uns pães. Pão leva tempo, demanda paciência. Sova, descansa, sova de novo, descansa mais. É como se o tempo do pão fosse um presente.

Esses dias, falava com uma amiga sobre como a quarentena nos trouxe conexão com a nossa casa. Descubro os cantos, os livros, os objetos, a poeira acumulada embaixo dos móveis, umas teias de aranha e mosquitos no gesso do teto. Descubro coisas que comprei há anos, nunca usei e que agora me são úteis. Utensílios de cozinha, lápis de cor, blocos e cadernos, temperos e chás que não venceram. Parece que o tempo das coisas mudou junto com o meu. 

Coisas que eu comprava uma vez por ano, passaram a ser compras rotineiras: detergente, azeite, álcool, esponja, grãos… Minha geladeira, que era descongelada semestralmente, agora pede uma atenção mensal. O gelo se forma rapidamente lá dentro, fico sem espaço para congelar minhas criações. 

Nossas saídas de casa estão cada vez mais esparsas. Começamos indo ao mercado uma vez por semana, depois a cada dez dias, a cada quinze e, agora, estamos na meta dos vinte dias. Os ranchos são maiores e estranhamente mais baratos, pois nossos hábitos de consumo também mudaram. Faço uma lista ao longo dos dias para garantir que, quando tenha que sair, não esqueça de nada. Atenho-me ao essencial, às coisas que duram mais, e faço a manutenção dos itens frescos com a feira online.

Mas o sair de casa passou a ser o auge do estresse enquanto casal. Por isso a necessidade de espaçar cada vez mais as idas ao supermercado. Quando saímos é quando normalmente discutimos. Um excesso de cuidar do outro e de paranoia. Mas ainda preferimos fazer isso juntos, dividir a busca pelas coisas da lista, ficar o menor tempo possível na rua.

Sair de casa para ir às compras essenciais necessita um planejamento. O que era tão comum e tranquilizador para mim, agora se torna um grande fardo. Precisamos já ter almoçado antes de ir, pois a função levará horas. Precisamos já ter lavado a louça para que a pia esteja vazia ao chegar. Uma pré-faxina antecede a ida ao super. Casa limpa, chão varrido. 

Quando chegamos, eu entro primeiro, sem sapatos, lavo as mãos e prendo o Madruga no escritório para que ele não fique se roçando nas sacolas. Mateus lava as compras, eu seco e guardo. Sacolinhas de molho na água com sabão e alvejante, que depois serão estendidas ao sol, secas e dobradas uma por uma. Álcool em tudo que encostamos. Roupas na máquina, banho e pano com clorofina no chão de toda a casa, a finalização da faxina iniciada. Todos limpos e assépticos. As compras, a casa e nós. Essa função nos toma um turno inteiro e nos ilude que assim estamos a salvo.

Minha rotina de trabalho também mudou. Agora, trabalho quase um turno por dia. Divido todas as tarefas da semana em pequenas porções diárias, pois o tempo de executá-las já não importa, nada é urgente. Faço pequenas etapas de cada projeto por dia. E isso já me basta. Transformei o desespero de falta de renda, que é inevitável, em resignação. Me acostumo com a ideia de viver com menos, mas com mais tempo.

A situação também trouxe soluções. Não exatamente soluções, mas tudo pode ser adiado e isso me tranquiliza. Conseguimos congelar o financiamento do apartamento e do carro por alguns meses, diminuir o valor do condomínio e o cartão de crédito, com a falta da vida social, se estabilizou. Nossos custos diminuíram para um quarto do que gastávamos anteriormente. Sei que essa conta vai voltar, algumas com novos juros, mas me atenho ao que posso controlar agora. O amanhã é o amanhã.

Só sei que me acostumo e começo a gostar dessa nova vida. Os encontros sociais passaram a ser online, estamos ainda mais conectados com amigos que não moram na cidade e nos vemos muito mais do que nos víamos antes, mesmo a quilômetros de distância. Voltei a falar com pessoas que há anos não via pessoalmente. Penso que as conexões se fortaleceram, as pessoas estão mais próximas de alguma maneira.

Ainda tem a comodidade do cansar do encontro social e ir dormir, na porta ao lado. Não precisar esperar o companheiro querer ir embora, nem pagar a conta, chamar um uber. Basta, simplesmente, trocar de cômodo e capotar, sem nem precisar trocar a roupa. Porque sim, sou daquelas que adotou o outfit moletom o dia inteiro, só mudo quando fica sujo. 

Inclusive, tenho lavado mais toalhas e panos do que roupas. Meu hábito de tomar banho também mudou. Antes ele era necessário ao acordar, para ajudar a conectar o cérebro e ficar em dia para os encontros sociais. Agora, a prioridade é dormir limpinha e quentinha. Os banhos passaram a ser à noite.

Parece que o tempo mudou, as prioridades mudaram. Mudou a percepção do que realmente é importante, quem queremos por perto. E gosto dessa ideia. Tenho medo de tudo voltar ao normal, da obrigação social, do custo de vida mais caro, da agenda cheia, da desconexão com a minha casa, da vida amortecida pelo externo. O isolamento, que chegou me tirando o chão, agora até poderia durar mais uns meses. Me sinto preparada para esperar essa tormenta passar.

O sentimento de resignação me trouxe a liberdade do tempo, a transformação do olhar e daquilo que é essencial. Espero encontrar equilíbrio na volta à normalidade, para quando o ermitão que há em mim sair da caverna, ele não esqueça que as urgências do mundo podem ser ilusórias. E lembre de limpar as teias de aranha que habitam a casa.

22.5.20

Dia 66: por Luís Felipe dos Santos

Dois João Pedro acordaram na segunda-feira, 18 de maio. Os dois precisavam ficar em casa: a escola não abria, a rua poderia fazer deles vetores de contágio. 

Os dois não poderiam sair, nem ver os amigos, nem aprender coisas novas, nem olhar para a cara das suas professoras para saber se elas estão de mau humor ou de bom humor. Não sentiriam o cheiro da cantina, também não iriam vestir uniforme. Não saberiam se o tênis deles iria apertar, se o sol seria quente demais para arregaçar as mangas da camisa, ou se o amigo iria apresentar uma coisa nova no caminho para a sala de aula.

Um deles eu conheço bem. Ele acordou, teve que fazer o seu ritual de café da manhã. A irmã, que estuda virtualmente pela manhã, já estava de pé. Almoçou um prato de yakisoba, sem legumes, a não ser alguns que o pai escondeu de forma estratégica. Tomou banho, jogou Minecraft, assistiu a uma aula por videoconferência. Descobriu mais algumas coisas novas sobre programação, correu a casa inteira enquanto assistia a um vídeo, brigou para dormir.

Eu nunca tive que enfrentar uma pandemia enquanto criança. Nem qualquer um de vocês, a menos que tenham passado pelo Congo na época do ebola. Adulto que sou, eu consigo olhar a curva do número de casos e saber da minha responsabilidade ao ficar em casa.

Fique em casa, diz a TV. O comercial. A hashtag. A celebridade. O youtuber. O filtro do instagram. O cartaz. O governante. Bem, nem todo governante.

O meu João Pedro sabe que tem que ficar em casa e usar máscara. Ele está em casa. Se sente seguro em casa. Em casa, ele não é vetor de contágio. Tudo vai ficar bem. Eu acredito. Ele também.

O outro João Pedro eu não conheço tão bem. Tudo que eu sei é que ele tinha 14 anos e que estava em casa. Ele se sentia seguro, assim como o meu. Deveria estar entediado, assim como o meu. Vivia algo inédito, assim como nós. Devia sentir saudade dos abraços, dos amigos, dos cheiros, assim como todos.

A diferença é que ele não vai poder sentir nada disso de novo, pois a polícia invadiu a sua casa à procura de bandidos que fugiram. A sua residência, onde ele se sentia seguro, onde todas as pessoas diziam para ele ficar, foi alvejada com no mínimo 70 tiros.

E nem mesmo o seu corpo ficou seguro, pois os policiais sumiram com ele e só foi encontrado 17 horas depois.

Todo dia nasce um novo João Pedro. Dependendo da cor, ele se torna um alvo. Na rua ou em casa. 

Não ser um alvo é privilégio.

21.5.20

Dia 65: por Rodrigo Schuster

Tomo o café sentado na varanda enquanto observo as vacas, que limpam suas penas e tentam controlar os animados bezerros que brincam eufóricos com suas recém aprendidas habilidades de voo. Enquanto meu planeta de origem está em quarentena, tenho aproveitado para visitar outros mundos, em dimensões paralelas. Conheci 33 mundos diferentes e, até aqui, esse, o décimo terceiro, é meu favorito.

Aqui o sol é verde, as vacas laranja-escuro quase ocre (a cor chama “aiotfes”, que significa “vaca”, na língua local), as ovelhas continuam com cara de idiota e bolsonaro é apenas o nome de um musgo cinza que surge durante o orvalho e desaparece nos primeiros raios de sol.

Gosto desse mundo. Descobri que nessa dimensão Hortelã é a divindade suprema e eu pareço ser alguma entidade que ela protege, ninguém sabe por que ou do quê, e já aceitei que ovelhas são idiotas em todas as realidades possíveis, paciência. Queria passar mais um tempo vendo os bezerros se divertirem fazendo novas manobras aéreas, porém Hortelã tem um reunião na cidade e preciso ir junto “para minha segurança”.

A cidade é perto, mas para não perder tempo resolvemos utilizar os TLRs (Tubos de Locomoção Rápida). A reunião parece importante, diversos cães apareceram. Hortelã deu instruções a todos e demonstrou o correto posicionamento dos gravetos. Agora, que temos tempo, decidimos não voltar pelo TLR, que, segundo Hortelinda (ela é uma divindade, tem vários nomes), resseca minha pele com o vento quente. Caminhamos um pouco e logo encontramos Jurandir, um boi amigo nosso que nos oferece carona. Eu nunca tinha voado tão perto das nuvens daqui, que são rosas porque o sol é verde e não por serem feitas de algodão-doce. Fiquei um pouco decepcionado. 

Chegamos na choupana. Hortelã se retira para atingir a iluminação e ir para o plano celestial. Nunca falamos sobre isso, mas imagino que os deveres dela no plano celestial tenham alguma relação com as reuniões matinais, pois, quanto mais agitada a reunião, mais tempo ela passa no plano celestial durante a tarde, mas pode não ser nada disso. Há coisas que um simples humano não pode entender. Enquanto Hortelã cumpre suas tarefas celestiais de Deusa Suprema do Multiverso, eu uso um TLR para ir ao centro comprar comida e encontrar alguns novos amigos. São muito práticos os TLRs: encontramos os amigos quase imediatamente, e depois entramos em outro e já estamos em casa, sem o inconveniente de perder tempo de deslocamento, durante o qual sempre lembramos de mais alguma coisa para dizer, como acontece lá no meu planeta de origem.

Parece que faleceu uma artista importante que eu, evidentemente, não conheço, e a maioria das pessoas com as quais falei também não conhecem, mas todas pareciam sinceramente consternadas. Quando um artista morre, o musgo cinza cresce nas calçadas e não some com o sol. Eu estava comendo e bebendo com uns amigos quando alguém leu uma nota de pesar sobre a morte da tal artista, era compositora e cantora, então me mostraram algumas músicas. Abraço meus amigos efusivamente, me despeço com uma quantidade exagerada de beijos que eles não entendem muito bem, caminho em direção ao TLR, nativos cantam uma das músicas que acabei de conhecer, e escaravelhos multicoloridos saem de suas tocas e devoram o musgo cinza.

Estou no sofá da choupana quando Hortihorti sai do estado de iluminação e retorna ao plano mundano.Ela se aproxima de mim com uma bolinha, para que eu corra atrás dela. Hortelã precisa fazer eu me exercitar todos os dias, para gastar energia e dormir bem. Um som forte chacoalha as janelas, e a Princesa mais Rainha de todas as Deusas manda eu me proteger. Reconheço o som do Devorador de Ovelhas, o cruel Deus principal do décimo sétimo mundo. Hortelã o rechaça com seu ataque “Fera Feroz” (ela mesma nomeia os ataques) e me avisa que posso sair: estou seguro.

Já é noite. As estrelas, lilases, brilham no céu azul-claro, as vacas formam um círculo e estendem suas enormes asas, formando uma cabana e protegendo umas às outras do sereno e do musgo cinza. Vou dormir porque amanhã a Bonitinha tem outra reunião, ainda não sei onde, mas espero que seja aqui.

Posso viajar por dimensões, conhecer mundos de diferentes tempos, em diferentes galáxias de diferentes universos. Mas só posso dormir, só pego no sono, na minha cama, do meu apartamento no meu planeta de origem.

Eu não sei onde nem quando você está lendo isso, mas no meu planeta de origem, nesse momento, a louça não se lava sozinha, cerveja engorda, um vírus está matando mais de 30 mil pessoas por semana e eu não encosto em outro ser humano há 68 dias. 

Boa noite, escaravelhos multicoloridos. Boa noite, lua rosa. Boa noite, aiotfes. Boa noite, Hortelã. Até amanhã.

"Eu vo mata o Corona" - Hortelã sobre sofá

20.5.20

Dia 64: por Jota Machado

Quantos dias já se passaram? Não sei...
Hoje saí de casa para atravessar a rua até a padaria em frente.
Impressão minha ou a rua está mais limpa? Quase não há carros e poucos transeuntes.
O cachorro do vizinho late insistente; digo: e aí amigão? Ele me reconhece e sacode o rabo.

O que não mudou, mesmo com a pandemia e quarentena a que nos propomos, é o garoto da outra rua com seu carro sobre a calçada, tocando aquela "coisa" que chamam música.

E vejo estranhos na rua, ou as máscaras escondem os rostos e já não reconheço ninguém.
Mas reconheci a vizinha.
Minha vizinha, parada diante de mim, na fila do pão.
Olho bem; será ela mesmo?
A todo momento passa a mão para ajeitar uma mecha de cabelo que insiste em cair sobre o rosto.
Tento não olhar, fico de cabeça baixa quase todo tempo, mexendo com as mãos.

Estou constrangido.
Aqueles olhos... aqueles grandes olhos verdes.
E aqueles cílios... Imagino nossos filhos com esses olhos.
A mesma mecha de cabelo loiro caindo sobre os olhos...
Tenho vontade de falar que tinha planos mas ela mudou de ideia; que tínhamos ideias e ela mudou de planos.

Estou parodiando alguém?

Me dói o estômago quando lembro daquele dia de chuva. Nos molhamos andando da parada de ônibus até nossa rua.
Ela disse um ‘oooooooiiiii vizinho...."; claque! Quase um desfibrilador  no meu peito.
Daí falei: chuvinha boa né? Boa pra ficar na cama vendo um bom filme.
Anhan! Pois é...
Tens planos pra hoje à noite?
Ela disse que nada, eu respondi "então tá...".
Falei: tô a fim de um cinema. Você iria se te convidasse? Ela fingindo receio: "mas você não vai tentar me agarrar?"
Mas é claro que não. Ela: "Ah, que pena..."
Sou tímido, fiquei vermelho e só não tive febre porque a chuva esfriava a minha cabeça.

Cinema vazio, cabeça cheia. Sua roupa permissiva permitiu me apaixonar.
Acabamos a noite enchendo e esvaziando taças, sorvendo borbulhas e brincando com espuma.

Lembro de sua boca me desviando dos planos de toda uma vida.

E o que parecia para sempre... sempre acaba! Olha aí meu cérebro dando um nó e plagiando alguém!
Ela pegou o táxi antes de eu acordar.

Quase morri, dias depois, quando soube que ela tinha casado, papel passado e tudo.

Vou falar!
Falar assim: depois de conhecer você, nada mais interessa.
O tempo não mais interessa então p'ra que ter pressa?
Para que caminhar pelas ruas? Para que servem as ruas?
As conversas, as fotos; as minhas e as tuas...

O silencio no quintal, as roupas no varal são as minhas, não as nossas.
Os discos empoeirados, os livros amarelados, as viagens adiadas.
Nunca as mãos dadas...
O silencio é companhia no jantar.
História não acontecida não termos nos amado
Noites em que não ficamos juntos, lado a lado deitados, as horas passando as horas, os olhos felizes, corpos cansados.

A semana toda passando; e o que viria depois da sexta? Esperava um sorriso teu logo ao acordar em plena segunda-feira.

Tenho raiva de mim mesmo e minha timidez idiota! Eu sou um idiota!
Eu seria capaz de dizer tanta coisa, mas as coisas são mais difíceis quando a gente fica sem ar.

O ar são como as palavras, no momento de nervosismo elas faltam, no auge da discussão elas somem.

Divagando cabisbaixo ouço a moça do balcão gritar: "o próximo!" O próximo sou eu.
Quase me esqueço de quem sou e o que faço aqui.

Então fico ali, estático, surdo e mudo, vendo tudo passar, vendo o tempo passar, vendo ela passar...
Quem sabe um dia você não passe; pare, sorria e me olhe com esses olhos – Ah! esses olhos – e então eu crie coragem de não ser só...

Ainda espero?
Gostaria de saber quanto tempo vai durar esta espera tão inútil.
Bom, não foi Jung que disse que a felicidade perderia seu significado se ela não fosse equilibrada pela tristeza?

Estou devaneando mas é o que sei fazer de melhor.

Quantos pãezinhos? Que voz irritante da atendente; eu acho estranho como algumas pessoas crescem e a voz continua infantil.
E lá vou eu atravessar a rua, rumo a meu bunker. Comidas congeladas, pizza congelada, Netflix, o especial do Yes pela quarta ou quinta vez.
Esqueci a máquina de lavar ligada; espero não ter escapado a mangueira e molhado todo o piso como ontem. Preciso consertar aquilo.
A pia está cheia de louça para lavar.

Acho que já são quase dois meses que voltei daquela viagem. Sim, metade de março.
Até quando isso?

Pelo menos ficando em casa tenho motivo para estar à janela, vendo a vizinha passar.

19.5.20

Dia 63: por Ana Carolina Peres Bogo

É o problema de sentir demais por não sentir. Às vezes tenho dias bons, me sinto bem e sou produtiva. Assisto séries e consigo me divertir sem muitos esforços. Mas, há pouco tempo notei que, quando não sinto ansiedade por um bom período de tempo, e posso dizer estou perto do que poderia chamar de um estado de relaxamento, fico em alerta tentando descobrir o que está errado. Paro tudo o que estou fazendo e fico ouvindo a minha respiração ser acompanhada pelas batidas ritmadas do coração que se tornam mais rápidas a cada segundo. Aquele frio na barriga aparece, sempre acompanhado pelo conhecido aperto no peito. Como assim estou bem? Depois de mais de sessenta dias sentindo ansiedade em quase todos os momentos, de procurar alucinadamente cursos online, acender velas aromatizadas — romã, baunilha e uma que não fui capaz de identificar — por longos períodos de tempo e que acabam me deixando com dor de cabeça, de pendurar o meu calendário do Friends para poder ter a confirmação de que os dias realmente estão passando, ler livros empoeirados que outrora foram esquecidos, comer muito doce e depois não comer nenhum, tomar todos os dias remédios para me acalmar no menor incômodo, assistir filmes que estavam na minha lista há muito tempo e outros que não queria mas vi mesmo assim, decidir pintar as unhas mas desistir quando é preciso escolher o esmalte, entrar e sair do mesmo aplicativo de rede social por falta do que fazer, hidratar o cabelo toda a vez que vou tomar banho até acabar com os hidratantes da casa, como posso me sentir bem? Me tornei estranha a esse sentimento. Espero que um dia o meu corpo não o veja como um alerta de que algo está errado, mas de que algo está bem. 

18.5.20

Dia 62: por Cândida Castro


Este é um diário da pandemia. Engraçado, não estou com vontade de escrever esta palavra.

Esperei algumas vezes por esta segunda, com uma expectativa de que algo extraordinário acontecesse, só porque este era o meu dia de escrever aqui. Faz seis semanas, pelo menos, que a minha rotina mudou e por isso, tive também pequenas surpresas, como ir de bicicleta ao supermercado e encontrar, na volta, uma calçada vicinal tomada de butiás. Que eu recolhi, lavei com vinagre e deliciou uma das minhas tardes de trabalho a distância.

Trabalhar no meu computador, no meu quarto, se revelou um prazer maior do que eu poderia imaginar. Eu acompanho o ocaso do Sol todos os dias, um banho de luz e cor na minha visão periférica, enquanto cadastro documentos e produzo relatórios. Aprendi nos primeiros dias a não ligar a luz enquanto a noite não chegasse por completo. Tenho visto o mundo fechar as cortinas do dia para abrir o espetáculo da noite. Porque seis semanas de noites estreladas e silenciosas, na sua maioria, é algo que eu só posso chamar de espetáculo.

A vida ganhou uma dimensão cósmica, só porque eu parei de andar de ônibus e fiquei parada o suficiente para perceber algo que o Sol e a Lua fazem há muitos anos. Ou o que meu coração faz, sem cessar, há mais de três décadas. Isso é extraordinário, fora da compreensão das pedras, dos metais, do plástico.

Eu temi quando soube que teria de voltar ao trabalho presencial. Senti a mão do destino pesando sobre meu caminho, e eu, impotente, chorei de rosto erguido. Eu me perguntei sobre como aproveitar minha última semana de vida, se eu mudaria algo. Fiquei feliz em perceber que eu não precisava mudar nada. Encontrei entre meus escritos um único conto que vale a pena, fiz uma visita rápida aos meus pais, ganhei um pedaço de panetone da minha irmã confeiteira, toquei violão, telefonei para as amigas mais próximas, dei mais uma volta de bicicleta e por fim, às 17 horas da sexta, fui a padaria do bairro e comprei um mil-folhas de creme novíssimo, que comi com um café recém-passado (grãos de Minas Gerais, meu favorito). Assim me despedi da vida.

Amanhã é o terceiro dia que tomarei um ônibus mascarada, com meu cabelo preso num coque, carregando água e comida de um dia todo na mochila. Tenho passado álcool gel nas mãos até para abrir a gaveta da escrivaninha. Uso quatro máscaras durante o dia, que vão direto para a máquina de lavar assim como toda a minha roupa logo que chego em casa.

Talvez eu esteja exagerando. Afinal, na quarta passada, descobri que nesse tempo todo eu não limpei nenhuma embalagem dos produtos que eu trouxe para casa. Pode estar aqui, no meu balcão de cozinha, perto dos pratos fundos.

Se eu morrer, ao menos voltarei para a terra e serei parte de tudo que já viveu neste planeta, como outros antes de mim. Não será o fim de tudo. Se não, vamos a outro mil-folhas na semana que vem.

17.5.20

Dia 61: por Fernando Gomes

Sexta fechou uma semana que fizemos o que não era recomendado, e ontem o guri começou a tossir, sibilar, reclamar da difícil respiração, do coraçãozinho. Espirrou o dia todo, e quando falou em dor na garganta, eu gelei. Três e meia da manhã me chamou. Tava todo molhado de xixi. Depois que troquei o pijama e trouxe pra nossa cama, dormiu. Eu não. Droga, não devíamos ter ido a Porto Alegre no Dia das Mães + aniversário do vô. Mas a insistência era grande, e tomaríamos todos os cuidados. Seria tri para as crianças verem a priminha que já vai fazer um ano, e ótimo para meus pais se animarem matando a saudade dos netos depois de dois meses.

Eu sei, talvez não precisasse ter ido no super nem no outro mercadinho perto da casa da minha irmã. Calma, não deve ser nada. Não levaria uma semana inteira pra começarem os sintomas. Será? E por que a mana, eu e mais ninguém de lá apresentou quadro parecido? Quer dizer, até onde eu sei. Quando amanhecer vou perguntar. Fica frio, man, é só paranoia pela sensação de ter estado no meio de tanta gente, 100% de máscara. Aqui em Canela eu ainda não tinha visto isso.

A culpa é uma desgraça. E se...? Melhor parar de ver tanta notícia, é muita energia negativa. Até rezar já rezei. Tô há dias pra fazer aquela doação. Na dúvida de seguir ajudando, mesmo que só com 5-10 pila. É quase nada, e pra quem recebe, no volume, faz diferença. Se bem que eu tô sem receita desde fevereiro. Mas se for ver, é o valor de 1 ou 2 cervejas. Fudido, fudido e meio. Doar só pra aplacar esse sentimento de quem rateou e tá devendo, vale? Ou tem que ser espontâneo total pra ser de verdade? Não viaja, que que o cu tem a ver com as calças?

Por falar em cu, tá uma merda geral. Tanta gente sofrendo. Presidente filha duma puta. Cambada de retardado quem votou nesse doente, tinha que perder o título por três eleições, no mínimo.

A visita pra bisa foi a única parte totalmente segura desse passeio indevido. Ela à distância no portão, apesar de não estar de máscara como a gente. Também não desceu com o aparelho auditivo, então quase nem deu pra conversar. Tomou esporro da vizinha que parou pra saber como ela passou a semana. Disse que outro dia o motoboy ficou apitando até em outros apartamentos, já que a vovó não escutava o interfone. “A senhora tem que usar o coisinha na orelha, gastou uma fortuna nele!” Perguntei se ela ainda ouvia rádio. Tive que repetir a pergunta duas vezes. 95 anos. Passa o dia no face, whats, netflix. “Tô de saco cheio, queria ir no Praia de Belas, pegar um cinema. Não vai passar isso?”

Vai, vó. Vai.

Amanheceu e o Chico tá melhor. 

Vai passar.

16.5.20

Dia 60: por Jéssica Ribeiro Daitx


Eu comecei bem a quarentena. Apesar da incerteza dos primeiros dias, os que se seguiram pareceram uma oportunidade boa demais para não agarrar com unhas e dentes: estar em casa trouxe possibilidades que, até então, eu não tinha. Cozinhar, desenhar, escrever, cuidar de mim. A rotina exigia uma rotina mais rígida, estar em casa flexibilizou tudo. Eu busquei acompanhar as notícias, assistir aos jornais, assimilar cada número como uma vida e não deixar de vê-las com a singularidade que lhes caracteriza. Em paralelo, entretanto, eu produzia. Comecei dois cursos nas minhas áreas de estudos, cursos longos. Passei a fazer aulas de desenho. Adicionei uma faculdade a este mix, para aproveitar ao máximo esta nova disponibilidade. Terminei de escrever o meu primeiro livro, e tirei da gaveta muitas das minhas várias ideias estacionadas. Dei andamento a alguns projetos, especialmente aqueles que já não visitava há tempos. Costurei alguns desejos e passei a pensá-los de forma mais concreta. Aprendi receitas variadas e cozinhei o meu almoço, no horário de intervalo do trabalho, para ter o prazer de comer comidinha feita na hora. Decidi me ver, tirar um tempo para entender quem sou e visualizar o espaço para o qual estou me encaminhando. Retomei cuidados com a saúde, para atingir o tão sonhado estado de bem-estar do corpo. Eu não teria tirado tempo do essencial da minha rotina para fazer qualquer uma dessas coisas antes. Eu sei que esses desejos habitam o cantinho escondido da minha cabeça há tempos, cutucando vez que outra, para ver se eu tomo a iniciativa de deixá-los livres. O isolamento libertou-os todos. Essas vontades estão dividindo comigo este momento. E tem sido bom, tem sido construtivo. Por me olhar tão pouco na mecanicidade do dia-a-dia, eu tinha dificuldade em saber o que acho de mim, o que acho do que faço, o que precisa melhorar dentro disso que me constitui. Muitas das respostas estão claras agora, porque a lista existe e está em andamento, o que é mais do que jamais esteve.

O problema reside do lado de fora desta bolha, porque do lado de fora tem gente morrendo. Do lado de fora, enfrentamos desarmados dois inimigos letais – e tem sido difícil projetar quem vai ser o responsável por matar mais. Do lado de fora, as pessoas estão perdendo a perspectiva. Do lado de fora, as pessoas estão desesperadas. Dentro da minha bolha, correndo comigo e contra mim, ao mesmo tempo, eu reservava à realidade apenas o momento inicial dos meus dias quando o distanciamento social começou. Agora, os dias passam tomados por ela. A motivação foi contaminada. A vida real pesa e as palavras parecem carecer de força para deter o esmagamento. Por ter pensado tanto na posição que ocupo enquanto ser humano, corrói a mim perceber outros seres humanos caindo em valas por irresponsabilidade. Dói perceber quem morre e porque morre – e que ninguém tem dificuldades em entender o público alvo da morte, porque o país em que vivemos nunca deixou tão clara a desigualdade, e sua intenção em agravá-la. Indigna saber que a violência aumentou em casa e que as pessoas sofrem impotentes, sem poder encontrar conforto no local que deveria ser porto seguro. Sinto estarmos todos caminhando em direção ao momento do pesadelo em que desejamos, afobados, abrir os olhos para deixar o cenário de brutalidade e retornar ao quente da cama, ao conhecido do espaço; os olhos já estão abertos e a realidade permanece cruel e teimosa a distribuir monstruosidades. 

Contagem Regressiva

Chegou sem vestes vestidas
Andou em vestes puídas
Buscou sob olhares de escárnio,

                        abandonado rebento
                        em tentativas,
                        pouca vida
                        em postulados,
                        vívido excesso
                        em vigílias,
                        sujeito a
                        breves sinas,
                        perdido
                        em rotinas de anedota.

Debateu múltiplas saídas
Permaneceu em rotas retorcidas
E, então, morreu, sem entender nada.

Escrevi este poema há alguns semestres. Foi uma provocação da faculdade. Há coisas de que desgosto profundamente, mas por ter sido escrito no início do curso, compreendo o processo como parte do meu aprendizado e mantenho-o assim. Já até tentei ajeitá-lo, e talvez o faça um dia, mas ele comunica exatamente o que eu sinto, com palavras que não são as minhas de agora, e por isso parecem estabelecer diálogo: a eu que fui deixando marcas para a eu que sou. Tenho retornado muito a ele ao longo das últimas semanas. Acredito na morte do autor, e considerei desconsiderar este pedaço do parágrafo, mas escrevê-lo faz parte de assimilar este todo que nos foi dado. Somos todos ou os muitos rebentos abandonados, ou a plateia que os acompanha e, se antes morreriam sem entender nada, agora o fazem privando entendimento a qualquer um. Não entendem os que perecem nem os que permanecem. Os poucos que se dizem esclarecidos atalham as rotas para o fim. Foi o crime de permitir esta realidade que fez a experiência do isolamento ruir. Os números sobem, os corpos empilham, e os gritos que representam ecoam, por todos os lados. Por que tanta gente finge surdez?

São quase dois meses e o horizonte reserva mais alguns. Sessenta dias de exílio ao avesso (como sabiamente o chamou Willie) e não há como esperar apenas flores neste campo minado. As paranoias e as culpas estão, de prontidão, cercando o meu espaço, aproveitando mínimas oportunidades para consumir, sorrateiras, o otimismo. Nestes tempos não têm sido difícil para elas, que vivem da exploração de rachaduras. Sei de sua presença por manifestações que variam em magnitude, mas deixam rastros de angústia e ansiedade. Eu devia ter aprendido que respirar fundo é mais efetivo que exasperar frustrada, mas às vezes essa é a única saída válida e abraçá-la também é conhecer-me mais.

Conforme escrevo estas palavras, lembro a mim da razão pela qual as componho e, então, retomo o meu ritmo de novo: entre os muitos altos e baixos, controles e descontroles, agarro-me à criação, às suas múltiplas possibilidades e à urgência em mantê-las, que é o que, desde que me conheço por gente, me mantém sã, alerta e determinada. Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobre e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Clarice sempre entendeu que é a escrita a maior afirmação que tenho e a maior justiça que conheço, portanto, deixo a ela o fim do meu relato.

15.5.20

Dia 59: por Eva Mothci

Fechando 60 dias afastada, dois longos meses saindo de casa o mínimo possível. Um tempo estranho e atípico mas vou sobrevivendo sem maiores paranoias. Quem me conhece sabe que tenho um temperamento à polyanna, então ok. É preciso usar máscara, ter cuidados com o que vai para fora e o que entra para dentro de casa – sapatos além da entrada, nunca mais, uma das primeiras lições da pandemia. Mas confesso que nunca limpei tanto o chão e as superfícies. Quero ficar em casa tranquila e me sentindo razoavelmente segura. Porque lá fora tá estranho, porque eu não tenho mais a paciência que tinha, detesto essa propensão a julgar os outros e pretendo ver o fim desse tempo.

O trabalho com texto praticamente desapareceu, o bar que abrimos fechou e até a volta, graças às pessoas que nos finais de semana deixam os gatos aos meus cuidados, não estou exatamente desocupada, embora tenha bem poucos clientes. Driblo a saudade dos filhos e dos amigos com os apps da vida. Acompanho as notícias em meia dúzia de fontes que confio pra não enlouquecer de raiva – sim, faço o possível pra não olhar nem escutar vocês sabem quem. E sou ótima companhia, como quando tenho fome, durmo ao ter sono, me divirto sempre que posso, leio muito, bordo, canto e danço pela casa, arranho o violão, invento umas bobagens, faço drinks e fumaças. 

Enfim, vou seguindo. E os gatos, Minoca e Ronronildo, sempre me acompanhando. Grandes parceiros, meu pretinho e minha ruiva amados. E meus filhos, que sempre foram e sempre serão o meu grande alento – no dia das mães, fizemos uma live de cinco horas e meia, conexão Porto Alegre-Curitiba. Foi maravilhoso passar a tarde com eles. Amor sustenta!

E então, conto a vocês que, no meio dessa nova rotina que não tem – pra mim – rotina nenhuma, começou uma pequena reforma no meu apartamento. Pequena, mas com tudo a que se tem direito: reboco, massa corrida, retirada de madeira, troca de portas, tinta, barulho, sujeira. Mas é o que acontece quando o apartamento é alugado. Depois de (muitos) pedidos, o proprietário concordou e os trabalhos começaram. Hoje foi o segundo dia, das 9h às 14h porque ele terminou as tarefas mais cedo. Na segunda-feira deve ir até às 18h.

Daí, a polyanna aqui se pega, depois que o rapaz que está fazendo as obras vai embora – rapaz que troca a roupa ao chegar para trabalhar, anda de meias pela casa e lava muito as mãos – passando pano com álcool em tudo que é maçaneta, espelho, móvel e qualquer outro lugar que possa ter sido tocado, e passando água sanitária com canela pelo chão. E me pergunto se era, realmente, hora de estar fazendo isso, nessa época em que não dá pra visitar ninguém e fugir um pouco da poeira, nem ficar batendo perna na rua. Mas na verdade a hora já passou faz tempo, era preciso e necessário. O inverno vem aí e era MUITA umidade. Então, sim, me respondo. Vamos lá!

No mais, vivemos. Como já disseram por aí, lutar contra o vírus e resistir aos vermes ao mesmo tempo é para os fortes. Que tenhamos, então, muita força. No fim das contas, ainda bem que tem obra na minha casa. Lá adiante, vai ser bem bom ter o apê com a cara que eu queria, consertado e renovado, para poder de novo receber os meus queridos e as minhas queridas daqui e de mais longe. Porque vai, sim, passar. Tudo isso e todos esses passarão. Nós ficaremos.

14.5.20

Dia 58: por Raphaela Donaduce Flores


Par ou ímpar

Ganhei no par ou ímpar. Minha vez de ir ao super, nem acredito.

Vou até o quarto, escolho aquela calça jeans maravilhosa que comprei antes da quarentena, que ainda estou pagando e não usei. Nem acredito que terei oportunidade de tirar esse moletom que habito há alguns dias. Escolho uma blusa preta para contrastar com a máscara vermelha de bolinhas que a prima do meu marido costurou. Olho no espelho, estou ótima. O cabelo ainda está bonito, sorte que lavei ontem – já passava dias longe do xampu. Falta só base e rímel. Batom e blush não precisa, ninguém vai ver minha boca mesmo.

Ir ao Zaffari é o grande evento para nós. Uma ótima desculpa para sair de casa sem dor na consciência, afinal é necessário. Só o par ou ímpar é capaz de fazer com que a gente não discuta por isso. Nada de argumentos, justiça ou democracia. Não importa quem foi por último ou quem está precisando ver gente. Sorte é sorte. E eu geralmente ganho, sempre vou no ímpar com um dedo só. Caetano é par, com dois dedos. Não sei como ele ainda não se deu conta.

O Zaffari é aquele momento de colocar fone de ouvido e sair caminhando bem livre e louca pela rua. Cabelos esvoaçantes, vento na cara, sol. Ok. Estou romantizando. Andar com máscara é terrível, eu mal consigo respirar e quem usa óculos sabe: a lente fica toda embaçada por causa da respiração.

Tenho amigas que estão tão desesperadas para sair de casa que cogitamos marcar um encontro em frente à geladeira de Heineken do Zaffari da Ipiranga. Happy hour contemporâneo. Não fizemos.

Ruim mesmo é chegar em casa. A combinação aqui é a seguinte: quem teve o privilégio de ir ao super também deve arcar com o serviço completo. E isso inclui encher um balde com água sanitária e limpar cuidadosamente todas as mercadorias. Todas. Depois, higienizar chaves e celular, passar pano no chão, na maçaneta e em todas as superfícies que encostou. Lavamos até as malditas sacolinhas e estendemos no banheiro para secar. Por fim, tirar a roupa e tomar banho. Nessa hora eu sempre me pergunto se valeu a pena ter ganhado no par ou ímpar. Concluo que sim. Volto para casa cheia de novidades.

Sabia que estão medindo a temperatura de cada um que vai entrar? Fica um moço na porta com um tubo de álcool gel e a gente precisa esticar as mãos e se lambuzar bem. Na frente dele, porque ele confere. Dessa vez tinha uma fila enorme, quase virando a calçada. Entram de dez em dez. Voltaram a vender Perfex. Nas primeiras duas semanas da quarentena um mistério nos assolava: os clássicos panos de limpar pia sumiram das prateleiras. Será que todo mundo resolveu comprar ou a fábrica faliu? Acho que todo mundo resolveu comprar, mas agora, graças a deusa, devem ter aumentado a produção, ou a galera parou de estocar. Encontrei a Lívia perto dos produtos de limpeza. Ela disse que estão tentando organizar uma pré-venda online daquele livro que ia ser lançado, mas não foi. Esses dias, acho que vi o Duca Leindecker no estacionamento. Passei o resto da tarde cantando Pinhal.

Uma ida ao Zaffari rende.

Outra coisa que rendeu assunto foi o convite da Julia Dantas para escrever aqui no blog. Na hora, o sentimento de empolgação se misturava com aflição. Perceber que recém começava maio e que ela já organizava os posts até o final do mês foi um choque de realidade.

Estamos isolados desde 16 de março. No início eu pensava que ia enlouquecer, que não aguentaria tanto tempo sem ver ninguém além do marido e de um bebê de um ano e meio sem escola. Agora estamos chegando aos 60 dias e isso tudo ainda vai bem mais longe. The winter is coming.

Mas a verdade é que não enlouquecemos. E percebo a força do power trio Rapha-Caetano-Joaquim (ou quarteto, considerando Valdir, o pug), com momentos que seguirão na memória. Driblamos os dias de tédio com música, os de ansiedade com pastel de carne feito em família, exorcizamos as incertezas com giz-de-cera colorido nas paredes, e a cabaninha feita de lençóis rende algumas horas de fantasia e distração com o pequeno. Nas noites silenciosas o vinho faz companhia, chamadas de vídeo com amigas mudam o humor, mensagens inesperadas dão emoção ao dia e nada como acordar às 5h para desfrutar de algumas horas sozinha na sala.

Estamos nos adaptando, com algumas estratégias. Diminuir o tempo dedicado a acompanhar as notícias ajudou. Começar a escrever também.

Quando falei com a Julia comentei que eu andava fazendo um diário da quarentena. Ela disse que invejava quem consegue escrever diariamente. Respondi que não faço sempre, só às vezes, mas que já ajuda. “Também, todos os dias são tão parecidos, né?”, ela respondeu.

São mesmo. Exceto aqueles que eu ganho no par ou ímpar.