Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

29.9.20

Dia 196: por Jonas Dornelles

Na verdade, eu só gostaria de poder esquecer. Chega uma hora que você também tem outras coisas pra se assustar, e sempre aparece, desgraceira e desgraceira de coisas pra se assustar. Quem não largaria de mão tudo por um pouco de paz? Esquecer de tudo. É o que todos fazem aqui na região onde as casas são cor de cinza descascado. Só se quer esquecer, mas vou te contar uma coisa: todo mundo de vez em quando ouve uns dois ou três estampidos lá longe. Uma hora você resolve não se assustar, ao menos não pensar tanto tempo, já que não faz sentido se não pode fazer nada.

A caminho das casas multicoloridas, escuto o ruído repetitivo de etiquetas sendo recolocadas, as pessoas sentadas em banquinhos, muito cômicas, dedicando seu tempo a substituir as etiquetas antigas, num trabalho que nunca termina, já que ao longo da semana sempre aparece um fornecedor ou uma manchete confusa que as obriga reajustar. Ninguém lê com calma, por isso não desconfiam da artificialidade da coisa.

Se é preciso lembrar, vou te contar: um zé povinho me aporrinha a vida dia sim dia sim. Não que ele mereça ser lembrado, e a bem da verdade, a melhor maneira de conduzir essas coisas seria esquecê-lo mesmo para todo sempre. Fazer como ele: dormir por cima dos problemas, se intoxicar, de vez em quando botar o som bem alto e entrar madrugada falando falando falando, com as paredes, pro telhado. As vezes invejo essa rotina, como se eu pudesse um dia também ganhar a vida no grito, só mandando tudo calar a boca, falando por cima.

Com frequência sinto um cheiro de plástico queimado ou madeira muito verde e imagino minha casa queimando. Um incêndio que vem zé povinho, e só depois percebo. Deve ser o que acontece com um nariz todo destruído de cheirar pó, ou uma bosta assim. Precisa se desgraçar com um cheiro de podre para sentir uma adrenalina. Queimar um terreno baldio, porque é assim que chamam um pedaço de natureza depois que já está cheio de lixo espalhado por ali. Tocar fogo em terreno baldio, para sentir um cheiro de mudança enquanto se observa sério a fumaça, como se disso surgisse uma experiência sábia. A sarça ardente! E então Deus mesmo apareceu para Moisés em meio à sarça, como diz na Bíblia. Imagino uns quinze anos de Datena ou programa da Márcia na cabeça da pessoa, se eu mesmo não aguento uns quinze dias dessa dieta...

Por vezes escuto sua conversa ridícula, outra bravata, o falar falar falar. Imagino essa cracolândia como se fosse o próprio Senado, na verdade mesmo o Judiciário, deliberando e decidindo aleatoriamente sobre a vida das pessoas que passam descuidadas ali pelo beco. E isso alegra a vida, a barca desce como se estivesse em direção a uma cachoeira, você sente o frenesi da urgência, e algo parece que vai mudar dramaticamente. Uma catarse imensa, o fármaco definitivo, remédio-veneno para vidas geradas na desgraça, zé povinhos obcecados pela desgraça, só reconhecendo uma cena alegre quando permeada por banhos de sangue. Como se um gostinho de sangue na boca fosse remédio para essa miséria toda que se vê aqui na região.

Quando as paredes estão encostadas umas nas outras, todos fazem questão de ensurdecer, mas às vezes esse barulho é muita coisa, quando ressoam como os estampidos. Desde sempre essa é uma vida na prisão, você pode escutar uma conversa de muitos pavilhões adiante, sem interessar de verdade, já que não vai se meter no que não te diz respeito. Porque uma hora acontece algo de inusitado, e ir preso não é pior que uma tempestade derrubar o teu barraco. Essa sensação é bem comum pra muita gente por aqui.

Na região, vi tantos que loteiam um campo e depois vendem. Não era pra morar, afinal, era só pra tirar vantagem do que estava de graça ali. Tem uns que desde sempre fizeram dinheiro assim, o avô que vendia arvores que derrubava, que estavam ali, coisa pública. Os mais favorecidos hoje tem seus sobrenomes ilustrando placas, com empreiteiras que não encontram nenhum problema de legislação ambiental. Lembro do aspecto semi rural que está se desvanecendo, um boi mugindo de noite ou o canto do galo madrugando cedo, aqui mesmo onde agora patrolam para fazer condomínio. Vejo um submundo de escroques, que hoje tem filhos ressentidos cujo plano máximo é passar no concurso da polícia, para daí poder espancar alguém ou dar tiros. Isso já há décadas, fatos históricos que fogem do arquivo e ocorrem nos bastidores do teatro jurídico. Enquanto isso sufoco com a fumaça, imaginando quando será a vez do meu barraco. E me pergunto por que o ódio prende mais atenção que os gestos de solidariedade?

O zé povinho fala fala fala, como se em uma prisão, como se numa tribuna, como se só pudesse fazer isso, pra daí então esquecer. Não querer pensar, ser um zé povinho, rosnar de um jeito cômico: “É por isso que o Brasil não vai pra frente!”, por cima de qualquer situação aleatória que seja trazida em meu cotidiano. Esquecer. E então, depois de muitos dias sem algo trágico, sentir que algo de grave está acontecendo. 

No caminho até as casas multicoloridas, indo comprar mantimentos, todos falam falam falam como se isso fizesse o corpo fechado, escuto-os falando sobre a situação toda como se fosse um mau olhado que é só afastar que não deixa doente. Você pode inclusive encontrar sempre alguém com mais problemas, para daí se sentir melhor, mesmo se já tá descansando entubado na UTI. Acho maravilhoso como com frequência, desde o início, escuto sobre uma junçãozinha. Quando se encontram falam sobre como tomam cuidados, narrando obsessões cômicas a respeito do álcool gel. Enquanto isso, compartilham o mesmo copo de cerveja babada, algo que vejo pode se dizer até que com certa frequência aos domingos, a algumas quadras daqui.

Penso em quantas vezes já vi tragédias em que por nada um grandão derruba a porta, invade o barraco, arranca todos a pontapés e estapeia uma avó na frente de todos. Como esperar que sejam racionais, dentro desse absurdo todo? São tantas testemunhas que não se escuta, que levaria um tempo considerável para refazer em detalhes o cenário de toda essa tragédia. Já há muitos anos. Mas mal começamos a recapitular, e alguém mais nocivo, um outro zé povinho mais patológico, faz parecer que o psicopata do momento até que não era tão mal. Ou outra legislação correndo o risco de ser queimada, os juízes loucos para assumir uma ar inocente, como se buscassem fazer sua caridade ocasional. Sem dúvida a saúde das suas avós são seu o maior tesouro e está muito bem preservada. É um salve-se quem puder, uma desgraceira toda, um estardalhaço de sangue derramado. 

A verdade é que eu só queria esquecer, e uma hora você resolve não pensar mais sobre isso. É justamente esse o problema. Ninguém quer pensar muito tempo se não pode fazer nada. Mas é só com a paz sentida nas casas de cristal translucido e luzes ambiente, que se pode de fato esquecer. Não há estampidos, não há pestilência ou pequenas avós sendo esculachadas pela polícia. Só assim é possível esquecer de verdade. Do lado de cá estão todos preocupados com seu próprio barraco, com a cela em que já vivem há décadas. Porque muitos se esforçam em esquecer é que não percebem que essa suposta selva, um grande terreno baldio, é na verdade um zoológico, e que o zé povinho é uma cria desse habitat.

É porque nas casas translúcidas de cristal já se esquece de fato, que continuamos encarcerados ouvindo um zé povinho lunático discursando, desesperados sem poder fazer nada. Lá se ocupam e iludem, mantêm um constante jogo onde fazem todo tipo de truques e pequenos blefes, e fingem que arriscam tudo, as próprias leis, suas matérias primas e reputações. Por vezes tudo é colocado na mesa de maneira dramática, se cria um tumulto histérico, que não precisa de sangue para ser controlado. Algo se reorganiza apenas com dor de cabeça, permitindo uma nova fase de esquecimento. É porque agora está tudo tranquilo nas casas de cristal translúcido, que transborda para cá um sentimento de paz, e se pensa poder esquecer tudo isso de fato. Esquecem que agora é o zé povinho que está ditando as regras do jogo.


27.9.20

Dia 194: por Ana Paula Silva Barbosa

Já faz dois meses que esse longo domingo começou. Dois dias 25 nos passaram, ou seja, consegui economizar duas mesadas. Isso não importa muito, é mais surpreendente como eu consigo me atrasar para uma videoaula mesmo estando em casa, mereço um prêmio.

A internet não ajuda muito a manter minha noção de perigo, para mim, que confiavelmente e despreocupadamente me ajustei a essa rotina, não importa faça chuva faça sol, a ordinária família do 103 não é grande o bastante nem pequena o suficiente para ser percebida. Nesse pequeno apartamento, cheio de pelo de gato, e mais canecas do que ovos, nós fazemos a cor do pé ser uma piada melhor do que o “ tijolinho “. 

As coisa aqui são muito bem confortáveis. Não mudamos a nossa rotina, nem nossos hábitos, muito menos nossos pensamentos. Todo dia eu acordo às 5h, enrolo e só faço o meu omelete as 6:30. Vejo um anime, por que eu odeio assistir com qualquer outra presença sem ser meus gatos, lá pelas 7:30, me faço de besta e fico deitada. Tomo vergonha na cara e vou fazer café para a mãe, logo tomo uma pílula de ritalina e marco 30 min. Apesar de já ser 8h, eu tomo um banho demorado, e sempre no quente. Faço um copão de café, corro para o quarto, ligo a videoaula no meu notebook e me deito. Eu continuo tendo preguiça de prestar atenção, então ao invés de copiar toda a aula e estudar em caso como fazia antes da quarentena, eu apenas fico prestando atenção e depois eu estudo pelo livro didático (enquanto tenho 16, poderei procrastinar dessa maneira).

O que acontece nesses momentos sempre será a mesma coisa. O que nos interessa é o que vem depois: meus surtos com a minha mãe, minhas conversas nada a ver com o meu pai, meu gato stalker, minha gata gorda sofrendo bullying, ou eu surtando na internet por qualquer coisa? Tantas coisas acontecem entre três pessoas e dois gatos, que parece coisa de girico acreditar que ninguém sabe que dia é.

Não faz muito tempo que meu pai estava cozinhando um frango afogado na cerveja preta. Ele disse 3 vezes “ cerveja branca “ e durante um filme ele viu uma cena de almoço e falou "frango na cerveja".

Minha mãe, tão surtada quanto eu, não decora nome de personagem, e ainda por cima acha que coisas muito sérias irão acontecer em um episódio. Teve um dia que ela achou que a protagonista era a amiga dela, então ficou me perguntando “ mas a catarina não é a menininha ruiva….mas ela não estava gostando do príncipe?... ela está traindo ele?" não minto, me estressei na primeira pergunta.

Sozinha eu surto comigo mesma, tretando com qualquer pessoa na minha timeline. Sentindo falta das minhas pequenas tretas com minha melhor amiga, pensando em escrever um novo capítulo da minha fanfic, assistir aquele filme que eu parei duas semanas atrás, tentando tomar vergonha na cara e começar a estudar. No final, eu só fico encolhida na minha cama debaixo das cobertas pensando "ah, eu colo da internet. Bora tentar escrever algo". Felizmente eu tenho bom senso e arrasto meus cadernos e meu notebook para a cama e começo a estudar. nice.

Até o fim, posso dizer que fui produtiva no mínimo. Três temas concluídos, dois blocks no Twitter, dois cochilos, meio capitulo pronto, e umas quatro novas ideias de universo para eu criar. Talvez minimamente produtiva, mas produtiva. Nada me impede de ignorar isso e dar total atenção ao meu teto. E no fim, perceber que eu tirei mais um gostoso cochilo.

As coisas só podem ser estragadas se alguém na televisão vem falar do novo números de mortes, a é, já entrou na cachola que ele só vai aumentar, ainda temos feijão? Que dia foi a última feira? 

Não importa muito que dia isso foi. Meus pais estão dormindo,  então mesmo sendo 11h, eu volto a deitar na cama ignorando as videoaulas perdidas, o número de mortes, os novos “exposeds”, pessoas inventando novas regras para o pronome, criando novos gêneros, atacando bissexuais, endemonizando homens e enaltecendo mulheres, matéria atrasada e meu cereal que está escondido na gaveta por que tive nojo do gosto. Não tenho a menor ideia de como consigo conviver com tudo isso, tudo em um mesmo dia, em algum dia… 

25.9.20

Dia 192: por Matheus Borges

Sinto que já não há nada de muito original que possa ser dito a respeito do período que atravessamos. Além disso, estar privado do contato com o mundo em geral é algo muito grave para quem escreve. Alijado das experiências do cotidiano, perde-se o interesse pelas coisas. Em resumo, torna-se muito difícil escrever sem as banalidades da dimensão social da vida. É como dar partida num carro sem combustível, repetidas vezes.

Um aspecto do isolamento que não vejo muita gente comentar é o de como essa impossibilidade de novas experiências condiciona nossa cabeça a remoer eventos do passado. É um efeito colateral possível de ser observado em qualquer feed de rede social, onde as throwback thursdays transbordaram e passaram também a ocupar outros dias da semana. Dezenas, centenas de lembranças de nossos amigos. Também entram nessa lista as incontáveis reprises que tomaram conta das emissoras de televisão, como que segurando um espelho que reflete o passado. Invariavelmente, tomamos isso como sinal de que nossos melhores dias ficaram para trás.

Faz alguns meses que tenho me sentido nostálgico e eu odeio nostalgia. Compreendo que é um sentimento perigoso, capaz de gerar ressentimento, as mesmas convicções que possibilitaram a ascensão do obscurantismo autoritário que tomou conta do país. Não apenas isso, também é um estado de espírito inútil. Afinal de contas, a flecha do tempo só tem um caminho. Adiante, adiante, nunca para trás. Sinto-me patético quando me pego remoendo o passado, quando me flagro tentando lembrar de como já fui. Tomar consciência da nostalgia é o primeiro passo para exorcizá-la, claro, mas é também constrangedor.

No fundo dos devaneios, ecoando como ruído branco, está a ponderação da felicidade. Será que fui mais feliz em outros tempos? Será que algum dia já fui feliz? Será que algum dia serei feliz novamente? Será que algum dia compreenderei a felicidade no instante em que a vivencio? Porque é elementar da nostalgia condicionar o ideal de felicidade a algo que só pode ser compreendido em retrospecto. Essa felicidade, desconfio, não passa de uma ficção atribuída à memória pelo próprio ato da lembrança. Quanto mais peso os fatos contra o êxtase nostálgico, mais evidente fica a inclinação da memória de recuperar os eventos como poderiam ter sido e não como de fato foram.

Um pouco de raciocínio bruto, sensato, desprovido de sentimentalismo, e a resposta para todas as perguntas é um categórico não. A felicidade é o fantasma que assombra nossas vidas. Inutilmente o perseguimos um dia após o outro, enquanto ele atravessa paredes e desaparece no horizonte, justamente quando parecia tão próximo. A nostalgia, em contrapartida, é um segundo fantasma, que corre atrás de nós enquanto perseguimos o primeiro, dizendo “estou aqui, sempre estive aqui, por que você não me notou antes?”.

De qualquer maneira, segue abaixo uma breve lista de coisas que me provocaram acessos de nostalgia ao longo dos últimos meses:

Comerciais da TV Manchete;
Vídeos do Brizola em geral;
O videoclipe de “Lazy Eye”, da banda Silversun Pickups;
O álbum Fever to Tell, da banda Yeah Yeah Yeahs;
A canção “Kim & Jessie”, da banda M83;
O conto “The last lawn of the afternoon”, de Haruki Murakami;
Uma fotografia minha num show da banda Autoramas no Porão do Beco em 2012;
Uma fotografia minha bebendo uma garrafa de Skol em 2009;
O filme Bill & Ted Face the Music;
Rever o filme Starship Troopers, de Paul Verhoeven, depois de muitos e muitos anos.

É isso. Que a nostalgia esteja devidamente exorcizada.

22.9.20

Dia 189: por Altino Mayrink

Um dia como todos

Uns seis meses de distanciamento, dos amigos, dos colegas, dos amores, de todos os contares e cantares nos cafés e nos bares de Porto Alegre e da vida. Sem viagens, sem viragens, miragens, nasceres e pores de sol. A repetição de movimento nos limitados cômodos da casa de adulto solitário, só.

Esse é o hoje, indiferente do ontem e já não sei como será o quando vier.

Olho em volta a desarrumação comportadinha em que se transformou o apartamento dessa vida. As estantes de livros, com muitos livros e mais. A televisão que não ligo. As almofadas do sofá que sentem saudade de serem apertadas e afofadas por mãos carinhosas das minhas visitas. Um tabuleiro e peças de xadrez que vão se multiplicando em muitas partidas, sendo jogadas à distância. Já viram impactantes vitórias, melancólicos empates e vergonhosas derrotas. E os relógios das paredes e estantes, com as apresentações sem parada do tempo e seus tique-taques desarmônicos.

Em momento algum da minha vida de constantes mudanças fui tão eu. Nem tão silencioso, nem tão pensante. Estudei e aprendi. Ensinei e vivi em janelas irreais do notebook negro. Sentenciei minhas realizações e esconjurei todas as deidades possíveis. As graças que recebi e as descrenças que porventura tive povoaram meus muitos e silenciosos pensamentos. Se algo pude dizer ao mundo e a vida, foi pensado e remoído de antemão. Fui e estou mais sábio, mais sereno e mais moderado.

As comidas que aprendi a fazer e que agora são parte de mim. As bebidas, bem mais escolhidas e saboreadas com parcimônia. Redescobrir os fornecedores que nunca tinha conhecido e reconhecido, de insumos mais saudáveis e menos industrializados. Como e bebo melhor. Meu legado.

Queria ter palavras doces e amigas para terminar esse relato, mas não posso. Se o que eu vejo pela janela não me mostra que as pessoas progrediram, se meus vários vizinhos de prédio e de rua insistem em não ver e negar insistentemente as precauções, não posso. Deixo apenas o recado esperançoso de alguém que aprendeu com as atribulações dessa época: se houver um futuro, para mim bom será. Mas não vejo a cidade, o estado ou o país melhor para todos nós.

21.9.20

Dia 188: por Ana Carolina Gomes Petry

Escrevo um diário de um dia. Olho no relógio, 14:55, olho na tela do celular, apenas uma tela vazia. Eu esperava receber alguma coisa. Não foram poucas as vezes que desviei o olhar, inocentemente, esperando uma luzinha azul piscar, alertando-me de alguma nova notificação. Talvez eu esteja me sentindo sozinha. Talvez eu olhe pra janela, só pra olhar e ver um céu azul e pensar em como, em outras épocas, vendo tal paisagem, as seguintes seriam minhas ações: pegar o celular, mandar mensagem pro Netto, "quer sair?", ele responderia que sim, eu trocaria de roupa e nós iríamos caminhar na orla do Guaíba até umas 17:00, voltando pra casa antes que meus pais chegassem. Mas agora, tudo que me restava era observar aquele céu, a cúpula da Catedral por alguns instantes e ponderar sobre a existência de Deus. Que inusitado. Tem sido um tópico recorrente em minha mente, que tem passeado em minha cabeça, a incerteza sobre tantas coisas: sobre quem serei no futuro, sobre quando a quarentena teria fim, sobre Deus. Talvez eu só tenha passado a pensar nele por tanto observar a Catedral, ou por me sentir sozinha, ou por estudar filosofia. Não sei. De qualquer forma, prefiro me ater às certezas e à lógica incontestável de uma equação matemática - mas, na verdade, nem tenho mais certeza alguma sobre essas notas. Mas o céu continuava azul.

19.9.20

Dia 186: por Rita Cavalcante

quanto tempo dura o tempo? quando vira a hora e anuncia o dia? quando o alarme canta o compromisso? quando o risco corta o papel preso ao imã da geladeira?

um dia na pandemia leva muito tempo. anos. do primeiro dia até a consulta médica da filha, 113 (não era. era alergia). dia zero. 19/7: os pais se mudaram pra lá. domingo. depois de 4 dias: 44 anos. era agosto. 46 dias hoje. um dia na pandemia leva 1 vida. 133 mil. hoje. eram.

amanheceu 3 vezes depois que a Mãe foi dormir. nunca mais "bom dia". não era. 14 meses. neoplasia.

18.9.20

Dia 185: por Gabriel Brié

Prepara o cavalo!

Minha avó paterna era como estas senhoras centenárias que habitam os desenhos animados e a literatura. Era baixinha, costas arcadas, passos curtos e olhar atento. Cabeça envolta por um lenço de crochê que se avolumava com o coque impecável. Avental quando estava em casa e talco no rosto quando tinha que sair. Era tão parecida com essas personagens imaginárias que certa feita, quando um amigo desavisado se viu sozinho com ela na cozinha de casa, disparou correndo aos berros: - Socorro! Uma bruxa!

Às vezes, em uma manhã ensolarada, lavava o longo cabelo branco e se sentava ao sol para secá-lo e penteá-lo. Era um ritual. Tão longo quanto os fios que encostavam no chão. E guardava cuidadosamente, em uma caixa de sapato, os cabelos que caíam durante o pentear. Dizia que depois de morto a alma voltava para juntar os cabelos e as unhas (que ela também guardava, na mesma caixa, mas em embrulhos de pano separados). Então era melhor já ir guardando. - Imagina ter que juntar tudo e só depois a alma poder descansar! Dizia ela em tom de advertência. 

A idade da Vó Levina não era uma coisa exata. A sensação que tenho é que, com o passar do tempo, foi se construindo um consenso sobre isso. E sempre que se comentava a idade da vó, vinha à tona a história que ela teria feito a certidão de nascimento quando foi se casar. Então no Cartório de Registros, quando perguntada sobre a data do seu nascimento, não sabia ao certo o ano que tinha nascido. Registraram a idade que parecia ter. A única certeza é que quando morreu, em dezembro de 2000, tinha mais de cem anos. E esta certeza vinha do fato de ela ter presenciado, em 1986, já com idade avançada, pela segunda vez, a passagem do Cometa Halley. Era só fazer as contas e constatar que se tratava de uma anciã. Ela contava que quando o cometa passou ela era criança, mas que se lembrava de tudo. E que a passagem do cometa tinha iluminado a noite mais do que a lua cheia. – Dava pra achar agulha no paiol. Dizia ela. Quando o Cometa Halley passou em 1986, não deu pra ver muita coisa lá de casa. Chamamos a vó para presenciar aquele momento histórico. Ela olhou e disse que não era o cometa, e que estávamos enganados. Virou as costas e foi dormir. Foi uma decepção para mim. 

Este imaginário e suas histórias fantásticas era o que mais me encantava na Vó Levina. Histórias fantásticas para mim, porque para ela era tudo parte da realidade. Sacis, lobisomens, bruxas, Caiporas, Boitatás e outros seres fizeram parte da minha realidade enquanto convivi com a minha avó. Sei perfeitamente como é o assovio de um Saci, o que fazer caso apareça um lobisomem, e ainda me pego atento ao Caipora quando visito uma mata mais densa. Na quaresma também costumo ficar mais atento, só por precaução. 

Ela contava muitas histórias sobre o Bairro dos Prestes, que ficava perto do Bairro dos Fria. Lugar onde ela nasceu, viveu, se casou e criou os filhos antes de ir morar na cidade.  Neste bairro, quando ela era criança, havia a necessidade de se buscar o dia. Era um hábito do lugar. Uma prática fundamental na cosmologia e no dia a dia daquela comunidade. Todo dia alguém acordava bem cedo, encilhava o cavalo com os cestos ao lado, e partia em direção ao leste. Ao sinal dos primeiros raios de sol, esta pessoa dava meia volta com o cavalo e retornava para a sua comunidade trazendo o dia. Até hoje me encanto com a possibilidade de uma comunidade inteira acreditar nisso! Me lembro de perguntar: - Mas vó, por que vocês não ficavam esperando o dia chegar? Era só esperar que ele viria. E sua rápida reposta: - E se o dia não viesse e fosse perdido? Como iria ficar? Entendi que não buscar o dia significava correr o risco de cair em uma noite eterna. E ninguém ali queria correr este risco.

Hoje, dia 16 de setembro de 2020, completa seis meses que eu, minha companheira Maura Rodrigues e meu filho Arthur Roque, estamos em isolamento físico devido a pandemia de Covid 19. Morando no centro de Porto Alegre, me identifico com os conterrâneos da Vó Levina, na época da passagem do Cometa Halley, em 1910. Sinto que precisaremos buscar este novo dia, e que se não o buscarmos, corremos o risco de ficarmos nesta longa e mortífera noite brasileira.

15.9.20

Dia 182: por Henrique Ganbarra

Cada dia desse isolamento a gente se sente mais exausto, esse conceito de exausto não é por fazer várias coisas, é muito mais cansativo que isso, pois além de ter as atividades do colégio para fazer, as aulas para assistir, ficamos pensando o dia inteiro no que pode acontecer daqui para frente e de como existem pessoas imundas no mundo, isso não é novidade, mas não deixa de ser assustador e revoltante. 

Hoje é terça feira, eu acordei bem, pois decidi ficar um dia sem entrar nas redes sociais, tomei essa decisão porque não aguentei o tanto de ódio que está tendo nos meios digitais, o quanto de hipocrisia de pessoas, incoerência de tantos, e milhares de pessoas querendo passar seus posicionamentos, isso é ótimo, mas quando feito direito e com embasamento, não só pelo simples motivo de todos estarem fazendo também. Eu fiquei muito triste e abalado de ver que muitos adolescentes da minha idade estão completamente imersos em suas bolhas e, agora que está acontecendo uma empatia coletiva, querem falar e ditar o que é certo ou errado. Para mim esses têm que ficar quietos e aprender com tudo isso que está acontecendo, sem criticar ou falar o que se deve fazer, pois não acredito que eles tenham argumentos concretos para tal fala. Eu poderia escrever um texto e botar para fora tudo que eu penso e tudo que eu tenho vontade de dizer para inúmeras pessoas, porém já existem muitas pessoas fazendo isso e deixando o ambiente mais confuso ainda. Sobre meu posicionamento, todos que me conhecem sabem o que eu penso e minhas lutas pelas causas que me tocam e que eu acho importantes.

Hoje é uma terça feira, dia que os professores mandam todas as atividades e eu nem entreguei todas da semana passada ainda, aliás essa é uma atividade que eu estou entregando atrasada. Agora são 19 horas e eu parei para entrar no meu twitter e o cenário continua o mesmo, não sei o que vai acontecer daqui para frente, mas sei que está sendo muito difícil de manter uma vida organizada, estou fazendo o possível. Eu poderia escrever um texto de dez páginas só falando sobre o quão mal eu estou me sentindo, o quanto de agonia eu estou nesse período de quarentena e isso está me mostrando o quanto é necessário o apoio da família e de amigos, para desabafar, para ouvir que tu não precisa se cobrar tanto, se quiser pode deixar as atividades para amanhã e ver série hoje, dormir, sei que não é o certo, mas tem dias que não tem como fazer as coisas.

14.9.20

Dia 181: por Manuela Vieira

Dia não faço ideia.

Às vezes acordo e sinto como se nem tivesse dormido. Os dias não passam. É como se eu estivesse presa no tempo. As segundas não podem mais ser chamadas de segundas. Os dias são iguais. Às vezes acontece alguma coisa diferente. É raro. Acordo. Pego o computador. Ligo. Me levanto. Vou para a sala. Largo o computador. Pego meus cadernos, livros e estojos. Vou ao banheiro. Lavo o rosto. Escovo os dentes. Volto à sala. Me sento na cadeira. Mais uma aula. Mais um dia.

Tem dias que eu estou 50% disposta e outros nem isso. Tem dias que eu me sinto totalmente alheia, como se só tivessem me jogado no mundo sem mais nem menos. Tem dias que eu tô bem. E o ciclo se repete.

Em alguns dias, acordo me sentindo vazia. É uma sensação muito estranha que nunca pensei que fosse sentir. Não sinto absolutamente nada e parece que nem eu me reconheço nesses momentos.

A ansiedade tem sido a minha maior companheira nessa quarentena. Ela chegou de mansinho, eu nem percebi e, quando vi, acordava e dormia com ela todo o santo dia. Eu já vivia grudada nela, não nego, mas com a loucura que o mundo se tornou e as mudanças que tive que aceitar, tudo piorou. Eu melhoro quando tenho a companhia de alguém ou quando meu cachorro me olha e consigo ver, no fundo dos olhos dele, que a pandemia tá complicada até para ele.

Mesmo com todo o psicológico abalado, preciso fazer as atividades. Respiro fundo, pego uma água, coloco meus fones para não ouvir os barulhos da rua e abro o classroom. Acho que só quem tá passando por isso que consegue entender esse meu sofrimento.

Mas hoje, por incrível que pareça, sem a ansiedade ou a sensação de vazio a todo momento, senti uma saudade de viver. Uma vontade louca de viajar, de conhecer pessoas novas, lugares diferentes, de sentir o vento batendo no meu rosto enquanto ando de carro, de ver as pessoas, de ir no restaurante que eu gosto, de ver as ruas, de olhar o mundo e não apenas as paredes brancas da minha casa. Esse sentimento preencheu minha cabeça e a calmaria chegou por alguns minutos. Apesar de ser nova e viver de um jeito diferente de muitos adolescentes, sempre me limitei muito a fazer coisas. Sempre me foquei em uma só coisa. E nunca pensei que fosse sentir falta até dessa coisa. A escola.

12.9.20

Dia 179: por Marília Teixeira

Feliz ano novo

Hoje eu acordei cansada. Tem vezes que nessa rotina eu vou direto para a janela. Respiro aquele ar frio, que tem outro peso e falo bom dia. Porque não falarei mais nenhuma palavra até as onze. Minha visão da cidade é considerável, mas esse ritual às vezes vira o ponto limite onde posso chegar.

Dias assim eu me sinto ingrata. Eu já vi alguém morrer. De mês em mês. Era alguém que eu não gostava muito, levava livros ou qualquer coisa para me distrair. Até andei de patins pelo apartamento uma vez. E me perguntava sempre se um dia ia me arrepender disso, que se houvesse de fato um julgamento eu seria a pior pessoa por odiar alguém que morria. Ele pegava na minha mão sempre e me olhava no olho para dar tchau. Se fosse hoje, eu ia sair sempre chorando. Lá atrás, não.

Tem vezes que nesses dias me veem outra memória de morte. Ela já era mais velha e eu realmente gostava dela. Conversava comigo quando andava de balanço, sempre no lado de fora de casa. Há tempos tava doente, não fazia sentido resistir. A incapacidade que se sente quando se precisa de alguém para te trocar as fraldas é quando se morre. O corpo demora em acompanhar. Ela pegava na minha mão forte apesar de eu ser uma estranha que ela nunca de fato conheceu. 

Então eu me sinto ingrata. Ingrata por me sentir feliz quando sou produtiva nesses meses dentro de casa. Culpada por voltar para a rua em duas semanas se tem alguém que perdeu todas as três irmãs no hospital. Ingrata por pensar que as pessoas precisam se despedir assim, em menos de um mês. Resfriado só. Resfriado que minha mãe teme todos os dias estar trazendo para casa por trabalhar no posto de saúde. Aí me sinto com os pés sondados no chão. Preciso ser forte como ela é.

Ao mesmo tempo, tem vezes que nesses dias eu sinto vontade de rever fotos. 

Era a virada da madrugada do meu aniversário. Véspera de natal. Geralmente no meu aniversário não tenho uma memória muito forte, não sou muito feliz. Dois anos atrás eu tive uma companhia que saiu comigo por aí, fotografando, correndo, bebendo, dançando e tropeçando em caracóis. Já que eu olhava para cima, para a lua redonda. E nunca tinha me sentido tão eu, tão pertencente a um só lugar. 

O ano novo foi tão bom quanto. Depois da meia noite subimos eu, meu primo e minha irmã nas pedras bebendo champagne, a lua revisitando na mesma fase. Consegui ver os fogos. Sentamos num banco, no meio do campo, ouvindo música. Senti que vinha muita coisa pela frente e que estava pronta. Que eu era eu, e vivia no meu casulo. Não sabia a que agradecer tanta segurança. Amadureceria muito com aqueles sentimentos de combustível. Tinha feito o discurso de formatura. Tinha me apaixonado. 

E de fato foi um baita ano, o seguinte. Me envolvi com a mesma pessoa, agora desapaixonada. Conheci outras, fiz jogadas de basquete como se soubesse o que fazia e fiquei eufórica com uma torcida. Não me sentia tão ansiosa quanto antes, estudei mais tranquila. Todas as manhãs, sentava no mesmo lugar. Olhava para a torre da igreja naquele tempo lento, cinza, com minhas amigas sempre sentadas no meu lado. Cada prova que entregava eu estava sendo sincera a mim mesma e meu futuro. Aprendi a depender só de mim, a pessoa que ia continuar até o final comigo.

O ano seguinte teve outra promessa. Não me sinto mal de estar em casa e estranhamente não tenho ansiedade nem estresse porque sei que estou fazendo o certo depois de tanto tempo... Mas depende mais do resto do que de mim. Tive sorte de ter vivido minha vida como foi e como está sendo. Tem dias mesmo que não dá vontade de continuar tentando estudar. Perde o sentido. Tu vê cada professor e aluno que também não acredita. 

Não tenho um tom otimista para terminar. Apenas um lembrete de que nada permanece.

Se vivem memórias, pessoas vivas, mil possibilidades que são só jogadas no acaso e se encaixam, de modo tão aleatório que às vezes dá certo.

Na mesma vida que se morre, se vive.

10.9.20

Dia 177: por Bruna Deicke

Horas em claro. Durmo. Pesadelo. Acordo. 
Em claro. Durmo. Pesadelo. Acordo. 
Em claro. Durmo. Despertador. Acordo em um pesadelo.
Café com leite. 2 mols. Matriz de A. 1. Tô aqui. Tudo tranquilo. Tchau.

A quarentena tem sido difícil.

Falar sobre um dia específico é uma tarefa complicada, uma vez que são todos iguais. Um infindável ciclo cheio de coisas e de vários nadas. Manhãs em aula. Tardes no Classroom. Noites mal dormidas. Quase tudo se repete, menos as mortes. Essas vão se somando a cada dia. Não foram mais 800 mortes. Foi uma, mais uma, mais uma, mais uma, mais uma e mais uma história de vida. Mais uma família sofrendo. Mais um caso confirmado. Mais um story irresponsável. Mais um absurdo do presidente. 
 
O mundo tem sido difícil.

Meu mundo submerso é cheio de coisas. Dessas, muitas eu não sei lidar nem resolver e, enquanto eu puder, deixo pra depois. Este é um dos meus maiores problemas: procrastinar. Eu adio tudo o que posso por diversos motivos: medo, insegurança, preguiça ou por não me sentir preparada.  A minha mente é bem traiçoeira, ela me sabota bastante. Sendo de dia ou de noite, ela está sempre pronta. Já me disseram que eu me deprecio demais e que não posso ser assim. É tão fácil falar. Eu tento, eu juro, mas o momento não me parece muito favorável para pensamentos positivos, ainda mais analisando todo o contexto dos últimos meses da minha vida. Tem coisas que não sei quando vou resolver. Deixo pra depois. Choro. Decido resolver. Ensaio uma conversa. Desisto.

A minha mente tem sido difícil.

Tudo parece ainda pior com o isolamento. Já o conheço muito bem. O vivi quando abraços ainda eram permitidos e, mesmo assim, eu não os dava. Já passei noites pensando sobre ele, sofrendo, chorando, mas me escondia atrás de uma máscara quando na presença de outras pessoas. Hoje usamos uma de pano. Só mais uma entre tantas outras do cotidiano. Às vezes ela te deixa sem ar, atrapalha a visão, mas precisamos usar como forma de proteção. Se proteger, proteger o outro ou só como forma de procrastinar o sofrimento. Tiro a minha máscara em casa, no meu quarto, de noite. Só eu, minha mente e meu bloco de notas do celular. Nele revivo quando tudo começou a dar errado, quando a distância se fez presente contra a minha vontade, sem se importar com o que eu iria sentir. Nesse bloco, tenho memórias descritas, palavras que nunca serão ditas, confissões que nunca serão feitas e a senha da Netflix. Há noites em que quase caio na tentação de liberar o que me sufoca, mas, como sempre, desisto. E tudo se repete.

Horas em claro. Durmo. Pesadelo. Acordo. 
Em claro. Durmo. Pesadelo. Acordo. 
Em claro. Durmo. Despertador. Acordo em um pesadelo.
Café com leite. 2 mols. Matriz de A. 1. Tô aqui. Tudo tranquilo. Tchau.

A vida tem sido difícil.

8.9.20

Dia 175: por Alexandra Nogueira Kleinubing

É difícil explicar o que se passa em um dia entre tantos outros que me parecem tão iguais entre si. Quanto mais o tempo passa parece que estou um passo mais próxima de colapsar. Parece que as aulas voltarão, e eu tenho medo. O problema é que eu sempre tive medo de acabar num isolamento muito maior do que o proporcionado pela quarentena, e ainda por cima cercada de pessoas. Acho que muita gente meio que já se acostumou com a rotina construída nesse momento, o problema é que ela é mais confortável de certa forma, mas é muito mais estressante e perigosa. Sem contar o quanto a população está abalada com todas as vidas perdidas, a situação do sistema de saúde, da economia e da política do país e a saudade de seus amigos e familiares. É muito complicado tudo isso e envolve muitas variáveis, e, mais complexo ainda, são os nossos interiores. Tudo isso para introduzir hoje. Eu tinha feito todo um planejamento de tarefas que iam consumir todo o meu dia, que é basicamente como eu estou suportando esse período: estudando. Acontece que nada sai como o planejado. Depois de assistir às aulas online eu começo as tarefas e sou constantemente interrompida pela minha família. Minha avó está ficando na minha casa, porque minha mãe recentemente passou por uma cirurgia (sim, no meio da pandemia) e ainda está se recuperando. Minhas ansiedades estão cada vez maiores e me concentrar tem ficado cada vez mais difícil. Eu sinto muita falta dos meus amigos, familiares e principalmente do meu pai e meus pets (que estão com ele). O distanciamento é mais que necessário e eu compreendo isso muito bem, tenho alguém de risco em casa que é a pessoa que mais amo no mundo todo, então não posso correr riscos, e acho que todo mundo deveria se ajudar nesse sentido. Mesmo me sentindo 24 horas do meu dia perseguida pelo pensamento assombroso do vestibular e testes que se aproximam, eu tento manter a calma e consigo alguns momentos de distração quando jogo cartas com a minha mãe, jogos online com meus amigos ou leio livros do romantismo (que descobri serem muito agradáveis e interessantes). As coisas estão ficando cada vez mais estranhas, mas sinceramente acho que a causa vai muito além da quarentena, e o futuro me parece bastante turvo. Espero que fique tudo bem, é só o que consigo pensar. 

Saudades… parece que cada segundo que passo longe de todos que eu amo, é um tempo precioso perdido, e isso dói, bastante. Acho que o que mais aprendi é que eu preciso e sinto muita falta de contato e convivência, mais do que eu jamais poderia imaginar. 

Não podia faltar uma foto da coisa mais fofa da minha vida. Pleníssimo (ou nem tanto) em seu isolamento social que já era uma realidade para ele muito antes disso tudo. Mimoso é um gato dos mais estressados com a vida, sempre reclamando, mas com muito amor e carinho para dar.

6.9.20

Dia 173: por Rafael Girardi Bertoti

Acordo à 1 da tarde, em um domingo frio, finalmente despreocupado por já ter feito (quase) todas as atividades pendentes, mas também preocupado por pensar na possibilidade de que o resto do meu ano vai ser assim, ou por saber que meus pais já estão trabalhando no meio da pandemia (sempre me irrito com eles quando lembro disso). Sem vontade de sair do quentinho da cama, percebo que o dia já parece uma cópia do outro, e de todos, ou quase todos. Assim me lembro do que faz os meus dias valerem mais a pena nesse isolamento; os filmes. O meu vício por essa arte volta repentinamente, e me faz levantar logo.

Tomo café (sim, a 1 da tarde); meus pais estão há horas acordados, sem pressa nenhuma de fazer o almoço, queriam descansar; a gente sempre almoça às 16:00 mesmo. Coincidentemente estavam vendo um filme, mas não da vibe em que eu estava, era um blockbuster de ação; eu queria ver uns clássicos. Fico uns minutos com eles no sofá, pra aproveitar meus pais pelo menos um pouco, e já subo. 

Tinha assinado o Telecine Play há umas semanas; vi e ouvi em simplesmente todos os lugares como era um bom serviço de streaming, e afinal era exatamente o que eu tava precisando; todas aquelas notícias horríveis que desmotivam todo mundo, além das dezenas de atividades que eu tinha que fazer, tavam me desgastando, fazendo eu ainda mais recorrer aos meus filmes. Inclusive, os filmes tinham uma desvantagem; eles acabavam com a minha organização das atividades e aulas online; durante toda a quarentena, não consegui conciliar as duas coisas, exceto nesse domingo.

Ao final do dia, os filmes me salvaram mais uma vez. Assisti quatro, só com uma pausa pro almoço; descobri que 2001: uma Odisséia no Espaço é simplesmente genial; assisti Parasita e Bastardos Inglórios de novo; me apaixonei ainda mais (e me tornei ainda mais fã do Tarantino). Mais uma vez consegui me renovar com a ficção, pra bater de frente com essa realidade. Deito feliz, sem conseguir tirar o que vi da cabeça. Diferente do começo do dia, penso otimista; como sou sortudo de poder estar feliz e seguro em casa, e de como posso contar com meus pais, ou com esse refúgio que são os filmes, diferente de algumas pessoas que infelizmente não podem. Termino o dia muito bem, pensando que eu talvez não enlouqueça até o final da quarentena, e que estou na melhor posição que alguém poderia estar em uma pandemia.

5.9.20

Dia 172: por Daniel Feix

Os sabiás cantam à meia-noite no Centro Histórico de Porto Alegre. O caminhão-pipa que lava o Viaduto da Borges faz tremer as venezianas de madeira das janelas do meu prédio quando aciona o jato de suas mangueiras, pouco antes da 1h. É pandemia, o vírus está entre nós e a contaminação é fácil, mas não há receio de aglomeração para os seis ou sete guris e gurias cantores que cruzam a Rua Duque às 2h35min.

Já estou na cama e, sem espiar lá fora, nunca sei se a sirene que ecoa alto aproveitando a acústica do viaduto, às 4h da manhã, é dos Bombeiros ou ambulância.

Antigamente, vizinhos ficavam incomodados com o que as reportagens do Jornal do Almoço anunciavam ser uma cracolândia na Marechal Floriano, entre a Duque e a Salgado – havia gritos diários, mas na hora em que os residentes já estavam todos recolhidos, período em que os motores de ônibus e motoboys dão trégua para podermos ouvir dos sabiás às sirenes.

Há menos tempo, o motivo da reclamação eram as famílias alojadas sob lonas nas calçadas da Borges. Nada que os caminhões-pipa não tenham resolvido, após reclamações junto aos órgãos assim chamados competentes.

Os ônibus começam a se fazer notar apenas às 6h, e não mais às 5h. Há menos deles, pelo que consigo calcular enquanto o despertador não toca. Certo que é a pandemia.

Já sei que são 8h quando chega o caminhão que traz lenha para alimentar as caldeiras do prédio ao lado do Everest. Sempre achei que fosse para o hotel, mas ele está fechado desde o fim de março. E o caminhão segue nos visitando, nem sempre pontual, mas respeitando o horário comercial. Respeitar o horário comercial é regra que moradores fazem ser lei no Centro Histórico de Porto Alegre.

Tenho dormido menos. Compenso o cansaço lembrando por que deixei de frequentar as reuniões de condomínio.

1.9.20

Dia 168: por Edmundo Arregui Dantas

Com a idade e a aposentadoria, a quarentena perde o seu peso. A rotina não muda muito.

Não há mais as obrigações do emprego, então a gente pode escolher o que quer fazer. Podemos ter um ócio criativo. Como não sou de baladas e outros eventos públicos, ficar em casa não é um peso muito grande. Em vez me sentir preso me sinto protegido .O treino no zen também ajuda muito. A morte não assusta. Tudo fica mais tranquilo. A gente tenta evita-la é óbvio, mas não perde a cabeça.

Porque as pessoas sabem que lá fora a morte está de tocaia.

A gente abre a porta da rua e a partir daí tudo o que a gente toca pode conter a morte.

A maçaneta do portão, os produtos do super, mesmo a calçada, podem conter a morte.

Os parentes e amigos podem conter a morte.

Estamos ameaçados de morte. A qualquer momento podemos pegar o Covid e eventualmente morrer. Mas quando não estivemos? Desde que a espécie humana existe, a possibilidade de morrer antes da velhice existe. Ora mais, ora menos, mas sempre presente. A vida dura um pouco mais, um pouco menos, mas sempre termina em morte. Temos de aceitar isto, aceitar a impermanencia e viver uma vida plena.

Alguns monges tibetanos pintam usando um pincel molhado apenas com água.
-Mas vai desaparecer!
-O que você escrever no papel também, só demora um pouco mais.

Uma pessoa estava sendo perseguida por um tigre. Ela correu até chegar à beira de um precipício. Sem saída, pendurou-se numa vinha que estava na beira e ali ficou.
Ao olhar para baixo viu que outro tigre a esperava atento. Segurou firme no galho que era sua única salvação. Aí notou que dois ratinhos, um preto e um branco roíam o galho.
De repente, viu bem perto um pé de morangos com um moranguinho bem maduro.
Com a mão livre o pegou e comeu.
Humm que delícia!

Como o treino zen ajuda na pandemia:

A sombra dos bambus
Varre os degraus da entrada
Sem perturbar a poeira.
A lua penetra o fundo do lago
Sem deixar qualquer marca na água.