Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

31.3.20

Dia 14: por Lu Thomé

Acordamos. Eu digo: bom dia, filho. E ele responde: bom dia, mãe.

As manhãs, as tardes e as noites são rápidas por aqui. O tédio ainda não encontrou uma brecha em nossa agenda. Embora mencionar "agenda" seja falso. Porque, de fato, seguimos sem uma programação estabelecida. Durante o isolamento, temos os compromissos das refeições e apenas outros dois: o sol na rede, entre 10h e 11h, quando a luz toma conta da sacada; e a aula de taekwondo do Lucas pelo Zoom às 15h. O restante vai acontecendo. 

O verdadeiro e grande obstáculo é dar conta de uma criança de sete, quase oito anos, cheia de energia, querendo brincar e que pergunta a cada minuto quando poderemos sair de casa. Você que está colocando as leituras em ordem, maratonando no streaming ou faxinando a casa inteira: parabéns. Por aqui, a missão é encontrar coisas que possam entreter o pequeno. O ritmo escolar reduziu e (confesso) tenho ignorado os e-mails com exercícios e temas. Preferimos outras atividades. Já conversamos por horas, menos sobre o vírus e mais sobre as teorias dele de que vivemos em uma narrativa onírica. Nas palavras do Lucas: o sonho de um cara meio maluco, quem sabe. Ele encenou uma grande guerra com bonecos e desenhou os cenários. Já vimos duas vezes todas as temporadas de O incrível mundo de Gumball (que eu amo) e uma vez os episódios de Clarêncio, o otimista (que eu detesto).

Hoje começou igual a todos os dias das últimas duas semanas. Café da manhã. Lucas na sala vendo tv, e eu trabalhando em ritmo usual. Banho de sol na rede. Almoço. Conversa pós-almoço. Mais trabalho para mim e lápis de cor para ele. Bolo de lanche para ele e café para mim. Aiáá, aiáá, aiáá às 15h no meio da minha sala. Depois seguiremos com mais tv, mais um lanche, janta, tablet para ele e um livro para mim e vamos dormir. As eventuais e tensas saídas para a rua (supermercado e farmácia) eu deixo para fazer sozinha, nas folgas que o Lucas vai para o pai. E, nestas excursões, é fácil notar o aumento da distância que acompanha a redução dos sorrisos. Como se qualquer afeto possa também transmitir o vírus, escolhemos segurança e leves acenos de cabeça.

Às vezes, bate o cansaço. Já dormimos mais do que o relógio permitia. Já acordamos cedo. Já madrugamos fazendo qualquer coisa. Ele já me disse "tu está de saco cheio de mim" e era verdade. E já falamos mais "eu te amo" do que em muitas outras épocas. Eu te amo. Também te amo.

E, talvez, o momento mais revelador tenha acontecido na rede. Estávamos amontoados. Ele: o cotovelo acavalado no meu braço e um celular velho nas mãos jogando Tape it up. Eu: esparramada no tecido e com a mão apoiada no chão, impulsionando de vez em quando para garantir um balanço. Vai e vem. Vai e vem. Foi no sábado. Dia do meu aniversário. Lucas disse: vamos tirar uma foto e tiramos com as línguas de fora e caretas tenebrosas. E depois veio: tem uns vídeos aqui.

O que veio foi catarse: por mais de três minutos, acompanhamos som e imagem de uma caminhada nossa até o supermercado. Duas quadras e meia. De diálogo, passos e perguntas. Algum YouTuber ensinou que não se filma os rostos. Então, Lucas mirou apenas a calçada e os pés. Pelo chinelo que ele usava imaginei que era dezembro. A minha saia jeans longa e os tênis brancos. O play avançando e uma sensação gigante de nostalgia foi preenchendo os espaços do pensamento. As nossas caminhadas quase diárias para saudar os cachorros da rua e comprar tomates. Sempre compramos muitos tomates. Um ritual que, agora, perdeu o sentido. Que não existe na quarentena. E que, bem possível, passe a carregar o peso dos dias que estamos aprendendo a viver.


É feito um perfume de flor que enfeita o ar. Só que é mudança, transformação.

Muito se fala sobre a necessidade das pessoas encararem o fato de que o mundo não será mais o mesmo. Eu acho que as pessoas não são mais as mesmas. Pelo menos aquelas que se depararam com algum sinal ou reflexão. Aquelas que, no meio do caos, do medo e da incerteza, conseguiram - como eu e o Lucas - elaborar algum tipo de arqueologia genética. Estamos aqui. Escavando carinhos e receios, e seguindo no isolamento presente para aguardar a versão futura de um passado nosso que já está perdido.

30.3.20

Dia 13: por Charles Dall'Agnol e Felipe Massaro

SEM ABREVIAÇÕES

FELIPE: Cara! Como você está? Certo que sempre foi um ermitão, mas mande notícias da quarentena!

CHARLES: Felipe, cara, saudade. Nesse momento de distanciamento, obrigado por ter entrado em contato. Então, meu... Está uma verdadeira montanha-russa! E você me pegou na parte mais “emocionante” do circuito. Home-office não é pra mim, o isolamento total está no seu vigésimo dia apenas e não está me fazendo nada bem. Logo após o carnaval, ser enjaulado assim, fiquei odiento, pirando dentro de casa com a sensação de que tudo acabou antes mesmo de começar. Estou preso em monólogos tortuosos de nostalgia por uma vida perfeita. Puro ressentimento. Já engordei uns 5 kg. Cancelaram um projeto meu. Foi um golpe, que eu recebi em cheio. Meu pai também não está nada bem das pernas. Estou abatido, Felipe. Mas como estão as coisas por aí? E acima de tudo: como você está reagindo a quarentena?

FELIPE: Charles, mesmo com notícias tristes, é um alento receber tua mensagem em meio a este amontoado de garrafas boiando nas redes sociais. Mensagens de esperança, links de desespero e infográficos sóbrios perdidos em grupos e feeds revoltos, sem respostas ou comentários. É sempre bom ter um retorno. Por aqui as coisas estão difíceis também: muita informação, medo e quilogramas adicionais (estou perdendo pra você, 3kg por enquanto). O que muda é que na Noruega não temos essa dose de sacanagem que Deus, brasileiro, reservou para os seus conterrâneos. Espero que os teus projetos voltem logo, quando esse pesadelo acabar, e que teus pais fiquem bem. Aqui continuo trabalhando, apreensivo, a tese parada, a musa voltou pra floresta, o sol chamando lá fora...

CHARLES: Eu sairia de casa, preciso muito ir dar uma corrida no parque – eu que gostava tanto de sol agora acho excessivo e só me sinto feliz quando acordo de madrugada pra curtir aquele silêncio que me tira de mim mesmo. Sim, porque minha mãe já acorda me ligando pra saber como eu estou e pra me impedir de ir. Me ama tanto que me sinto o próprio inseto do Kafka, Felipe! Sou um gorila na jaula, realmente. Logo após o carnaval, ser trancafiado assim... Escrevi uns poemas. Mas muito eróticos.

FELIPE: Mas são os melhores! Hehe Você me apresentou o Knausgård, sabe o que é o inverno norueguês. Aqui, desde outubro vivemos na escuridão de Oslo. Ontem pela primeira vez encontrei uma leva de formigas escandinavas na cozinha (são iguais às do Jardim do Salso). Depois de tanta noite e tanto frio, vemos enfim a claridade lá fora, mas continuamos presos aqui dentro, quase indiferentes à primavera. Uma sensação estranha de que o tempo já não é mais o mesmo, de que estamos numa grande insônia transatlântica... ou de que sonhamos no fuso horário de Brasília.

FELIPE: Digo isso, mas acho que você foi dormir.

FELIPE: Sobre esse lance do tempo. A pandemia chegou para nós algumas semanas antes do que aí no Brasil e, lendo alguns dados epidemiológicos e modelos matemáticos, fomos capazes de ver o futuro, como que numa espécie de astrologia reversa, microscópica – e um tanto óbvia. Alertamos amigos e familiares: vão ao mercado, isolem os idosos, se preparem, a tempestade está chegando na América Latina. Um negócio de profeta amador… um peso enorme, o desespero de abrir o jornal e pressentir a chegada dessa força que faz as extremas-unções de Bergamo serem dadas por Skype; essa face da morte que nos mostra a solidão vinda do Sul (lembra do siroco em Veneza?) e eu sem entender palavra do que diz o Aftenposten, Det ligner på krig, ikke sant?, porque o Google Tradutor às vezes não funciona no Google Chrome do celular. Enfim, estamos aqui mais preocupados com o Brasil do que com nós mesmos. Meu pai virou um bolsonarista doído. Tentei traduzir e retraduzir minha própria mensagem, em vão. A realidade talvez chegue muito dura para alguns membros da minha família, como chegará para muitos brasileiros.

CHARLES: Oi. Bom dia. Pois então, minha prima disse que por SC já estava normalizando tudo, que só faltava o transporte público. Ontem, aqui em POA, passou uma carreata na avenida Ipiranga com gritos de “o povo quer trabalhar! Deixa o povo trabalhar!”. E minha vizinha que já tinha dores nas costas em 1964 continua indo no caça-níquel clandestino da mercearia. Ao mesmo tempo a guarda municipal faz rondas – em Belém Novo e no Moinhos de Vento – obrigando as pessoas a ficarem em casa! Na garagem do meu prédio, um vizinho me mostrou sua 9mm, me falou das balas traçantes e da fabricação argentina e do treinamento e dos games que joga. Bom, você deve ter visto o discurso do Bolsonaro! Deve ter imaginado o impacto disso no povo! Uma loucura...

CHARLES: Tá aí um outro vídeo do presidente. O que é esse cara??? Ele não tá vendo o caos em Nova Iorque? O que aconteceu em Milão, na Espanha.... parece que o governador de SC mudou de ideia, minha prima falou. Tudo acontecendo tão rápido!

CHARLES: Acho que você já foi dormir, esqueci do fuso...


A janela está aberta. Latidos, uma conversa indistinta na televisão do vizinho do 312, um pássaro em marcha miúda dançando na lama acumulada no meio-fio. 


CHARLES: Estou entediado. Fiquei imaginando como você me responderia.

FELIPE: Esse discurso do Bolsonaro foi escrito e revisto por muitos e muitos assessores. Eles querem o caos! Nós, que temos o privilégio de poder estar dentro de casa, que temos uma casa, devemos fazer bom proveito disso. Felizmente temos acesso à informação e um nível de conhecimento que nos permite minimizar os riscos. É uma situação sem precedentes e talvez nunca mais o mundo passe por algo igual enquanto vivermos. Ou talvez isso aconteça com cada vez mais frequência, não sei. Não temos como saber, mas uma coisa é certa: vamos precisar aprender, cada vez mais, a viver com o desconhecido e o imprevisível ao nosso lado. 

CHARLES: Ah, o sono não vem! Já vi e li tudo o que existe! Entretenimento e cultura não significam mais nada pra mim. Voltei a anotar meus sonhos nessa quarentena. Às vezes são só imagens, “dinossauros comedores de calcinhas”, “monstrengo de pudim claro”, ou frases como “lenta é a dor infinita” – quem me disse essa foi o Larry David; subíamos uma montanha verdejante e ele tirou o tênis e a meia e enfiou um belo dum alfinete no seu próprio pé e disse lenta é a dor infinita. Em outro, caminho numa estrada, mas estou de olhos fechados, dormindo e caminhando, então vou atravessar a rua, aparecem milhares de ciclistas, e causo um grande acidente, e, ao terminar de atravessar a rua, escuto uma voz bem pertinho do meu ouvido dizer “a maçã está pronta”. É isso, é esse tipo de coisa o que mais me anima no isolamento. Ficamos mais próximos de nós mesmos... Está vindo, enfim, o sono...

FELIPE: Bom dia!

CHARLES: Bom dia!

FELIPE: Essa noite sonhei que anotava no seu caderno um sonho meu...

CHARLES: Está tudo muito estranho... também sonhei com você.

No caderno de sonhos de Charles está escrito assim:

30/03/2020

Estamos em uma grande varanda da casa de campo de algum familiar, sentados ao redor de uma mesa de jantar retangular rústica. É noite. Olhamos para o horizonte. Por trás das nuvens pretas, o céu está vermelho como se coalhado de framboesas frescas. Ficamos admirados com a beleza do fenômeno. Vindo de dentro do casarão de madeira, uma mulher surge atrás de nós. Não vemos o seu rosto, mas ouvimos sua voz dizer: “é preciso esconder a arma”. Estamos agora intrigados com a associação entre o céu vermelho e a necessidade de esconder a pistola 9mm, que não havíamos notado à nossa frente, sobre a mesa. Quando olhamos para o pátio do jardim, abaixo do pequeno lance de escadas da varanda, vemos os convidados da festa jogando cadeiras e revirando as mesas. Estão tomados pela cólera. Todos brigam entre si.

Nos olhamos e uma só voz sai de nossas bocas: “é preciso inventar uma nova maneira de lidar com a morte”.

A mulher sem rosto sussurra, como se fizesse parte de nós: “é lenta a dor infinita da História”.

Ao fundo, toca Haircuts for men: nothing special, nothing wonderful.

29.3.20

Dia 12: por Janete Viccari Barbosa

Como diria, se dissesse, o Millôr: livre escrever é só escrever. Desde ontem, oficialmente, faço parte do grupo que vai levar multa de quatrocentos e tantos reais se sair à rua sem um álibi justo. Fiquei pensando, puxa, vou ter de me esgueirar. Daí atinei, péraí, eu tenho álibis, calma, respira, não treme a voz quando a sirene soar, levanta as mãos, fala pausadamente. Não precisa levantar as mãos. Tu já tá ficando meio maluca com esse isolamento social!

Ok, mas estou mais do que em isolamento social, estou em quarentena há 11 dias, porque tive uma dorzeca de garganta, um mal-estar, então, catiplum, ficar em casa. E acho até que mesmo a garganta tendo melhorado logo, não tenho como saber se estou contaminando alguém, se era o coronavírus da hora ou não, por isso já sei que findos os 14 dias oficiais ainda ficarei alguns mais, de medo de fazer mal a alguém.

Enquanto isso, dormir no outro quarto. Ficar na ponta oposta do sofá. Me sentir meio assustadora quando tenho ataques de rinite. Sim, porque tenho rinite alérgica, que é uma chatice normalmente, mas agora pode parecer o anúncio do juízo final. Ainda bem que meu marido é distraído e vive mais dentro dos seus pensamentos, não parece estar me achando uma ameaça. Até almoçamos juntos. Cada um na ponta da mesa, claro.

Mas tenho um companheiro externo. Hoje ele está quieto. Até estou um pouco preocupada. Não ouço seus latidos desde o meio-dia. Na verdade, nunca fomos apresentados. Deduzi que ele é o cachorrinho (pela voz, não parece um grandalhão) do vigia da escola (que está fechada), do outro lado da minha rua. Sem vê-lo, deduzo pelos latidos quando ele está mais perto dos fundos do colégio, ou mais perto do portão (daí penso que alguém passou na rua lateral e ele se alertou). Ele não aparece no pátio do lado de cá, onde eu o veria. Pra ser mais objetiva, de fato, tanto o vigia quando o cachorrinho estão enxertados no meu enredo. Não, não os inventei!

Teve um dia, muito antes da pandemia, nas férias, que eu caminhava sob as árvores da rua ao lado do colégio e vi um rapaz arrumando coisas nos fundos, na parte onde não tem salas de aula. Tinha roupa no varal. E o cãozinho, este não apareceu. É talvez pouco para deduzir sua existência e ocupação. Mas todos os outros cachorros da vizinhança estão na rua ou na extensa área social do prédio além do meu, com seus donos e respectivos saquinhos de plástico. Não sou muito boa de ouvido, mas os latidos desacompanhados vêm sim, dali do colégio. Daqui uns meses, depois da pandemia, vou dar umas voltas ali por baixo das árvores. Gostaria de conhecê-lo pessoalmente.

28.3.20

Dia 11: por Priscila Pasko

Sábado/ 12° dia de quarentena

Sonho 1: Uma festa de gala. Diversas mesas redondas no salão. Vestidos longos. Alguém me beija no rosto e eu fico preocupada.

Sonho 2: Caminho no calçadão do Centro de alguma cidade. Pessoas circulando. Aos poucos, dou-me conta que, entre elas, há muitas ciganas. Passam por mim com um sorriso enigmático. Não falam, nem me pedem nada.

Meu dia preferido da semana. Há alguma promessa nas manhãs de sábado, uma esperança abstrata demais para eu defini-la. Melhor assim, o segredo.

*

Abro a janela do quarto. Pouco movimento na rua, levando em conta que seja sábado. Algumas pessoas insistem em suas corridas e caminhadas. Outras voltam da feira, do mercado. Retirei parte da rede de proteção da janela para enxergar mais adiante. Também para saber de onde vinha o barulho: do café aqui ao lado. Eram 9h quando escutei batidas, ruído de destroços caindo, serraram algum metal. Eu ainda estava deitada e com olhos fechados quando imaginei as faíscas luminosas em várias direções. Tudo chama a atenção agora. Qualquer sussurro grita.

Fiquei um bom tempo apoiada na janela. O seu Gerson, o chaveiro, concentrado, varrendo a calçada. Uma mulher caminhou por cima do montinho de areia, espalhando parte da sujeira. Não estou sozinha. Vejo que o cara do mercadinho da esquina observa o vai e vem da vassoura, que parece nova. No prédio da frente, o Gato Amarelo aproveita o sol, se distrai com algo invisível a mim. Logo ele deixa a diversão de lado e se espreguiça. Quero que o gato me ensine a sobreviver à quarentena.

*

Hoje o Jeferson foi ao mercado. Era a vez dele. Estamos nos revezando. As compras são feitas uma, duas vezes por semana, no máximo. Isso, para evitar nossa exposição - e porque é extremamente cansativo sair de casa. Precisamos adotar inúmeras medidas higiênicas: ele chegou, foi direto ao banho. Eu coloquei todos os produtos dentro da pia e lavei um a um. Impossível não refletir a que ponto chegamos. Lavei meia dúzia de ovos. Quebrei um deles em minha mão. Talvez eu tenha exagerado na força - eu sempre exagero na força. Nas embalagens de papel, passei um desinfetante. Em seguida, limpamos a casa com um pano molhado etc etc.

Tive que sair no final da tarde para ir à farmácia. Causa um estranhamento - e, hoje, certa tristeza - perceber, na prática, as ações preventivas. Paguei o medicamento com cartão de crédito. Para isso, precisei ficar na ponta dos pés para poder alcançar a máquina. Entre o balcão e eu, uma faixa exigia distanciamento. Assim que digitei a senha, a moça do caixa limpou o equipamento com álcool. Aquilo, o gesto. Me abalou. Acho que ela sorriu atrás da máscara que cobria quase todo o rosto. Sorriu com o olho.

Sei, obviamente, que as medidas são necessárias. Apenas lamento que, além do vírus, estejamos apagando cheiros, marcas, sinais. Qualquer vestígio do outro. Sem migalhas de pão pelo caminho. “Aguarde do lado de fora”, “mantenha a distância, por favor”.

*

Assistimos Self Made. Depois fiz a sequência de Pilates, do Circo. Sigo com os exercícios, três vezes por semana, além dos alongamentos nos outros dias, acompanhada do Jeferson. O lugar garantido é o corpo, li, certa vez, em um estúdio de dança.

Tenho lido poesia antes de dormir. Mesmo assim, desde que a quarentena teve início, tenho sonhado muito pouco. Amanhã vou dedicar mais tempo à leitura. Preciso sonhar mais.

27.3.20

Dia 10: por Fred Linardi

8h
Acordo no horário programado no meu celular, com uma música aleatória da playlist Have a great day, feita por algo ou alguém do Spotfy. A música escolhida pelo acaso é Good Vibrations, dos Beach Boys. A canção, que não começa com arranjos instrumentais, mas sim com a própria voz acho que de Brian Wilson, e me tira do sono com um susto: Aiiii (I - I love the colorful clothes she wears). Parece alguém querendo me pregar uma peça, mas dou um só suspiro, pois o imaginário da música é mais forte e me leva às praias que conheço e à liberdade de uma Califórnia em que nunca estive. Nunca estive em nenhuma, aliás. Será Brian Wilson, ou Dennis, ou Carl? Nunca sei quem é quem nos Beach Boys. Não importa, nenhum deles está aqui tentando me pregar um susto e agora todos já cantam juntos as boas vibrações. Me lembro do que está acontecendo e fico satisfeito por ao menos podermos ouvir música e ler livros. 

9h25
Sento para escrever esta entrada de diário. Escrevo o primeiro parágrafo com a música dos Beach Boys na cabeça, enquanto o bolo que eu e Dé fizemos ontem à noite digere junto ao café quente que tomamos há pouco. A temperatura dos dias já está mais amena neste começo de outono, o momento que eu esperava para voltar a pedalar pela cidade. Hoje não posso – ou escolho não sair – nem andar até a praça aqui da rua, para levar a Aurélia passear. Ela olha para mim e, surpreendentemente, seu olhar me passa uma compreensão quase humana: estamos todos presos e não há nada a ser feito a não ser esperar. Não estamos presos, estamos protegidos – ela me corrige.

10h08
A diferença entre a popularidade dos Beach Boys e dos Beatles é que sabemos quem são John Lennon e Paul McCartney. Diferença é um ingrediente da identidade.

10h40 
Sei que não estamos vivendo um grande extremo aqui na América do Sul. Temo que isso seja uma questão de tempo. Os cientistas indicam isso. Os jornais replicam. No entanto a minha vida e a vida daqueles que conheço parecem seguir quase iguais, não fosse o confinamento. Enquanto nossos nervos são abrandados por músicas, livros, filmes, culinária e memes, imagino quais seriam os memes dos miseráveis rindo de nós, que estamos preocupados até quando vai ter gasolina, ou por não podermos sair de bicicleta pela cidade neste ameno clima outonal.

De qualquer modo, cada um vive o extremo a partir do que tem como referência. Deparar-se com isso traz uma porção de ideias, que nos levam à aproximação de um fim da vida. A finitude próxima nos invade com uma culpa gigante. Aquela impressão de que vamos morrer antes de termos feito o que importava. Por que não larguei o emprego e fui embora viver no campo antes? Por que não investi naquilo que sei ser o meu verdadeiro talento? Por que não virei a mesa antes que a conta chegasse? Agora parece que a conta chegou com preço alto.

A culpa é uma neurose de cura muito mais complicada do que qualquer virose. Ela nos impede de sermos diferentes. Ela nos iguala na mediocridade. Os cães não sabem, pois não a sentem. Eles e os Beatles. A culpa é a virose da alma. 

15h08
Esperar não é fácil. Ao longo do dia vejo fotos de diversas cidades, inclusive Porto Alegre, com carreatas a favor da volta ao trabalho. Não é complicado perceber que essas pessoas não estão a favor da economia. Fossem a favor dela, estariam exigindo medidas de uma das maiores economias do mundo. Ainda seria uma atitude estúpida sair às ruas, mas se fosse pela economia, que fosse para exigir a destinação do fundo partidário às soluções econômicas, por exemplo. Na minha mente inventiva e nada especialista em política ou economia, crio hipóteses:

- Não aguentam ficar em casa, pois estar em casa é estar com os seus e, acima de tudo, consigo mesmo. É o momento de olhar para dentro, e isso inclui ver diante do nariz os fracassos da sua luta por glória. Isso não é fácil. 

- São idiotas produtivos. Me lembro da máxima “tem gente que é tão pobre que só tem dinheiro”. Vendo as imagens do buzinaço (sim, ninguém se valeu a sair a pé em prol do trabalho de gente que não usa carro para trabalhar), adapto a máxima: tem gente tão vazia que, para elas, não existe hora digna que não sejam laborais. Não param o suficiente para saber que não é preciso fazer para existir. Neste momento, em especial, a existência de muitos depende dessa baixa de circulação e produção. Quarentena não é uma palavra inventada em 2020. A existência é mais plena do que a subsistência.
Da minha parte, não ouço o buzinaço. Meu bairro não é central. Eu estava em casa, vivendo a minha realidade, que não é mais suportável do que as outras. De qualquer modo, tenho tentado viver melhor a cada dia. Além do trabalho, dos livros, das músicas e dos filmes, tenho resgatado a minha identidade. Celebro na minha casa o que há de diferente – aquilo tudo que os negacionistas lá de fora temem. Como é bom poder tocar um instrumento de acordes originais. Como é bom poder tocar.
*
Comecei o ano desejando Feliz Vinte-vinte. Achava mais simpático do que dois-mil-e-vinte. Feliz 20-20! Twenty-twenty. Twenty-twenty-twenty four hours ago I wanna be sedated.

19h
Deu cinco da tarde e resolvemos sair, descumprindo os planos. Desde sábado em casa, a saída acabou acontecendo nesse dia estranho para isso. A minha culpa foi maior que a resignação da Aurélia. Já fazia quase uma semana que ela não botava o focinho para fora. Além do estresse que ainda temo que ela desenvolva, a quantidade de jornal usado para suas necessidades tem sido quase o triplo. Tenho um bom estoque, que vem pelas mãos da gentil faxineira do prédio, que divide entre ela e mim a pilha vinda dos velhos moradores que ainda leem jornal impresso. Nos últimos dias passei a temer se há algum covid19 no meio desses cadernos. Prefiro não pensar.

Somado ao confinamento da Aurélia, acabou o sal, o açúcar e outras coisinhas que estavam perto do fim. Usamos todo o kit limpeza instalado na entrada do apartamento. Álcool gel, lenço umedecido, compartimento com pares de tênis que não passam dali para dentro de casa. Tudo pronto para o banho de profilaxia do retorno – pés, mãos, patas e guia de coleira, maçanetas e espelhos para acender a luz. Banhamos uma toalha com água sanitária e a colocamos como capacho do lado de fora, para as solas de sapato e coxins de vira-lata.

No mercadinho, a dona concorda comigo quando eu comento sobre o desespero de quem não consegue ficar em casa. Ela concorda, pequena comerciante, diz: “eles precisam saber esperar, pois logo passa”. É que nem todo mundo está preparado para olhar a própria casa, eu complemento. Ela arregala os olhos e concorda de novo, sorrindo.

20h
Li o conto A preocupação do pai de família, de Kafka. Estarrecido com algumas correspondências sobre o presente. Mas o que faz Kafka senão isso? Agora vou fazer hambúrguer. Mais tarde, a sessão de cinema será Morte em Veneza. Amanhã é sábado e tudo pode ser diferente.

26.3.20

Dia 9: por Rodrigo Aguiar

Completei hoje 10 dias de confinamento. Eu e meu coroa em uma casa no litoral gaúcho, o que são duas novidades. Há muitos anos não passo tanto tempo sozinho com meu pai e há mais tempo ainda, acho que uns 15 anos, não vou à praia. Ao mar sigo sem ir, já que o acesso à areia foi interditado no dia em que chegamos.

Esse tipo de cidade passa uma sensação de tranquilidade e segurança na primeira camada à vista. Logo abaixo desta superfície que tenta imitar subúrbios de filmes americanos, as placas de empresas de segurança, pregadas em todas as cercas, explicam um pouco mais sobre a situação real e não deixam dúvidas de que o país desigual nos segue onde estivermos. Carros não se movimentam, mas motociclistas desse exército privado circulam o tempo todo. A casa – todas as casas – tem sensores para alarmar assim que alguém caminhe em pátios, salas e até quartos. Ao lado da porta principal, um botão de pânico – que, aliás, acionei sem querer. Um patrulheiro equipado para a guerra surgiu em dois minutos. Estranho e impressionante.

Eu e o coroa lemos o mesmo livro em um intervalo de poucos dias. Mesmo há tanto tempo sem prosas longas, não é do passado nem dos nossos trabalhos que falamos a maior parte do tempo. Conversamos sobre as impressões da leitura. Poderoso objeto esse, e poderosa a conexão que ele cria. Nos dá um respiro das redes sociais, que em minha bolha estão indignadas e aflitas com o que parece o fundo do poço de um processo político que aterrou o país nos últimos anos.

Nos finais de tarde tenho acompanhado os telejornais das principais redes de comunicação, outro hábito que perdi há tempo. Talvez o distanciamento tenha realçado a percepção de que apresentadorxs/repórteres falam como se do lado de cá da tela estivessem idiotas. Na melhor das hipóteses, adultos infantilizados. Entonações consternadas, linguagem tatibitate, conselhos sempre num tom grave de aula de moral e cívica. Um tom de quem vai cobrar, no dia seguinte, o que foi apresentado no dia anterior.

Na casa ao lado, um casal de jovens adultos lida com suas duas crianças, forçadas a evitar um mar coberto por um sol sedutor. Justo nesses dias o céu é o mais limpo do ano. Não sei se é possível explicar para aqueles pequenos exatamente o que as impede de cruzar algumas ruas e se esparramar no tapetão de areia que avistam da janela. Conforme os dias passam, a aparente normalidade parece que vai desbotando, e as crianças já não correm tanto pelo quintal, passam mais tempo dentro de casa, imagino que em celulares ou videogames. Quando menos gastam energia, mais se cansam. Assim como todos nós.

Não falamos muito sobre o que vai acontecer, sobre onde ou como estaremos nos próximos dias e semanas. À distância, e em geral durante a noite, acompanho amigxs artistas que têm dado aulas e feito apresentações ao vivo direto de suas casas. Tenho lacrimejado um bocado ao acompanhá-lxs e preparado o grande beijo que vou deixar em suas caras lindas quando a rua voltar à vida. Nestes dias em que até o Asterix enfrenta a morte ou coisa parecida, é um alento e tanto.

25.3.20

Dia 8: por Vanessa Silla

Bom dia?

Simplesmente me mudei. Primeiro foram algumas roupas de verão, dois shorts, quatro camisetas, uma calça, dois pijamas, alguns livros e os trapos literários que estavam guardados na mochila. Concentro meu trabalho de doutorado nesta mochila, junto com fones de ouvido, pen-drive, e agendas com bancos de palavras. Estou zanzando para a reta final e devo defender meu trabalho no final do ano, mas por enquanto a única defesa efetiva que venho fazendo é contra o coronavírus.

Como todos: lavo mãos, álcool gel, Skype, zoom, panelaço, limpeza da casa, cozinha e zero produção literária, mas vai passar.

Vai passar porque é preciso fechar os ciclos, fechar a boca, fechar os egos, e abrir a consciência universal daquele tão repetido mantra – estamos todos aprendendo a ser humanos.

Então me mudei com cachorro e filha para a casa do meu namorado, às vezes marido, ou sempre marido, às vezes namorado. Eu não gosto de casamentos, acho chato, rotineiro, trabalhoso, um protetor invisível contra a prática do sexo - o tesão. É como se colocássemos uma grande camisinha na relação, deixando para dentro a parte mais sensível e deliciosa. Mas aí, sou eu, comungando com meus rascunhos de pensamentos. Quando me mudei pela primeira vez, foi mais um reconhecimento de área, quem fica aonde, qual o melhor lugar para colocar o pratinho do Euro (meu cachorro se chama Euro), onde coloco as coisas do banheiro? Estamos dormindo num estúdio fotográfico, algo imenso, branco, com mil combinações de luzes e que nos leva a imaginar ensaio fotográficos. A mim, despertou um desejo enorme de escrever palavras por todos os cantos caiados, não sei se não vou me atacar um dia. Muito provavelmente até o final da quarentena estarei  pichando meu tédio por ali. Estamos indo bem, pensei, temos espaço, comida, já tomamos a vacina da gripe, estamos juntos e separados, tudo ao mesmo tempo, tudo certo, lavo as mãos outra vez, até para pensar tenho que lavar as mãos. Na primeira noite do acampamento dormimos com certa alegria, um revival dos tempos de colégio, providencias do espírito que por vezes aparece para salvar o humor das tragédias, mas às seis da manhã a vizinhança cobrou seu preço. O Euro latia para qualquer barulho, minha filha se remexia na cama e eu arregalei os olhos, como se estivesse buscando rede, tentei conectar a real dimensão deste pandemia com a realidade impotente dos homens, tudo em meio a vozes de vizinhos, chutes que o menino da casa ao lado dava na bola contra a parede, os lixeiros recolhendo os restos de uma rua inteira recolhida em suas casas, e os primeiros sinais de perigo. Estamos mesmo tomando todas as medidas para passar por esta doença?

Claro que não.

Me mudei outra vez ontem, para o mesmo lugar. Fomos, pela última vez, penso, no meu apartamento, buscamos todas as comidas do freezer, roupas de inverno, travesseiros, um brinco pequeninho, e nada mais. Preciso de um enfeite, um pijama, uma atitude proativa, um computador e uma esperança. Agora vai.

Estamos no quinto dia aqui, ou será que já é o oitavo, não sei. O tempo está passando diferente. Não preciso mais correr do escritório para ensinar, não vou nas casas nem nas empresas dar aulas de inglês. Meus alunos aparecem para mim com rostos intraduzíveis de espanto, medo e curiosidade. Primeiro se atrapalham com os aplicativos, depois comentam sobre o vírus e no final demostram uma certa alegria de me ver. Oi teacher!!! Aos poucos vão relaxando e, no término de uma hora, parecem vivos, algo como o obsoleto “yes, we can”.

Hoje levantei ocupada e de algum modo feliz. Entrei numa rotina nova: conheço o barulho do lixeiro, Euro não late mais para ruídos estranhos, minha filha tem EAD,  tenho aulas agendadas, tiramos do freezer o almoço, daqui a pouco vou pegar um sol e replantar algumas mudas, e depois quem sabe puxar de dentro da mochila os textos já impressos do meu romance/tese, e alinhar com as ideias que também terão tempo para se deslocarem para fora da mente. Preciso escrever, tenho que contar histórias, precisamos da arte, de modelos de empatia.  É tele-entrega gente.                                 

24.3.20

Dia 7: por Alexandre Rodrigues

Uma das piores coisas sobre antecipar uma pandemia, aprendi a duras penas e você deve saber a essa altura, é o quão difícil é calcular um estoque.

Passei a comprar mais comida no começo de fevereiro. Por obrigação profissional, estava atento ao dia em que o vírus começou a derrubar bolsas de valores, 24 de janeiro, para ser mais específico. De modo que a cada ida no Nacional na Encol, um lugar triste, mas que não substitui a tristeza essencial de meu supermercado anterior, o Nacional da Protásio (era mesmo um dos lugares mais tristes da Terra), passei a comprar comida a mais.

Macarrão, arroz, feijão, mais macarrão, a despensa foi se enchendo, eu pensando nos preparadores, aqueles malucos nos Estados Unidos que eram ridicularizados por passar a vida abastecendo abrigos nos Estados Unidos onde poderão viver por meses, anos, a essa altura gritando para todos nós: “VIU, VIU!”  Estava virando um deles.

Tudo foi feito razoavelmente antes das pessoas se darem conta do que viria, sob o olhar cético da minha mulher e a constatação velada da babá da minha filha de que eu enlouquecera de vez. De modo que ali pelo dia 1ª de março estava pronto. Se os supermercados lotaram quando o isolamento se tornou inevitável, não é culpa minha.

O que não quer dizer que tenha sido muito bom nisso. Macarrão e algumas outras coisas foram na medida certa, assim como a quantidade de frango. Papel higiênico, estamos ok. Mas uma geladeira, principalmente um congelador, dificilmente consegue guardar comida para três meses.

E velas, por exemplo. No momento, contamos, Simone, eu e Dora, com dois tocos e a confiança na bateria do celular se a luz faltar. Simone lembrou dos produtos de limpeza. E precisamos de vegetais frescos, que aprendi a desinfetar em um dos 1.113 textos que li sobre me proteger. E pão, sou um desses infelizes que precisam comer pão.

De modo que sábado, com a sensação de derrota, liguei para o mercadinho e encomendei tudo que faltava. Quando o entregador chegou, saí pela garagem, deixei o dinheiro numa pedra e disse a ele, um cara que conheço, com quem já fiz brincadeiras mais de uma vez, para pegar ali, me mantendo a uns cinco metross.

Depois de ser fuzilado pelo olhar de quem não acredita que aquilo está acontecendo, sem a menor crença de que minhas desculpas foram aceitas, peguei as sacolas, entrei pela garagem, subi pelas escadas e, deixando tudo em um canto, depois de lavar as mãos, desinfetar, lavar de novo e tomar banho, fui verificar se estava tudo certo - estava.

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Também não quer dizer que tudo iria ficar tranquilo. À noite, abastecidos, Simone veio me avisar.

– A chave da despensa não abre.

Algum maníaco decidiu que uma fechadura doberman, que tem três linguetas e é à prova de arrombamento era a ideal para proteger minha despensa. Devia ser alguém que valorizava a comida, mas ignorou algo: fechaduras doberman travam muito fácil.

A sensação de desespero começou a dominar à medida que tentava e não conseguia girar a chave. Quando nem a caixa de ferramentas deu jeito, Simone e eu nos olhamos: teríamos de chamar um chaveiro.

Nunca uma discagem foi tão difícil e certamente nenhuma outra foi acompanhada do pensamento de que meu epitáfio um dia poderia ser “Morreu por causa de uma chave”. Quando ele chegou, uns 40 minutos depois, não estava menos intranquilo.

Por sorte, o trajeto até a cozinha é curto, o que não me impediu de observar cada lugar onde pisou - descalço - e tocou. O conserto foi impressionantemente fácil. Poucas vezes me sinto tão burro na vida como observando um chaveiro fazer às vezes em dez segundos o que não consegui em uma hora.

Dessa vez, ele tirou uma chave de fenda, enfiou na fechadura e bateu com um martelo até abrir. Foi meio bruto, mas estava concentrado: o tempo todo, enquanto o observava trabalhar, tentava verificar se estava fungando ou parecia febril (como alguém aparenta febre, aliás?).

Finalmente a porta não resistiu mais e abriu em menos de um minuto. A fechadura, lógico, arruinada, mas tudo bem. Depois de pegar o dinheiro (em cima da mesa, a três metros de distância) de mim, se despediu e saiu. Precisei apenas limpar o chão, as paredes, a mesa, a fechadura e, depois de fazer tudo isso uma segunda vez, libertei Simone e Dora do quarto.

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É paranoia demais, eu sei, mas ter uma filha de um ano e sete meses muda tudo a respeito de como seria o confinamento em outra situação, Começa pela busca constante de como equilibrar o home office e cuidar de uma criaturinha linda, maravilhosa, divertida, a maior pessoa do mundo e mais autoritária do que Stálin.

Mas também existe o medo. Vivi com zero medo na vida até 9 de agosto de 2018. Quando Dora nasceu, foi como se a médica, no fim me entregasse um balão imenso: “Toma. É seu medo”. Em dias normais, o medo rege muitas atitudes e pensamentos. Medo dela não respirar ao dormir, de se engasgar, de cair e se machucar, de não ter como sustentá-la…

Esse sentimento se exacerba a níveis gigantescos agora. Mesmo assim há algo de muito familiar na rotina. Falo disso da próxima vez.

23.3.20

Dia 6: por Ana Laura Freitas

Dada a paisagem sonora tranquila da Cidade Baixa, essa manhã de segunda-feira se confundia com a de um domingo qualquer. Quando o sol bateu na cama, me perguntei, ainda sonâmbula, se era dia de acordar cedo ou se estava liberado prolongar o sono. Em meio à pandemia, os sons do bairro boêmio já não são fonte de orientação segura para uma moradora antiga da Rua da República. Em lugar da massa constante de ruídos indiscerníveis, nos últimos dias, ouço um carro passar, depois outro, lá vem um ônibus... O burburinho noturno das conversas de mesa de bar foi substituído por panelaços praticamente diários contra nosso patético presidente. Um samba lindo protagonizou o de ontem à noite (quero ser amiga desse vizinho!), e me acompanhou hoje ao longo do dia:


Meu namorado ainda me visita semanalmente, não sabemos até quando. As restrições vêm se acumulando rapidamente, e ele depende do ônibus. Chega e vai direto pro banho, deixando a roupa e os sapatos na entrada de casa. Cada um de nós tem dois gatos adultos. Seria tenso juntar os quatro (ou essa é a justificativa que esconde a suspeita de que se isolar a dois também não é nada fácil). O fato é que alterar a rotina humana das casas já tem sido um desafio suficiente.

Há exatamente uma semana, a universidade suspendeu as aulas, mas a rádio seguiu com funcionamento normal até terça. Desde a última quarta, fizemos trabalho parcialmente remoto (alguém precisava ir até lá apresentar ao vivo os noticiários, invariavelmente pautados pelo coronavírus). A partir de hoje, mesmo as locuções passaram a ser feitas a distância, por telefone. Todos estão aprendendo a lidar com essa situação completamente nova e impensada. As dificuldades de relacionamento da equipe, antes subliminares, já se tornam bem delineadas quando escritas por extenso no grupo do whats.

Não aderi completamente à vida mediada pela tecnologia, e pelas tele-entregas. Fui à feira no final de semana, e eventualmente pretendo ir ao supermercado, ainda que minhas necessidades de consumo estejam sendo bastante redefinidas nesse contexto.

Acabo, porém, de sair da minha primeira sessão de terapia a distância (requer adaptação, mas me parece ok), e em seguida vou entrar em um encontro virtual com 8 amigas distribuídas em três cidades de dois continentes. Analógica que sou, ainda tenho certa dificuldade de interagir através das telas, que me remetem mais a algo para ser assistido. Mas, como disse minha amiga Julia, talvez a pandemia me obrigue a lidar de modo diferente com elas.

22.3.20

Dia 5: por Suzana Pohia

Um caderno à espera do uso, daqueles presentes tão bacanas que adiei e adiei e adiei mais uma vez seu preenchimento. Não queria escrever ali coisas cotidianas, teorias museológicas ou listas de compras. Quem sabe guardo para minha primeira viagem ao exterior? É, parece bom. Quem sabe para organizar um livro? Boa ideia também.

“Terça-feira, 17 de março de 2020: Não sei quando vou poder começar a minha quarentena de verdade...”

Faz dias que percebo como as mãos são dançantes e descontroladas. Como elas tocam, sentem e são levadas ao rosto. Para coçar nariz, olho, retirar uma mecha de cabelo e ajudar a pensar. Afinal, nada como um dedo na boca para compreender melhor as notícias do dia. Tento compor trilha sonora para elas, não posso agora, acabei de descer do ônibus e preciso passar álcool em gel. Ao trabalhar no aeroporto por quatro dias, senti vontade de amarrá-las junto ao corpo. Mentalizei elas quietas e obedientes, cuidando cada movimento.

Recebo pelo telefone a lista de produtos que pequenos produtores vão entregar na casa das pessoas. Repasso para o grupo do prédio, três vizinhos pilham de pedir coisas, repasso nossos pedidos. O moço sobe os quatro lances de escada com a caixa dos nossos alimentos. E começa a colocar tudo em cima da mesa. Punhados e punhados de folhas verdes. Primeiras lições aprendidas nessa quarentena: couve chinesa não é couve de Bruxelas; a outra é consumir rápido as verduras e frutas. Não dou conta. Recebo Antônio na sexta-feira com pés de alface, punhados de espinafres e a decepcionante couve-chinesa-que-não-é-a-de-bruxelas (que mostrou suas qualidades em um risoto delícia!). Em tempos de pandemia, alimentar o amor é importante.

Não coloquei limite de informação que recebo no dia, mas penso em adotar. Ontem foi um dia que não olhei tanto rede social, sites e afins. Também foi o dia da primeira nostalgia. Primeiro sábado que não precisei sair para trabalhar. No final da tarde, tudo que eu queria era caminhar até o pátio do supermercado, tomar uma cerveja e acompanhar o fluxo das pessoas.

Ficar em casa é necessário. Boa parte de mim acredita que vai passar, vai dar. Outra está rancorosa com quem colocou esse escroto na presidência. Enfrentamos dois caos ao mesmo tempo: o Corona e o Bolsonaro.

A parte do pânico e desesperança está aqui, mas não deixo ela assumir, por enquanto, por enquanto...

O Museu da Medicina estava com uma exposição sobre a Gripe Espanhola. Visitei em uma aula no ano passado. Faço mantras sobre a humanidade já ter passado por isso. Passamos. Vai passar. Vai dar.

Nesta manhã, escuto Mercedes Sosa. Vai passar. Vai dar.

Quién dijo que todo está perdido?
Yo vengo a ofrecer mi corazón
Tanta sangre que se llevó el rí­o,
Yo vengo a ofrecer mi corazón

No será tan fácil, ya sé qué pasa,
No será tan simple como pensaba,
Como abrir el pecho y sacar el alma,
Una cuchillada del amor   

ps:


21.3.20

Dia 4: por Moema Vilela

8h. Tinha colocado o despertador para 8h30, para assistir a uma aula de uma amiga no Instagram, mas acordei antes. Tema da aula: recursos do Zoom, uma plataforma de videoconferência, para professores/as em transição para as aulas à distância. Tenho dormido menos de cinco horas nos últimos dias. Costumava gostar de dormir sete ou oito horas, antes. Ainda mais em final de semana. Falo para o José que vou fazer um bolo de milho porque sábado é dia de bolo. O bolo é aprovado, “só que não existe mais sábado", ele diz. Agora todo dia é dia de bolo, todo dia é dia de ver capotar minhas referências mais naturalizadas: o tempo, o espaço, o gesto tão simples de tocar meu próprio rosto enquanto assisto à minha amiga colocar um cactozinho de crochê na frente da tela do computador. "Faz de conta que esse é um aluno", ela diz, para ilustrar como ficaria a visualização. Minha amiga está de maquiagem, eu estou de cabelo sujo e pijama de oncinha. Me despeço com gratidão, coração vermelho e um beijo.

10h52. Ontem consegui não acordar e olhar os números de mortos da Itália e da China para ficar traçando cenários para o Brasil, calculando possíveis paralelos de progressão a partir do que vi em um punhado de entrevistas e dois artigos científicos. Era a primeira coisa que eu vinha fazendo ao acordar, nos três dias anteriores. Ontem disse para mim mesma parar com isso. Não tinha nada de novo ali para mim, ficar repisando essa realidade brutal não ia ajudar ninguém a sobreviver nem a ser mais feliz. Isso fui eu me convencendo. A necessidade de informação é justíssima, geradora das melhores decisões, de autonomia, também de cuidado coletivo... Mas não é fácil digerir e regular internamente esse fluxo de informação, bololô de emoções, grude pegajoso de telas. Tenho falado com muitas pessoas, todos os dias, centenas nos últimos três dias, em grupos e individualmente. Anteontem foi um dia pesadíssimo. “Amanhã você vai se ocupar de outras informações”, eu me determinei. E me obedeci. Mas sei que me peguei, umas três ou quatro vezes, como Orfeu no inferno querendo ver Eurídice. Entendo esse seu titubear, Orfeu. Queria saber, com esses olhos que a terra há de comer, se Eurídice ainda estaria ali, né? Vai que algo novo surge e muda tudo? Como todo detox tem seu tempo de atuação, hoje acordei e nem lembrei de nada disso - de número de mortes, de leitos, de fomes nessa recessão que se aprofunda a cada madrugada. Só lembrei ao escrever o diário. Coisas que, extraordinariamente, não fiz hoje: não trabalhei demais com as aulas, não fiz escutas empáticas, não estive em muitas ligações e chamadas de vídeo, quase não vi notícias sobre o coronavírus.

13h No grupo do condomínio no WhatsApp, combinamos de revezar a limpeza das áreas comuns. Durante todo o dia houve fotos e comentários sobre a lavagem do pátio, subsolo, bancos, elevadores, botões, maçanetas, campainhas. Carrinhos de mercado. Uma das vizinhas se ofereceu para começar hoje a do nosso andar. Contou que tinha usado água sanitária pura, sem diluir, depois de o professor de violino do 5º andar comentar sobre qual seria uma proporção correta de água e Qboa para higienizar o piso. De noite, meu coração deu um salto ao ouvir a campainha. Só uma semana de isolamento mais completo e tanta coisa parece agora já muito distante do ordinário. Em dois ou três metros de distância da porta, o vizinho com um pano na mão alertava para cuidarmos com o chão molhado, que ele tinha acabado de lavar.

18h. O YouTube não está carregando no meu login, que tem os canais de yoga selecionados na semana passada, então coloco na busca “yoga” e clico num dos primeiros vídeos que aparecem, porque tem uma paisagem estonteante. Verdes refrescantes, água que brilha com o sol. Grito para o José na cozinha se quer se juntar e ele vem. Descobrimos que o vídeo é da Sibéria, de 2019. A professora propõe uma série veloz e avançadíssima. Mudo para outro vídeo, no mesmo canal, cujo título é “Para iniciantes”, e que é também avançadíssimo. Suamos, nos batemos, passamos um sufoco. Vira aqui, dobra ali, postura da cobra, do cachorro, do morcego.“Relax and let go of stress and tension". Ficamos rindo, que se não tivéssemos os dois experiência com aulas de yoga amanhã não levantaríamos. Quando fazemos yoga ou exercícios juntos agora, nos esticamos um sobre o outro na sala pequena, e não nos incomodamos com isso. Depois que a aula acaba, aparecem as próximas sugestões de vídeo, e vejo um do mesmo canal enviado dois dias atrás, com as palavras Covid-19 no título. “Strange times". É a professora e o namorado. Estão em Vancouver. Falam para os seguidores do canal mandarem pedidos sobre o que poderia ajudar nesse período. Falam que há a possibilidade de doação de algum valor pelas aulas, mas que se alguém não puder não importa, o importante é fazer o que se precisa para apoiar a saúde mental de todo mundo.

20h44 Minha mãe falou para eu não assustar minha avó de noite, só de dia. Essa avó foi para a fazenda antes de tudo isso acontecer, sem televisão, rádio e internet, e é difícil para ela conceber esse novo mundo.

21h59 Quero pegar um chocolate, mas está na caixa da última compra e tenho preguiça de desinfectar. Tomo água com gás com limão, bem feliz.

23h19 Tanta coisa aconteceu hoje comigo, de que não falei. É mesmo muito difícil conceber esse mundo. 

20.3.20

Dia 3: por Iuli Gerbase

O segurança da creche do lado da minha casa, que hoje teve seu último dia de aula, diz que Deus é quem manda, não o presidente, e que “esse vírus é coisa de japonês e chinês”. O segurança falou isso para um pai apressado que deixava sua criança lambuzada de álcool gel, mas o volume foi alto o bastante para eu ouvir da minha sala. Sinto as pessoas com mais necessidade de se comunicar, principalmente as que moram sozinhas como eu, que tenho feito mais chamadas de vídeo que o normal. Imagino o que a mulher que não ficava quieta um segundo na minha academia deve estar fazendo. Talvez comendo os próprios cabelos de tão agoniada.

Minha mãe, com cada filha em uma cidade, já costumava ler muitas notícias. Agora lê mais que respira. Eu sugiro que ela leia um pouco menos para baixar a ansiedade, mas claro que ela não me ouve. Ontem, como boa administradora se preparando para o caos, fez sua própria tabela de comparação entre os casos da Itália e do Brasil. A caneta riscava nervosa, já prevendo que a coisa vai ficar feia.

Algumas instagrammers ripongas falam que este momento reflete a necessidade do planeta Terra de se transformar e respirar. Pensando no sufoco que as pessoas estão passando por falta de médicos, recursos e lugar nos hospitais, me parece uma visão bastante romantizada. Há também a teoria de alguns de que tudo é uma guerra bioquímica. Há teorias que nem entendi e não tive paciência de me adentrar que envolvem muitos caixões e o Obama.

Minha reação emocional tem sido estranha. Às vezes parece que eu estou em um sonho lúcido, outras que estou em um filme de um gênero que não costumo gostar. Por mais notícias que eu leia e máscaras que eu veja na vendinha, ainda não parece realidade, de tão bizarro que é. Claro que meus diversos privilégios contribuem para isso. Me sinto um pouco amortecida, como a personagem do Melancolia na segunda parte do filme: o planeta Melancolia, que vai destruir a Terra, está chegando perto, a irmã dela está apavorada, o cunhado já se foi, mas ela mantém uma calma anormal, como se o planeta fosse só mais uma desgraça no meio de tantas outras que já foram noticiadas.

19.3.20

Dia 2: por Caroline Joanelllo

Ontem à noite, participei do panelaço contra o presidente— incluí em minhas intenções a família inteira, para ser bem honesta — e, por breves momentos, me senti reunida com todas as pessoas que faziam barulho junto comigo. Esse, para mim, sempre foi o poder dos protestos e das junções na rua: alimentar a esperança de que não estou sozinha. Mas, não consegui conter uma certa descrença.

É meu quarto dia de autoquarentena. Meu medo não é por mim, mas pela parte que eu poderia tomar no avanço do vírus, prejudicando outros. Para estar aqui, no entanto, dei muitas sortes: a de ter um emprego com carteira assinada, a de ter direito a férias remuneradas e a de ter escolhido março como o mês para tirar essas férias. Escolhi lá em novembro, quando o vírus ainda nem existia, acredito. Graças a isso, pude optar por permanecer recolhida, enquanto meus colegas seguem trabalhando, atendendo o pouco público que tem aparecido nesses últimos dias.

Minha casa fica no Centro, e é estranho ver as ruas, desde segunda-feira, com movimento próximo ao marasmo de domingo, silenciosas demais. Por um lado, fico feliz pela conscientização individual de quem tem a possibilidade de permanecer em casa. Por outro, observo a padaria, a lavanderia e o mercadinho funcionando normalmente, com seus funcionários rotineiros. Pessoas que precisaram se expor, ao entrar num ônibus, ao atender os desconhecidos vindos sabe-se lá de onde, por não serem donos de si. Penso nos meus colegas de trabalho. Observo moradores de rua circulando, possivelmente sem nenhuma informação — nenhum deles tem televisão ou celular. Tento imaginar o que passou pela cabeça deles enquanto a barulheira tomava conta das ruas.

Hoje, a cidade segue, o país segue, o silêncio novamente caiu sobre os dias.

18.3.20

Dia 1: por Julia Dantas

Amanhã as escolas fecham. Faz quase um ano que me mudei para a Cidade Baixa, para um apartamento de onde não ouço nada dos bares e da noite, mas ouço, no meio de todas as manhãs e no meio de todas as tardes, crianças correndo e jogando bola nos intervalos das aulas do Colégio Rio de Janeiro. Hoje de tarde me dei conta de que as estava ouvindo pela última vez em um bom tempo. No fundo, no fundo, eu detesto quando elas jogam bola e trocam uma infinidade de palavrões aos berros, mas hoje fiquei nostálgica pensando que amanhã não estarão aqui.

A cidade mandou fechar os cinemas, os teatros, as academias, os clubes e os shoppings. Ainda não chegamos a vinte casos confirmados no estado (mas também ninguém entende qual o critério para a realização de testes), mas a partir dos cinquenta casos, haverá previsões mais confiáveis sobre qual será o cenário da pandemia por aqui. Então ficamos nessa situação: quase desejando que chegue logo o quinquagésimo paciente para que a gente enfim possa entender o que está acontecendo. Mas também desejando que ele não chegue nunca, porque a partir daí a coisa fica séria.


Nas calçadas ainda há movimento. Mas pelas janelas do restaurantes, não vi quase ninguém. As atividades na PUC foram suspensas anteontem. Minhas aulas de yoga foram canceladas hoje. Minha família que sempre almoça junta às quintas-feiras desmarcou os encontros até data a ser definida. Levei a Hortelã na Redenção e só encontrei um casal de moradores de rua com o cachorro. As coisas às vezes parecem muito normais, às vezes muito estranhas, e essa oscilação já é, em si, um estranhamento gigante.


Esse diário começa hoje.