Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

31.8.20

Dia 167: por Rodrigo Bittencourt

Os sebos estão abertos, e esse meu novo hábito vem em boa hora. Serviço essencial mesmo.  

Eram quase dez horas, mas ainda não dez em ponto, e por isso eu decidi ir no super matar o tempo, comprar umas coisas que tinham faltado. No caminho descobri uma feira, mas não comprei nada, mal passei perto das bancas. Achei que era exposição demais pedir uma granola num lugar que não conheço. 

Cheguei no super, peguei um quilo de granola, papel-toalha, manjericão e um chocolate 70%. Antes de pagar, liguei pro sebo. Estava aberto. Fiz um caminho mais longo na volta a fim de passar de novo por lá. Fui entrando quando cheguei, mas a atendente, uma loira com olhos bem claros – cabelo e olho é tudo o que se vê hoje em dia –, veio meio agressiva dizendo que só podia entrar um cliente por vez. Tinha só um cara lá. No dia anterior, eram três ou quatro ali dentro. Saí meio ofendido segurando aquelas sacolas do super e esperei com uma velhinha olhando a vitrine. O cliente demorou um pouco a sair. 

A mesma mulher tinha me atendido no dia anterior. Quando entrei hoje, falei como se ela fosse me reconhecer. Disse “Tudo bem? Chegou aquela encomenda?”, mas ela ficou confusa, perguntou se era ela quem tinha me atendido. Falei que sim, dei o nome do livro, e ela disse que tinha chegado. Menos de 8,50 com o desconto. Aproveitei e dei uma olhada nas prateleiras. Demorei um pouco até achar algo interessante, mas por fim peguei a História do olho e levei até o balcão. “Esse tá 89,90”, ela disse, e eu sorri por trás da máscara. Ela repetiu o número pra ela mesma, incrédula. “Vai ser só o outro, então”, eu falei. 

Na volta pra casa passei por uma livraria. Recém abriam a cortina de ferro. Perguntei se tinham a História do olho porque queria comparar o preço, e o atendente disse que estava 49,90, mas só por encomenda. Me perguntei se não teriam registrado errado o preço da outra loja.  

Passando o balcão e outra atendente, a loja tinha um sebo grande, mas tudo caro, mal conservado. Fiquei um tempo olhando as lombadas e os preços enquanto os donos atendiam pedidos de livros no computador. 

“O cara quer outro do Dawkins falando que Deus não existe”, o atendente disse pra colega. 

“É que no Deus, um delírio ele só refuta a religião.” 

“Mas fala de Deus também, tá bem explícito no título.” 

“Sim, mas tu já leu? Ele fala que religião é o mal. Eu concordo.” 

“Escuta”, ele pareceu tentar controlar alguma irritação, “religião é um negócio ambíguo. Não dá pra descartar assim.” 

“Mas e o fanatismo, a hipocrisia?” 

A essa altura eu tinha tirado e devolvido vários livros da prateleira e vinha ficando nervoso porque eram todos caros e eu já estava ali há um tempo. Ia ter que comprar alguma coisa. Encontrei um Triângulo das águas por vinte reais, dei uma folheada e levei até o balcão. A conversa continuava. 

“Olha, tu vai me desculpar, mas esse é um assunto no qual tu é ignorante.” Ele pegou o livro que entreguei, olhou a última página. “Vinte reais. Tu não sabe nada sobre perdão. É uma coisa matemática. Tu pega um cara que matou alguém, introduz religião, e o cara se arrepende pra vida inteira. Cadê a hipocrisia?”

A mulher não respondeu. Dei uma nota de cinquenta ao atendente, e ele perguntou se eu não tinha trocado ou cartão de débito. Passei no cartão. Voltei pra casa com os dois livros e as sacolas do super. Uma hora dessas tenho que ver se as igrejas seguem fechadas.

25.8.20

Dia 161: por Bruno Polidoro

máquina de lavar 

Um som me acompanha há 173 dias: o ruído das máquinas de lavar roupa. Nas primeiras semanas era incessante: em qualquer janela do apartamento o tremer das roupas reverberava. Minhas janelas dão para outras janelas, não vejo o céu. A repetição da paisagem fez meus olhos se entediarem: começaram a despertar os sons.

Alguém assobia. Um cigarro é aceso (adoro o som de fricção do isqueiro!). Ouço panelas que batem na pia, fragmentos de conversas, mensagens de voz, alguma tevê. Não há relógios que tocam. Não ouço os despertadores. O novo tic-tac quem faz são as máquinas de lavar. 

De repente, é madrugada. Leio bell hooks, o vizinho do 403 abre uma lata de cerveja. O sino que vem lá da Redenção toca, me detenho na melancolia de uma sombra projetada – e escuto um resquício de máquina.

Tento ouvir alguma música oriental. A quarentena faz com que os fones de ouvido sejam uma própria extensão de mim. Sento na mesa e coloco os fones – muitas vezes sem som algum saindo do computador. Cria-se o hábito. Acordo, café, abrir o computador, fone de ouvido. Máquina de lavar.

Tornou-se um desespero agradável. O ruído da máquina como um mantra: traz calma. Lava o tempo. Marca o passar das horas. Mistura-se com a chuva. Os dias se enxaguam e se repetem. 

Enfim, domingo e tem sol. As janelas são abertas: e a máquina já está a trabalhar.

23.8.20

Dia 158: por Gabriela Mattia

22.08.2020

Sábado; sol; frio. Incenso.

Escrever o que se sente vem da premissa que sabemos o que sentimos. Nesses dias entendo como comum não expormos o que se passa dentro de nós. Pelo menos vejo que o momento de pensar antes de expor é um ato complexo. 

A análise, o deixar-se sentir. Tanto que, quando me aprofundo nisso, noto o quanto, na verdade, o que sentimos em nenhum espaço de tempo determina o que nos acontecerá. Somos tão fluídos quanto nossos anseios e o que o mundo nos traz de vivência. Para lembrar-nos vivendo, há de reconhecer os diferentes magnetismos que nos mantêm aqui. 

Pode ser um tanto óbvio, mas livros, filmes conversas e músicas foram o que permitiram sentir e escrever o hoje. E um ontem.

21.8.20

Dia 157: por Bebê Baumgarten

Amanheceu um dia frio e ensolarado. Há episódios de neve na Serra estampando os jornais. As pessoas lá, paradas no frio, olhando minúsculos flocos de neve. O repórter mostra empolgado a ‘aglomeração’ de meia dúzia de gatos pingados na friagem da noite de agosto. Há pouco era quase primavera no sul do Brasil. Definitivamente, 2020 é um ano para os fortes e nada é o que parece. Olho pelas janelas. Espio lá fora os ônibus, o movimento dos passantes que na minha rua sempre foi intenso, a despeito da pandemia que assola o país e o mundo. Tudo segue sua ordem na Medianeira. Olho as outras janelas, as de dentro. Meu quintal floresce e os primeiros raios de sol já alcançam as lajes do fundo. Em breve o sol virá até o meio do pátio e, de mansinho virá mais e mais até inundar a soleira da porta no verão.

Os ângulos se impõem. Pensar que se tem a vida pela frente ou uma vida inteira atrás é como pensar que se viveu mais um dia ou perceber que se tem menos um dia de vida pra aproveitar. Tudo se resume ao olhar, ao prisma. No dia 157, reflito sobre minhas urgências enquanto observo os botões de magnólia florescendo no meu quintal. Ali, embaixo daquela árvore, eu brincava na infância enquanto minha mãe tratava das coisas da casa. Era uma planta pequena, um arbusto. Hoje tem muitos caules e ramificações. Também eu era uma planta pequena e sou assim hoje, cheia de caules, raízes e flores. Quisera poder exibir minhas flores na rua, tal qual a magnólia e seus botões cor de rosa, cabeça erguida, vestido estampado e casacão, um par de botas e o andar seguro e elegante. A paisagem passando em volta como um filme em câmera lenta. Na trilha sonora “Dos gardenias”, na versão do Buena Vista Social Club. A cabeça balançando levemente ao som da música e um sorriso muito discreto, quase imperceptível, aos olhos dos outros humanos que cruzam por mim. Me encolho com a gata Mathilde no sofá, ambas enroladas no cobertor vermelho com a estufa aos nossos pés.

20.8.20

Dia 156: por Edgar Aristimunho

Dentro do supermercado, peço ajuda a quatro pessoas para encontrar o que buscava. Entrar numa loja que você não conhece normalmente dá nisso: ondas sucessivas de erros, caminhos cruzados, corredores  ocasionalmente pegando fogo, duas, três, quatro vezes de volta no mesmo lugar, como se eu estivesse dentro de um filme de Andrei Tarkovski, a cena caminhando dentro do quadro, um desenvolvimento interno lento, o plano avançando pelo tempo e não pela montagem, mas peraí, cadê a goiabada do Vô? Giro, rodo o carrinho, dou meia-volta, entro neste e naquele corredor, saio no mesmo caminho, a montagem não respeitando cortes, o filme vai se transformando em espelho, sobreposição de imagens, o registro daquele lugar se confunde com sua memória, unidade temporal episódica, cinema-poesia, Tarkovski era um gênio, mas espera aí um pouquinho o que estou fazendo com o tubo de mostarda na mão, o Vô não come essas pastas artificiais, a memória de nosso último almoço, ele me falando do azeite 0,2 % de acidez, recuamos no tempo, estamos em outros lugares, outra ceia, agora é Natal ele elogia o peru, a cereja, as frutas e essa imagem-pensamento me joga dentro do filme mais memorialístico do diretor russo. Os movimentos lentos de “O espelho”, o cromático, a frieza da memória, a cena como contemplação e então, resoluto, empurro o carrinho em direção à caixa registradora, como se diante de mim a atriz Margarita Terekhova levitasse na cena imortal criada, marca registrada daquela obra única no cinema. E enquanto relembro esse filme que assisti no final da noite passada, lembro que não encontrei a pomada de brilho para alumínio chamada alguma coisa prata, mas se é para limpar alumínio, como pode ter nome de prata? Alguém atrás de mim pergunta: vai passar ou ficar aqui? Empurro o carrinho nesse processo onírico de puta que pariu de supermercado.

19.8.20

Dia 155: por Tobias Carvalho

Logo antes do isolamento, comprei uma xícara de um tamanho maior que o normal para tomar chá. Nos últimos tempos, o chá tem sido um escape. Gosto do ritual de tomar café, sobretudo no inverno, mas a cafeína me tira o sono e me deixa ansioso. Há pouco tempo, comprei uma chaleira elétrica, que é prática e me chama a um certo tipo de ritual análogo. Fazer chá todos os dias ajuda a me ancorar ao presente. Fico preso a algo material para que a mente não se disperse. Tenho tentado me lembrar das tarefas diárias, e as doses de chá servem como pequenas recompensas. Talvez assim o presente fique para trás.

18.8.20

Dia 154: por Merli Leal Silva

Vivendo de lembranças. Revendo as caixas de fotos dos últimos 30 anos. Sobrevivendo de coisas acumuladas na minha mente e no meu coração. Estou em slow motion, dia bom, dia ruim, dia ruim. O governo não cai, não tem nem ministro da saúde e o abandono é notório e vergonhoso. Desde 15 de março de 2020 que meus pés não saem do portão de casa. Tudo chega pela rede digital! Consulta médica, terapia, comida, roupa, livro, legumes e verduras orgânicos, papel de fazer cigarro, caneta, remédio... Tudo. Somos três, eu, minha mulher e nosso filho. Uma família homoafetiva que partilha a vida de forma intensa e verdadeira. Uma ilha de sinceridade e afeto. Nosso filho está terminando uma tese em ciência política, e, muitas vezes ao dia, fazemos debate de um capitulo. Afinal, o neoliberalismo e a financeirização no Brasil matam todas as nossas esperanças. Ricos cada vez mais ricos. Pobres cada vez mais pobres e sem esperança. A pandemia nos fez escrever mais, dormir mais, fazer taichi, yoga e pão. Na janela, ao sol, o mundo passa pela nossa cabeça. Olhamos quem está de mascara e quem não tá nem ai. Estamos exaustos pelo isolamento e pela falta de perspectiva da pandemia acabar. Sinto um aperto no peito e uma vontade louca de ter a minha vida de volta. Estamos ocupados por tarefas remotas que imitam “estar trabalhando”. Chega a cansar! Contudo, sem as tarefas, já teríamos saído pelas ruas de Petrópolis que nem negacionistas malucos! Quem explica tanta negação e falta de medo da morte? Sempre fui anti social, seletiva nas amizades, mas ficar longe dos amigos, familiares legais, dos alunos e da universidade tá sendo mais do que estou podendo suportar. Dos minions nenhuma falta. Nem raiva mais eu sinto. As crises de ansiedade se tornam crises de pânico assustadoras: o corpo dói cada dia num lugar diferente. Encho-me de florais, óleos essenciais, zoloft e donaren. Na crise intensa, lasco um rivotril. Não bebo. Já é um alivio. Canabis todo dia, na dose certa para não dar nóia. Nunca mais transei. Tem desejo, mas não tem clima. O dia de hoje é igual ao de ontem que vai ser igual ao de amanha. Nenhum veneno antimonotonia. Show do Nei Lisboa, ao vivo e em casa, toda a quinta, é outro alento. A música do Nei tem sido a trilha da minha vida desde 1985. Durante uma hora de programa canto, danço e dou risada com “todas as bobagens que eu já disse- que dariam para encher um caminhão”. A pandemia me deu coragem para projetos engavetados: escrevendo a biografia do Nei - criador e criatura, uma pesquisa acadêmica em parceria com uma historiadora paulista. Talvez seja o produto inovador da pandemia: biografar pessoas amadas. Queria botar o pé na terra, na jaca, na rua. Mas tenho medo. Tem um vírus mortal e não tem vacina. Como tem gente que acha que tá tudo bem? O sol se pondo na janela ganhou status de espetáculo! Durante o dia cada um de nós em seu computador - mas quando o dia termina - o reencontro é na janela para ver o sol se pôr. Hoje é aniversário do pai, nunca esqueço. Ele se foi em 2006 e não tem um dia que eu não sinta falta dele. Sonhos na pandemia são mais intensos e ele tá sempre nos meus. Dr. Ronaldo Moreira Brum, psiquiatra, estaria recebendo homenagens dos filhos e netos e curtindo a vida. Enquanto eu aqui pirando, ele estaria calmo e tranquilo terminando mais um livro, atendendo os pacientes on line e bebendo um bom vinho. Meu pai era tudo de melhor e corajoso na vida. Acolhia-me, acalmava, reluzia! Tudo que eu queria era poder te abraçar e te dizer que tu segues vivo nas minhas lembranças- em um momento em que lembrar é tudo que me resta.

17.8.20

Dia 153: por Mauro Duarte

Bal Masqué

A exemplo do antigo anúncio de sutiã, a primeira máscara ninguém esquece. Foi num supermercado - ao menos, economizei R$ 5, ou sei lá quanto custa, pois veio de graça. Primeiro, questionaram se eu não tinha alguma no carro, quando descobriram que nem carro possuo. Saí por outra porta, com receio de que quisessem pegá-la de volta.

Me senti num baile carnavalesco; e olhem que detesto carnaval! Até porque devo tê-la colocado torta, o ar começou a escapar por cima e embaçou os óculos, graças ao que não enxergava as etiquetas e, por pouco, não saberia sequer pra que lado ficava o supermercado. Comecei a suar muito ao redor da boca, o que me acontece normalmente nos semiveranicos, só que com o agravante do artefato. Pra completar, o disfarce acentuou uma rinite alérgica obstrutiva e, mesmo sem vírus, senti falta de ar. Ainda bem que não espirrei, ou correria gente pra todo lado...

De qualquer forma, me esforcei pra chegar em casa daquele jeito e me acostumar duma vez com os novos tempos, porém me livrei dela mal cruzei o portão. Percebi, no caminho, que essa estética mascarada é apavorante porque deixa todo o mundo com cara de dentista... Parece que vão te aplicar tratamento de canal a qualquer momento; no caso, o endodontista, ou periodontista, ou ortodontista, ou cirurgião maxilo-buco-facial? Sei lá. Quando eu quase não precisava deles, acho que só havia um profissional, que fazia tudo. Hoje, nem sabemos qual escolher. Máscara, nos gibis e desenhos animados, era adereço de bandido - só lembro um mocinho que a usava parecida com a atual, o Durango Kid, em seriado tardio que passava na TV preto-e-branco, plena de chuviscos. Por símbolo de hipocrisia não passa mais; quem as ostenta está sendo descaradamente sincero.

Gentileza do supermercado. Gentileza? Pragmatismo. Sabem que, se me barrassem na porta, eu nunca mais voltaria, como naquela rede estrangeira que está abandonando o Brasil. Fui xingado só porque descobri onde escondiam o jornal de domingo, enquanto tentavam vender o de sábado. Pode? Na cabeça da funcionária burocrata que alegava a necessidade de carimbá-los, o tio aqui estava furtando, ou conspurcando uma sacratíssima rotina da atividade-meio, que de repente fica mais importante que a atividade-fim - se não me engano, a de vender. Ou carimbar é a atitude precípua? Normalmente, outra moça, bem mais simpática, me "salvava" e permitia levar o artigo, mas, na última vez, a ríspida passou da conta.

Venho da periferia; a gente suspeita de presentes, sempre achando que estão envenenados, contaminados, enfeitiçados ou condenados à devolução, mal se começa a usar. Ando com ela até hoje, mesmo sob advertência de que pode ser descartável. Lavei diversas vezes e, quando os enfeites de orelha que a seguram ameaçaram ficar flácidos e soltá-la, apliquei duas voltas, como naquelas borrachinhas de dinheiro - quero ver que elástico seguraria um bitcoin... Por sinal, no Brazilian English, dialeto 'pidgin' cada vez mais usual, a gente fala "beachcoin", moeda da praia - ou, pior, "bitchcoin", moeda da p... (expressão politicamente incorreta que não utilizarei aqui, pra não afrontar o neopuritanismo de direita ou de esquerda - ou, breve, alguma igreja pentecostal e algum partido marxista estarão me xingando juntos). Bem o Golbery do Couto e Silva afirmava que, em política, os extremos se aproximam como na ferradura...

O microrganismo chinês, imitando tantas bobagens na rede, tais como a 'influenza' digital, viralizou mesmo... Legítima Gripe Espanhola II / O Retorno, trocou a Belle-Époque pelo Pós-Modernismo, capaz de ressuscitar até o liberalismo econômico daqueles tempos; ou algum caçador de cacófatos a implicar com os meus sucessivos "ismos", inevitáveis no sismo, no abismo e no terrorismo que enfrentamos. Finjam que é rima poética... Quanto ao 'laissez-faire' econômico, sepultado indignamente na década de 30 como coisa antiga, ressurge magnífico na de 80, como troço moderninho e inédito. Meus quatro avós, que não estão mais aqui pra confirmar, devem ter enfrentado aquela infecção ibérica quando crianças, mesmo que habitassem um fim de mundo rural e pouco soubessem do mundo lá fora - inclusive quando, alguns anos depois, se escondiam de ximangos ou maragatos, pragas endêmicas.

Ademais, na incipiente e insipiente medicina da época, ou na arrogância 'high-tech' da nossa, a situação é idêntica: estamos reféns dum bichinho, ou duma porcariazinha que nem sei onde se enquadra e nos dribla o tempo todo, como em 1918. Não sabemos sequer enfrentar o vírus da gripe comum, que nos supreende todos os anos sob nova forma, e os otimistas de plantão já falavam em viver 150 primaveras... Aplicativos que nos colocariam em contato direto com o "nosso" médico, como se todo o mundo tivesse o "seu" médico! Pois o tal médico (cubano, inglês ou selenita), até o momento, pelo que conheço, não sabe lidar com o vírus coroado - e olhe que já são 22h55min. Em plena revolução genética, levamos uma surra dum DNA com casca, mesmo perfeitamente sequenciado.

Já repararam como o vírus é bonito? Ao menos no site noticioso em que o acompanhava no início, parecia um arranjo floral para o casamento da Rainha da Inglaterra. Depois, parei de curingar as novas porque o assunto vinha sempre igual - fiquei sabendo da briga Moro/Bolsonaro, aliás, pela vizinhança. No meu tempo, seria um bicho feio, mas, com a ideologia de gênero, os comunistas nos oferecem um Covid 19 enfeitado e traiçoeiro! Ou foi ideia do Pentágono pra destruir a economia chinesa? O bom das teorias conspiratórias é que todas funcionam; basta escolher a sua. Na ficção, diga-se de passagem, os alienígenas inescrupulosos e invencíveis de 'A Guerra dos Mundos' são implacavelmente aniquilados pelos nossos microrganismos. Ainda bem que não somos extraterrestres. Ou somos?

16.8.20

Dia 152: por Rodrigo Alfonso Figueira

Hein, tu viu o meu e-mail?

Não, ainda não vi. Está metido em uma pilha de outros e-mails que eu ainda não consegui responder porque fico entrando em reuniões pelo Teams de meia em meia hora e escrevendo relatórios que ninguém vai ler. Mas isso eu só penso e não respondo. O que eu vou digitar na caixa de texto é não, ainda não vi, mas sei da tua urgência e te responderei em instantes. Resposta de um bom colega. Um bom colaborador, mesmo em tempos de pandemia, metido em um escritório improvisado dentro de casa.

Olho para a rua. Cai uma chuva fina. As nuvens já estiveram mais escuras hoje, especialmente pela manhã. Agora uma leve claridade entra pela janela, brigando com o tempo ruim. Um céu chumbado de agosto.

Pai, deixa eu te mostrar uma coisa.

Paro o relatório que estou escrevendo e que preciso entregar até às dezessete de hoje. Sinto uma pressão no peito. Leve, mas uma pressão. Minha filha mais velha me estende um livro e começa a descrever detalhe por detalhe de uma história. Passo a mão no rosto dela. Queria poder sentar no chão e ler a história com ela do começo ao fim. Mas o relatório, o e-mail do colega esperando resposta...

Boa tarde! Tens uns minutos? Preciso da tua ajuda urgente. 

Não precisa da minha ajuda, na verdade quer é me passar o trabalho que não pretende fazer. E com urgência. Também não escrevo isso. Apenas respondo na caixa de texto claro, diga. A pressão no peito de novo, um pouco maior. Minha ansiedade não me permite fazer outra coisa. Paro tudo e fico acompanhando o status da caixa de mensagem: digitando. Olho para o lado e a minha filha continua com o livro na mão. O relatório.

Pai, escuta.

O meu celular toca. Não atendo. Silencio a chamada e olho para a rua de novo. Não chove mais. A claridade cresceu e uma leve sombra se forma em torno do corpo da minha filha, ainda sentada no chão. As nuvens de chuva agora negociam com um sol preguiçoso de final de tarde. Agosto.

Então, consegue me ajudar? É urgente.

Já entendi que é urgente. Tudo nesse lugar é urgente. No corporativo as pessoas têm uma estranha maneira de pedir ajuda. As mensagens seguem piscando, me cobrando uma resposta que eu nem sei se tenho. O telefone voltou a tocar. Penso na minha mãe, mas não é ela. Um alerta pula na tela do computador sinalizando a próxima reunião pelo Teams. Silencio a chamada de novo enquanto ouço a minha filha contando um trecho da história para mim. 

E o relatório me esperando. O cursor parado no mesmo lugar, sendo cutucado pela janela de alerta da reunião. Quase dezessete e ainda me falta escrever uma página e pico. Já antevejo a próxima cena: um novo e-mail entrando na minha caixa perguntando se o relatório está pronto. O peito de novo. 

Pai.

Levo às mãos ao rosto e o esfrego com força. Fico preso por segundos numa bolha escura, fugindo de tudo que envolve este exílio social a que fomos submetidos. Social, não: humano.

Olho para a rua. Lá longe, onde o horizonte sinaliza que estou mirando para o Sul, vejo um clarão. Um traço alaranjado pateia as nuvens de chuva, ganhando terreno. Uma fina linha de incêndio colorindo um pedaço pequeno de céu, banhando o chão deste escritório enjambrado e o corpo da minha filha. 

Respiro fundo. Amanhã terá sol.

14.8.20

Dia 150: por Rafael Bassi

Bárbara e eu temos aproveitado para fazer coisas que antes não podíamos, como, por exemplo, tomar café e almoçarmos juntos, na mesa que fica na sala, de frente para a rua. Como estou dando aulas pelo computador, não tenho mais deslocamentos. 

A quarentena – interminável nesse país de dissabores – já nos causou todos os tipos de sentimentos possíveis. Hoje olhamos pela janela e sorrimos ao ver a árvore. 

Cada qual se agarra às revoluções que pode. Eu há tempos tenho dito que luto pela sobrevivência destas duas árvores na frente de casa. Pelo bairro, só o que se vê é que as árvores foram sumindo. Já anunciei: se preciso for, me acorrento às árvores e chamo a RBS, Zero Hora, o que for preciso. Tenho um amigo, que tem um amigo que trabalha na edição do Globo Repórter. Sempre há a quem recorrer.

Hoje acordei sonolento, tomei meu banho, e fui dar aulas. É aniversário da minha mãe, e quando foi 23:55 de ontem, minha sobrinha que mora com ela nos ligou via Zoom e fizemos, meia-noite, uma festa surpresa, cantando parabéns e fazendo-a chorar. Por isso, hoje acordei neste estado. 

Trabalhei a manhã toda. Isso tem me deixado mais tranquilo, porque o excesso das atividades tem feito o tempo correr mais rápido. Tive que me adaptar com as tecnologias todas para o processo de ensino à distância, mas acho que tenho me saído bem. O que me irrita um pouco é que a) o governo fica anunciando o tempo todo que está planejando voltarmos às aulas, mesmo com o Rio Grande do Sul passando seu pior momento e o Brasil, então, nem se fala; b) algumas instituições estão redobrando a rigidez e querendo mil coisas por semana. O ensino privado foi a única coisa que conseguiu se adaptar ligeiramente bem neste contexto e, por favor, nosso objetivo não é criarmos uma educação nova, mas todos deveríamos tentar ao máximo sobreviver a 2020. Meu sonho é simplesmente chegar ao ano que vem.

Durante a tarde, aulas com o Assis Brasil, que servem sempre de reconforto. Ouvi-lo é sinal de que ainda existe humanidade; em algum lugar encontraremos sempre um Assis Brasil, a quem teremos prazer de ouvir. 

Por outro lado, vi a notícia que o sujeito que ocupa o executivo nacional está com a melhor aprovação popular desde o início do seu mandato. O Brasil, definitivamente, não é para amadores. Seria interessante que o Brasil se desprendesse do mundo e caísse, logo, em um buraco temporal. Seríamos lembrados como são os dinossauros, com certo exotismo e, quem sabe, com sorte, viraríamos um divertido filme de Hollywood. (Como bem disse Saramago, deveríamos todos pelo menos uma hora por dia ficarmos tristes porque o mundo é ruim para com a maioria. Nesse momento, eu fiquei triste, porque é uma questão de solidariedade).

Leonel, o cachorro, está bem tranquilo. Passou por uns perrengues no início, porque queria sair, mas se adaptou bem e, quando quer, traz seu brinquedo para que joguemos no corredor, ou seu pote vazio, porque a fome nele parece uma constante. Melancólico, fica na janela durante vários minutos durante o dia. Mas é, como alguns de nós, um privilegiado por ficar em casa enquanto a maior parte do Brasil simplesmente parece ignorar a pandemia. 

O que resume isso é, como sempre, nestes mundos atuais, um meme (que não lembro de onde tirei): O governo brasileiro, para evitar uma segunda onda, adotou a estratégia de nem sair da primeira. 

As árvores, ali do início, ano passado nos deram um susto: era inverno, todas as suas folhas caíram e nós achamos a imagem bonita; de repente, não sabemos quanto tempo se passou, talvez um dia, talvez um mês, olhamos para ela e estava repleta de folhas, verdinhas... Neste 2020, elas não puderam fazer nada contra nossa sagacidade. À la Paul Auster, decidimos fotografá-las todos os dias e acompanhar a natureza se transformando, lindamente.

Quando chegou a noite, Bárbara e eu jantamos à janela, comemorando os 3 anos das primeiras declarações de amor. Bebemos vinho, comemos fartamente, brindamos. Vimos as fotos das árvores, enquanto observávamos a imagem delas escurecidas pela noite. Sim, eu estou disposto a salvá-las, pois, como bem lembrou o velho russo, “a beleza salvará o mundo”. Se não ele todo, o meu certamente. 


13.8.20

Dia 149: por Camilo Raabe

Não sei se conseguirei dormir hoje.

E esta folha em branco me parece confortante.

Gostaria de me fechar neste mundo, este universo que me traz a paz do momento.

Medo... Me disseram que o medo é uma ilusão, algo imaginário. O pavor é real. Estou com medo ou apavorado? Bem, se há dúvidas, estou com medo. O pavor não deixa espaço para hesitar. Não deixa espaço para respirar. Com pavor não se pensa. E eu penso... por isso escrevo.

Pode ser arrogância... um pouco de prepotência, mas penso que o filósofo estava errado. E o pior é que visitei sua tumba, me arrepiei até a espinha, senti algo de grandioso quando, sem querer, me deparei em frente àquela escultura de ermitão sobre o que restou de sua grandeza. Bem, talvez não seja sua grandeza que tenha restado, apenas carne e osso. Escrevo, logo existo. Escrevo, para me encontrar comigo mesmo, enfrentar o meu medo, pensar que ele á apenas uma ilusão. O pavor é diferente.

O filósofo deixou de pensar, e não mais existe. Ele, não existe. Suas ideias correm o mundo, mas ganham vida por meio de outras cabeças pensantes, não a dele. É outra coisa... E se eu parar de escrever? Se não puder mais escrever?

Por enquanto, escrevo... e minha pena (vale o arcaísmo por sua ambiguidade) me conduz ao instante, seu som, sua cor... estou vivo. Agora. Materializo minha existência, estar vivo é estar presente. Meu avô vive na minha memória, em meu pensamento. Ele está presente, é sua obra que fica, por enquanto.

A situação anda calma esta noite. Espero que descansem. Uma das coisas que mais mexem comigo é a vulnerabilidade da vida. Preciso de ar...

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Noite passada foi tensa. As crianças melhoraram, mas minha esposa está com sintomas delicados. Pode ser qualquer virose. Dormimos todos junto, é impossível colocá-la em quarentena. Tenho que trabalhar, não posso ficar mal. Entre a vida e o trabalho, o trabalho também é vida. É comida, contas pagas... Não é fácil ser professor na quarentena. Vou deixar de lado a minha máxima de que o fácil não tem graça, a coisa anda difícil. No mais, ter trabalho hoje em dia é luxo. Merda de sistema! Não, ar, não te vendas, disse o poeta em sua ode. Posso acrescentar, tu não tens preço, minha vida sim.

Vida... Viver é existir. Escrevo, e faço o mundo girar. Se não estiver vivo, o mundo seguirá seu rumo, apesar de mim. Mas se tu não estiveres viva, não saberei o que fazer. Pelo amor de deus, fica bem. Existir ao teu lado é mais gostoso, é mais alegre. O que direi às crianças? O que elas terão que dizer para mim?

Compro alpiste e crio solto os passarinhos. Vejo a vida viva, e me alegro. Não faltará alpiste no mercado. Podem se digladiar por papel higiênico, mas não por alpiste. Se eu morrer amanhã... estes veros não saem de minha cabeça. Os passarinhos não precisam de alpiste. Os seres humanos, sim. Se eu morrer amanhã, o mundo seguirá seu rumo, apesar de mim.

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Está difícil de escrever. Esta cachaça já me virou do avesso. 

Impressionante como a gente fica sóbrio de um momento para o outro. Fico bem a qualquer ruído. Posso limpar um vômito com a maestria de quem nunca bebeu. E bebo... Mando um sinal de fumaça ao divino. Sou eu. Aqui estou, escrevendo... Vivo!

Preciso estender a roupa. Depois eu volto.

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Que eu possa por muito tempo estender as tuas roupas, meu amor. Que eu possa... me deitar ao teu lado e aquecer os teus pés com meu calor. 

12.8.20

Dia 148: por Daniel Ricci Araújo

Dentro de um terno bem cortado, a âncora  televisiva anuncia que o Brasil passou pelo pântano das cem mil mortes por Covid-19. Desligo a televisão, coloco uma bermuda, uma camiseta e saco a chave do carro da mesinha da sala. Na descida das escadas do condomínio, noto que os "boa tarde como vai" da vizinhança brotam de um ponto mais fundo do peito por esses dias, o novo normal em que máscaras de pano são vendidas a granel no Mercado Livre.

Entro no carro e dou a partida. Saio pelo portão e tomo a rua, desvio da placa-advertência obras a 300 metros, subo o viaduto central e entro à direita rumo a Porto Alegre. Perto da Estação Niterói, uma faixa grudada na passarela informa que a revolução popular só será realidade quando forem alcançadas umas determinadas condições. Do outro lado, um pequeno monumento com o nome de Canoas anuncia à frente o Rio Gravataí. Tomo a alça da free-way, e a máscara branca de pano no rosto é a base do pequeno protocolo Daniel de passeio motorizado para sair de casa após cinco dias. Passo à frente da Arena e lembro que as caravanas para chegar ao Olímpico tinham uma cor diferente desse amplo cinza que se anuncia nos braços de polvo da nova ponte do Guaíba. Vinham os grupos de fedelhos metidos a barrabravas pela extensão das ruazinhas estreitas da Azenha, o bairro de pé-direito baixo com suas agências bancárias, lojas de estofados e autopeças. Algum senhorzinho de camisa do Grêmio, da distância de uma sacada, podia dizer como é que vai o fedor destes vossos orifícios e nós então respondíamos tão ou mais cheirosos que o Vosso, meu senhor. Uma vez um amigo comeu tanto em um restaurante da Vicente da Fontoura que não conseguiu completar a grande marcha cívica rumo ao Portão 16 (era o 16? ou o 23?), que se acessava pela Avenida Carlos Barbosa. As coisas que mudaram: já temos idade para notá-las. Em mil novecentos e noventa e sete tudo parecia para sempre. 

Contorno o zigue-zague da entrada da Rodoviária. Na entrada do Túnel da Conceição, a terceira marcha aumenta de leve o giro do motor. Lembro por alguma razão do cinema, já não me recordo como algumas coisas funcionavam antes disso tudo. Imagino o Retrato de uma jovem em chamas na tela grande, a última cena, o grande amor interditado invadindo a sala como uma labareda inflamável. Ontem à noite vi pela terceira vez (terceira?) Um sonho de Liberdade. A esperança, sempre ela. “Andy Dufresne, que nadou por um rio de merda e saiu limpo do outro lado”. Um carroceiro está à minha direita. Parece juntar latas e tudo que tenha algum valor. 

O carro faz a sua volta pessoal e intransferível. Alcança a Padre Cacique, namora a face direita do Beira-Rio. Eu estico a quinta marcha até a frente do Barra Shopping e suas já antigas doze salas de cinema com combo pipoca salgada e de chocolate meio a meio por cinquenta e dois, eu repito, cinquenta e dois reais. Faço a volta. Dedico o devido respeito à lombada eletrônica da mão oposta da avenida e venho embora pela frente do TRT. O Largo da Epatur abriga pessoas caminhando, e me ocorre que aquela casquinha de Cidade Baixa deve ser majoritariamente progressista, atenta às questões da saúde pública e da vida humana em geral. Só vejo gente de máscara. Fantasio cirurgiões plásticos, donos de franquias com ênfase em trabalho colaborativo e malucos de todas as ordens pedindo frascos de cloroquina nas farmácias da Padre Chagas ou da Nilo Peçanha. O colunista do noticiário televisivo, um homem muito branco e muito aprumado, detectou dia desses uma grande divisão entre o povo brasileiro. Eu só vejo os vivos e os mortos. 

Volto para Canoas pela BR-116. Os automóveis estão buzinando, dando setas agressivas ou parados nos postos de gasolina. Já no entorno do meu prédio, estaciono na vaga livre do supermercado próximo (menor que um Zaffari, maior do que uma mercearia). Um homem sem camisa e sem máscara está sentado. Estende a mão e não diz nada. Na porta, o termômetro informa a regularidade dos meus trinta e sete graus celsius de temperatura corporal. Pego refrigerante, pão, queijo e um pé de brócolis (os brócolis têm pé?). Agarro um sanduíche e uma coca-cola seiscentos mililitros. No caixa, vou ajudando a embalar as coisas, os funcionários do supermercado estão sobrecarregados (menor que um Zaffari, maior do que uma mercearia). Coloco o sanduíche e a coca-cola em um saco menor e dou um nó. Volto pela calçada. O homem não está mais lá. Guardo tudo no porta-malas e volto para casa.

Subo as escadas de volta. O barulhinho do whatsapp informa a chegada de mais um Inquérito Policial digitalizado. Eu e minha colega somos unânimes na constatação: aumentaram os feminicídios e suas tentativas. Abro a porta e me organizo: à geladeira o que é de geladeira, ao armário o que é de armário. Digito no teclado do computador uma minuta de pedido direcionado ao Excelentíssimo Juízo Criminal. 

Da janela da sala vejo uma criança brincando com um graveto do outro lado da rua. Ainda há um fiapo de sol, persistente, desobediente, que não respeita o novo normal

11.8.20

Dia 147: por Luiz Gonzaga Lopes

O TGV da vida

Quando certa manhã Luiz Gonzaga Lopes acordou de sonhos intranquilos, estava em sua cama metamorfoseado em um jornalista cultural com medo e ao mesmo tempo sem medo de contrair o vírus, AQUELE, o inominável, que tem ao final de seu nome fantasia o 19, se o DEZ é NOVE, é porque algo está muito errado. Sempre que acorda, LGL reza, não porque tenha fé cega, mas porque crê no rito, em falar com alguém que não é visível.

Acabo de lembrar que este é um diário da pandemia, que preciso descrever de forma documental ou ficcional um dia na vida de um jornalista cultural. Com um narrador onisciente em discurso indireto, terceira pessoa, eu não irei conseguir entregar o referido texto a contento para a exímia amiga das Letras, Julia Dantas, que, na época da presencialidade, me proporcionou alguns papos interessantes sobre literatura, cinema e vida.

Tergiversações à parte, o meu dia começa com uma oração. Uma frase também começa com uma oração, ora, ora. Respeitado o rito, começa a preparação para um dia na vida de um jornalista cultural e editor de caderno de Cultura na Porto Alegre que produz muita cultura, mas por vezes não a valoriza do modo como deveria. Muito café feito na moca, frutas (banana esmagada com aveia, confesso), pão, manteiga e queijo, um ou outro bolo ou omelete.

Um amigo do jornalismo cultural combinou uma live comigo pelo Instagram às 9h da manhã. Horário diferenciado. Talvez tenhamos mais de 100 pessoas ao vivo. Ele me chama pelo Insta, eu atendo e posiciono meu celular de modo horizontal, pois tudo que é feito na horizontal é mais gostoso. O papo começa solto e em alguns momentos, ele pergunta pelo meu início no jornalismo e depois em editorias de Cultura. Digo que a primeira experiência profissional em jornalismo foi numa rádio como produtor e redator de editoriais dos programas da manhã e que o meu início no jornalismo cultural foi numa revista semanal nesta mesma cidade. A conversa que deve durar 1 hora avança para os desafios de um editor de Cultura neste momento de pandemia. Explico que as lives e a produção de conteúdo exclusivo do meu veículo de comunicação são a solução, bem como a busca de material exclusivo, ainda não abordado por outros colegas. Nas perguntas pessoais, os amores, as viagens, os encontros e desencontros e a vida de escritor diletante, com um romance e uma biografia publicados e alguns contos publicados em duas antologias e revistas. E por aí vai. Nos despedimos com a guilhotina do Instagram e eu sigo para dar a primeira visualização de e-mails do dia. Minha caixa chega a ter mais de 5 mil e-mails, dos quais uns 500 ainda não lidos. Pessoas oferecendo artigos para o suplemento de final de semana, outras oferecendo pautas que parecem ser a oitava maravilha cultural do mundo, ainda outras fazendo contato via e-mail ou whatsapp, ansiosas pela publicação de algo ou oferecendo entrevistas. 

No meio disto tudo, eu faço a produção das lives diárias para o jornal, nas quais entrevisto músicos e por vezes gente da literatura, teatro ou artes visuais. Ainda antes do final da manhã, termino a leitura dos principais jornais do dia e sites com notícias da área e preparo as reuniões da tarde com a equipe da editoria e com os demais editores, tudo via Skype. O almoço é rápido. Algo pedido na esquina ou feito às pressas, arroz, bife e salada; massa bolonhesa; arroz, batata e espinafre, com um suco de laranja feito na hora.

A tarde é pura gincana. Fico pensando que logo que começou a pandemia, eu tive a certeza de que ia ler todos os livros clássicos que ainda não li, ver e rever os filmes russos, iranianos, chineses, finlandeses e espanhóis tão sonhado. O velocíssimo TGV da vida ordinária e focada no trabalho avançou sobre mim e eu fiquei amarrado nos trilhos esperando-o passar por cima. Resiliente. Este sou eu. A divisão das pautas do dia, a edição das páginas do jornal. Uns dias são três, em outros são oito ou dez, fora o cadastrar de matérias no site, a produção de conteúdos exclusivos. O café é velho companheiro, adrenalina natural e adoçado com sacarose.

Muitos telefonemas, cinquenta conversas verdinhas no Whatsapp. Eu sou um visualizador nato, mas pior que respondo tudinho, mesmo que para dizer que estou ocupado. Chega a hora da live. Uma entrevista prazerosa com um músico ou um escritor. Falamos de livros que lemos, discos que ouvimos, coisas que gostamos. A pessoa do outro lado do Skype, Zoom, Google Meets passa a ser minha nova amiga de infância depois de uma hora de conversa. Este é o belo da vida das lives, das lives vividas, das ávidas lives, leave my life in peace. Peça de um quebra-cabeça que me extenua a cada dia.

Acaba a live e eu termino de fechar a edição do próximo dia. Por um momento, esqueço onde eu estou e quem sou. Não respondo às mensagens. Rezo novamente e ligo a TV numa série favorita qualquer. A de hoje é a Atwoodica, “The Handmaid´s Tale”. Torço pelas mulheres onde quer que elas estejam, seja qual for a luta. Ativo o meu ativismo, mas ainda não lembro quem sou. Quando caio em mim, estou escrevendo um Diário de Pandemia para a minha amiga Julia Dantas, escritora do magnífico Ruína Y Leveza. Por instantes, me vem à cena daquele deslizamento na Bolívia e de toda a alma contida naquele livro, mas não há mais tempo para nada. O tempo, este tirano implacável, me sussurra algo como: “está na hora de acabar este texto mesmo que não tenha ficado grande coisa”. Como um cara atropelado pelo TGV da vida pandêmica, eu simplesmente assinto com a cabeça e penso em colocar um ponto final no fim desta frase.

10.8.20

Dia 146: por Maria Petrucci

Sobre perder, ganhar e etc. 

Semana passada recebi, por e-mail, uma intimação de um escritório de advocacia de Paris. Aparentemente, eu não cancelei da forma devida a minha inscrição na academia e agora tenho uma dívida de oitenta euros, vinte para cada mês não pago. É a coisa mais excitante que me aconteceu em mais de 100 dias de quarentena: estou devendo dinheiro, a justiça está à minha procura. Os advogados ameaçavam, caso eu não oferecesse resposta em 48 horas, congelar a minha conta bancária, apreender meu veículo, confiscar meu imóvel, coisas que ou já não tenho, ou nunca tive. Primeiro fiquei apavorada; depois, ao ter notícias do gerente da academia (um homem imenso chamado Nicolas, de quem me lembro muito bem apesar de não o ter visto mais do que cinco vezes porque sempre o detestei) e descobrir que o imbróglio era de resolução rápida, embora dolorida — como arrancar um band-aid que por acaso custou oitenta euros —, acabei achando engraçado. 

Achei engraçado falhar tão miseravelmente no início da vida adulta, primeiro por ter me inscrito em uma academia, sabendo perfeitamente que adultos que trabalham quarenta horas por semana não vão à academia, e segundo por não ter me desinscrito ou tê-lo feito errado, por ter assinado um contrato sem lê-lo, por ter presumido que o contrato terminaria uma vez terminado o plano semestral no qual me matriculei, por ter confiado que, se não te dizem alguma coisa sobre o contrato, é porque não é preciso sabê-la, quando é justamente o contrário, é fundamental saber o que não te dizem, haja ou não um contrato. Achei engraçado existir em dois lugares ao mesmo tempo, ser eu mesma aqui no Brasil — meu eu triste e desapontado, cujo retorno à terra natal é amargo e solitário, e não festivo e eufórico, como eu pretendia ou imaginava no início de março, que além de não se divertir no presente gasta suas poucas economias em delitos do passado — e eu antiga ou eu pregressa na França, meu eu vibrante e aventureiro, ainda infantil malgrado os inúmeros encargos aos quais as circunstâncias me forçavam, que experimentava com gosto o erro e de quem eu jurava ter me livrado quando entreguei a chave do apartamento e fechei a conta no banco. Achei engraçado perder oitenta euros — um dinheiro absurdo em solo brasileiro, que vai me doer no bolso e poderia, aliás, ser usado para inúmeras benesses (três cursos de extensão, quatro idas ao supermercado, uma cesta básica, uma passagem de avião, cinco ou seis livros) — como se perde um sinal aberto, uma chance, ou então um brinco, uma fita, algo pequeno e substituível. Achei engraçado ser como sou ou ser isto em que me transformei: ridícula e despreparada, ou então mimada e frívola e negligente, mas também tolerante, desprendida, despreocupada; alguém que leva bastante a sério o dinheiro, pensa constantemente em dinheiro e nas maneiras de melhor reparti-lo, que pode, inclusive, passar tardes estudando-o em sua esquizofrenia capitalista para defender a taxação das grandes fortunas e o fim do imposto regressivo, e no entanto não sabe usá-lo, nem guardá-lo nem muito menos aplicá-lo ou multiplicá-lo. Ao contrário, ri sem vergonha porque jogou oitenta euros pelo ralo, porque deve oitenta euros que mal tem para uma academia francesa que mal frequentou. 

Pensar em mim mesma há alguns meses como outra pessoa — não tanto como um fantasma ou espectro quanto um clone, ou uma gêmea por bipartição, alguém que fabriquei e que portanto persiste e continua em sua temporalidade remota, congelada, ela sim feliz, à qual já não tenho acesso senão em memórias que mais parecem capítulos de uma novela — dá-me uma sensação de escape imerecido da quarentena, oferecendo-me um vislumbre de outra linha do tempo, de uma realidade alternativa em que não me cansei, não tive medo e não voltei ao Brasil. Nela vou à praia em Marseille e leio as notícias com culpa, nela 100 mil mortos me envolvem como o susto de uma trovoada, menos sufocante do que esta redoma de vidro em que nos encontramos; nela posso ver ao longe o espírito do mundo, que tanto assustou Hegel e Kubrick, cavalgando por sobre o país, mas agora ele é Bolsonaro montado em uma ema, empunhando um pacote fechado de hidroxicloroquina. Mera fantasia, porque nenhum “talvez” cura, nenhum “se” ressuscita ou interrompe: são janelas que dão para o muro, medianeras frustradas e efêmeras. Na minha outra realidade não teria havido esforço internacional pelo cuidado irrestrito, uma união da sociedade civil pela reorganização das estruturas de assistência e proteção: haveria apenas mais grama para mim, e também meu tempo de errar haveria passado — nela tomo banho de mar e já não tomo gosto no erro, e ainda tenho oitenta euros. 

Pode ser que a graça, patética por natureza, venha desta incapacidade de resolver as coisas, desta insistência pueril em arrastar problemas como resquícios de um momento ao qual não se queria dar fim. Ou pode ser que venha da própria falha, de um certo alívio na falha, na derrota, uma súbita afiliação orgulhosa aos losers contra a tirania dos winners. Os vencedores, afinal, costumam passar por cima das pessoas, e o farão mesmo que sejam corpos, dez que viraram dez mil e hoje dez vezes dez mil; poderão escalá-los, ou apalpar sua carne desocupada, revirar bolsos e carteiras enquanto fecham os seus próprios, ou dar dicas no YouTube de como prosperar em meio à catástrofe. Os vencedores acham que vencerão a morte tal e qual vencem na vida, e que vencer é um ato individual e unívoco. 

Me agrada ser um fracasso este ano especificamente, quando nos pedem comprovações de sucesso como se fossem indícios da funcionalidade de um sistema macabro, ou da tenacidade da existência contra quaisquer adversidades, a “gripezinha” que já deixou 100 mil brasileiros falecidos inclusa. Me agrada não tocar adiante a vida, ou tocar uma vida suspensa, à espera de um pouco mais de vida para todo mundo. Gosto de repente de ser improdutiva e desimportante, e de entender que o que faço sem remuneração é ou está sendo maior do que o que faço com ela, o que faço com os outros ou pelos outros mais propulsante do que o que faço sozinha. Ninguém vencerá em 2020 — ninguém vence em uma guerra, se é a isso que chegamos —, mas experiências pretéritas ensinam-nos que os perdedores da sociedade têm mais talento para a partilha e a reconstrução, talvez porque carregam consigo o desapego necessário para olhar para o lado, para o que realmente está ao lado, “é” e “está” e “assim será” ou “poderá não ser”. Fracassados têm mais tempo para remendar e reerguer (e, espero eu, planejar pequenas revoluções), porque a temporalidade do sucesso é linear, caolha e autossuficiente. Se os winners acumulam ganhos com exclusividade enquanto tantos perdem muito, ou perdem tudo, ou perdem a vida, simplesmente, parece-me perfeitamente adequado ser uma loser

Desde semana passada ando pensando naquela frase de Beckett, acho que é “fracasse de novo, fracasse melhor”, à qual resolvo conferir uma interpretação literal: quando o objetivo é apenas vencer, realmente não se faz muita coisa. 


9.8.20

Dia 145: por Karen Garbo

Como manter a sanidade mental neste momento tão crítico de nossas vidas: afunde-se num cinismo confortável e inflexível, ele será a base da sua segurança. Aliene-se com o máximo de mídias possíveis, memes de internet, séries intermináveis. Ah, foda-se. Esse raciocínio não vai me levar a lugar nenhum. Eu só queria escrever aqui algo que não fosse sobre mim mesma, porque até onde eu sei, as morning pages deveriam ser sobre criação. Eu não crio nada há semanas. Ontem à noite chorei de novo. Não, nenhuma nobreza. A inveja pura e simples, (trecho suprimido). Eu só consigo lembrar do conceito de artista sombra do livro, em que um artista reprimido faz sua arte pelas beiradas, acaba trabalhando com algo parecido com aquilo que realmente quer por medo de encarar a própria missão de frente. Pensei nos grandes artistas das gerações passadas, o que seria de nós se eles tivessem se rendido a esse medo.  E em quais são os desafios da nossa época. Viver encurralado por distrações de todo o tipo. Em um nível tão invasivo que é impossível conseguir pensar, pensar com clareza e tirar algum texto do meio disso. Minhas lágrimas ontem foram o resultado do desespero, de pensar que depois de uma semana a (trecho suprimido) não me respondeu ainda, eu tenho que me concentrar no que realmente importa, no ato de coragem que é olhar para si mesmo e pensar, e na coragem maior ainda que envolve persistir nesse pensamento e botar a vaidade a prova todos os dias, tentando achar por cima do texto medíocre a versão melhor dele mesmo. Eu sei que a cada trabalho literário vou assumir uma proposta mais difícil, mas sinto que essa barreira inicial de (trecho suprimido), sendo ultrapassada, vai ser um pouco mais fácil. E se eu comer coisas saudáveis, definitivamente isso vai afetar meu humor e a minha criatividade.

Talvez outra razão para o meu choro seja a mulher que vi ontem no supermercado. Eu tenho ido ao mercado para procrastinar. Não que eu coloque a máscara, calçado, roupas decentes e passe alcool gel só para ir procrastinar, eu tenho internet em casa, pelo amor de Deus. Mas uma vez que estou lá, eu procrastino bastante. Posso ficar horas decidindo uma marca de amaciante. Eu costumava fazer isso em catálogos de roupas livros e maquiagens na internet, mas agora que estou com menos dinheiro, faço no supermercado. Nunca faço listas de compras, isso aceleraria o processo. Nesses momentos, torna-se muito importante escolher a marca correta de pasta de amendoim (eu nunca tinha comprado pasta de amendoim antes). Não pode ter açucar sacarose, mas também não pode ser desprovida de gosto, essa, será? Essa. O que mais eu tinha que comprar? Ah, giz de cera. Ontem senti do nada o cheiro de giz de cera, um cheiro da minha infância, achei muito proustiano, e estou decidida a voltar a desenhar, então...Espera, deixa eu dar uma olhada nos salgadinhos antes, já estou levando várias coisas saudáveis, então não vai ser problema se eu levar um salgadinho, depois que eu estiver mais acostumada a fazer chips de batata doce eu largo de vez os salgadinhos industrializados, se bem que a batata doce já está apodrecendo na geladeira...Pringles. Eu comeria todos os dias se não fossem tão caros. Eu amo esse salgadinho, me sinto mal porque esse amor profundo está diretamente relacionado ao desenvolvimento de diversos tipos de câncer, e pela patética embalagem que vai para o meio ambiente junto com a tristeza do fim do pote. Mas eu poderia comer uma pilha dessas delícias que subisse até a lua. E ainda por cima, tinha uma promoção, se eu levasse o salgadinho, uma coca de 2l sairia por três reais. Eu não bebo muito refrigerante, mas com o salgadinho vai bem e...

Bem perto de mim, uma velha passou empurrando o seu carrinho. Passou não, mais correto seria dizer que se arrastava, mal empurrando com o corpo os calçados que parecia uma pantufa com um solado mais grosso. Vestia um calção que descia até os joelhos e um casaco puído. Os cabelos brancos e ralos iam até logo abaixo das orelhas. Voltei para as suas canelas, cheias de varizes, algumas saltadas faziam uma protuberância tão grande que parecia que uma árvore estava crescendo ali. Me perguntei quanto tempo de vida ela ainda teria, se o corona vírus não a levasse ainda esse ano. Enquanto pensei tudo isso, ela ainda não tinha saído do corredor. A musiquinha plácida do supermercado e o brilho do chão lustrado faziam um contraste interessante com aquela senhorinha vestida em trapos que empurrava o seu carrinho, uma perna depois da outra. Senti-me mal por pensar isso, ela tem uma vida, prazeres, ambições, por certo. O estado deplorável de suas roupas significava que não se importava com a aparência? Claro que não. Mas talvez ela não se importasse mesmo. Ela tinha um refrigerante em seu carrinho. Fiquei imaginando ela em casa fazendo força para abrir o refrigerante e fiquei com pena. Aposto que ela me odiaria se soubesse o que eu estava pensando. Ou não. Quando ela finalmente saiu do corredor, fiquei sozinha com o pote de Pringles na mão. Botei ele de volta na prateleira e fui para o caixa. Num caixa próximo ao que eu escolhi, lá estava ela. Eu não podia ver seu rosto por causa da máscara, lógico. Seus olhos tinham um aspecto enevoado, eu acho que ela nem conseguia ver direito o que estava comprando. Pensei sobre o que eu tinha acabado de fazer. Como se não comer a porcaria do salgadinho fosse me impedir de ficar como ela. Você só quer procrastinar em paz no mercado e a morte te aparece. Mas morrer pode ser um alívio em diversas situações, pensei. Isso não é um louvor do suicídio, eu só imaginei como seria não ter que estar sempre escolhendo alguma coisa, desejando alguma coisa, perseguir aquilo até conseguir e depois começar tudo de novo. A velha ainda tem que levantar todos os dias, lavar as suas roupas, ver essas roupas se desintegrando ao longo dos anos junto com ela e ir até o supermercado, ser julgada por uma fedelha, depois voltar até a sua casa e finalmente ter o prazer fugaz e corrosivo de beber o seu refrigerante. E isso ainda é um dos melhores cenários possíveis para envelhecer. Eu já li aquele texto do David Foster Wallace sobre ter atenção no supermercado, aliás. Também acho que a solução para esse impasse da vida é prestar atenção nos detalhes, e ali estava eu, prestando atenção nos detalhes e tendo uma crise existencial na frente da caixa do supermercado. Pedi para a moça esperar um pouco. A velha ainda estava passando os seus produtos no caixa. Me aproximei, peguei uma coca que estava no mini freezer e voltei para o meu caixa. O que isso quer dizer? Não faço a mínima ideia. 

8.8.20

Dia 144: por Flávia Cunha

Querido diário, falo do futuro. Não por ter conseguido fabricar alguma máquina do tempo. Mas é para os dias que ainda estão por vir que me remeto, quando fico mais triste nessa quarentena interminável. Me projeto mentalmente para algum momento de 2021 no qual a vida de todos esteja um pouco menos cinzenta, sem a sombra de um balanço diário de mortes por um vírus que desestabilizou o planeta.  

Às vezes, retorno ao passado, com recordações pessoais que me dão alento ou tentando entender como tudo isso começou. Uma pandemia com um presidente autoritário e incompetente no poder é algo que não imaginávamos quando 2020 começou.

Estimado diário, percebo que não faço contagem do número de dias passados em distanciamento social. Imagino que se contabilizasse a passagem do tempo ficaria ainda mais ansiosa por estar confinada e longe da vida que eu tinha, tão repleta de eventos culturais, encontros com amigos e trocas afetivas presenciais.

Bendito diário, sinto que criei janelas virtuais para o mundo, para tentar manter alguma esperança. Mesmo com a pandemia. Apesar do presidente. Ainda que com tanto egoísmo dos que preferem fechar os olhos para a gravidade do momento e colocar a economia acima da vida.

Amado diário, percebo que nem sempre consigo manter a sanidade e o equilíbrio emocional. E choro no banho, lembrando dos mortos, sentindo pena de quem perdeu pessoas queridas, lamentando por quem não tem um teto para manter-se mais seguro em meio a tudo isso.

Prezado diário, descubro que escrever é uma forma de sofrer menos. E, por isso, te escrevo.

7.8.20

Dia 143: por Letícia Heinzelmann

A quarentena alheia é mais verde

Eu invejo quem está isolado, reclamando que, dentro de casa, os dias passam iguais. Pois aqui fora os dias também passam iguais: igualmente repletos de ansiedade, como uma nova arritmia a cada flagrante desrespeito à saúde coletiva, de quem insiste em tá na rua sem necessidade, de quem vem até mim. Afastada da faculdade, da bolsa acadêmica, da possibilidade de iniciar um estágio, não posso reclamar de conseguir manter meu café semiaberto, como parte desta indústria essencial que é o serviço de alimentação. Mas preferia que não viesse ninguém. É um contrassenso, mas assim é 2020. Era pra ser o meu ano, estava resolvido! Mas a pandemia riu na cara das nossas resoluções...

Na verdade, os dias não são bem iguais: cada vez mais a raiva toma o lugar do medo. Lavar a roupa, os cabelos todo dia já não precisa mais, muito menos as compras. Chega de fazer tudo de carona, eu preciso andar. Afinal, a cada dia está mais claro que o risco maior é no contato, pelas vias aéreas, e não tanto nas superfícies. Então, eu relaxei. Mas os velhinhos tomando sua cerveja na calçada, as crianças levadas à pracinha, os vizinhos que dão festa relaxaram a um nível temerário. Por que precisamos estar no mesmo barco? Às vezes dá vontade de me lançar ao mar.

Meus dias de folga são tomados pela contemplação das coisas simples: poderia passar toda a semana observando meus gatos, minhas plantas, o movimento do sol pelas janelas. Possivelmente isso também não seja verdade, mas já que não vai rolar, vou dizer que poderia sim, só para enticar com quem reclama da rotina caseira. Estamos afastados, mas ao mesmo tempo tão cientes de como todos estão encarando este período. Nas redes sociais, ao menos, a gente sabe quem é quem, seja pela foto ou pelo nome estampado como num crachá. Já na vida real, cada ida ao mercado, o evento social mor, é um eterno encarar-se sem saber se aqueles olhos pertencem mesmo àquela pessoa... Para uma míope, é exaustivo. Crachás, por favor!

Achei que ia ler muito nas minhas tardes no café, esperando pelos pedidos de delivery resolverem apitar. Lá por abril, devorei uns quatro livros em poucos dias. Amaldiçoei a Ufrgs por não me permitir essas leituras contemplativas entre tantas e tantas obrigatórias. Desde lá, devo ter lido um e meio. Um livro eternamente pela metade, pois a ansiedade não permite concentração suficiente para terminar. É a analogia perfeita: o livro pela metade é como a vida pela metade que estamos levando. E cada “volta à normalidade” apenas acrescenta mais temores, então melhor não terminar o livro. Deixa em suspenso, enquanto espera que todo mundo resolva ficar em casa. Quando passar, eu termino.

6.8.20

Dia 142: por Helena Terra

Tanto faz. Mas, essa manhã, resolvi caminhar mais cedo. Sim, eu caminho alguns quilômetros - de tênis, filtro solar, fones de ouvido e máscara - por orientação médica.

A máscara me esquenta as bochechas mesmo em dias frios. Nos quentes, me faz sentir um leitãozinho com uma maçã na boca pronto para ir ao forno. O que é estranho porque sou o dedo fininho do Joãozinho dos contos da linda casinha da bruxa ou uma magricela mesmo.

Antigamente, no tempo das serenatas, uma magrelinha como na música. Para receber uma serenata, a pessoa precisa morar em uma casa. Moro em um décimo andar. Empilhada como quase todos nós. E gosto.

Não gosto dos vizinhos do apartamento de cima. Arrastam móveis vinte e quatro horas por dia sete dias por semana. E falam alto. Eufemismo para gritarias. Antes da quarentena pareciam civilizados.

Eu comecei a minha, agitada, acreditando no fim do mundo, porém dentro dos limites do meu apartamento. Se o meu apartamento falasse, não seria um problema. Talvez, ele fizesse leves fofocas a respeito de algumas insônias, de uns breves cochilos, de uma quase paixão frustrada ou frustrante, de outra em andamento e de algumas preguiças, poucas porque tenho inclinação para obsessiva, e limpar, lavar, arrumar etc. acariciam a minha cachola.

Tenho também inclinação para ler e escrever. Bastante.

Então, tal qual ontem e antes de ontem e antes e antes todo o meu passado, hoje li, e o livro escolhido foi o “Das coisas que eu disse enquanto você dormia”, da Ana Moraes.  Terceira vez com ele. Eu sou uma pessoa repetitiva e persistente. Poderia estar no elenco do “Feitiço do tempo”, prestigiando o dia da marmota. E poderia também não estar porque adoro novidades. 

E como novidades não acontecem a toda hora desde que eu nasci e, em quarentena, menos ainda, eu as coloco na minha rotina. A frase “a rotina tem seu encanto” me coloca na vida. Eu me vivo usando a imaginação e recorrendo às muitas formas de arte para me auto encantar. Escrever, talvez porque seja a parte que me cabe desse desmundo, escrevo todos os dias. Eu escrevo para me viver.

Eu me vivo, tu te vives, ele não, nós nos vivemos. Nós, os sobreviventes do vírus, dos noticiários e do feudo. Não é fácil sobreviver no feudo. A gente sabe. No feudo, a palavra falta está sempre presente. Falta, injustiça, desigualdade, desamparo, ganância, indiferença, abuso, manipulação, morte e muitas outras. Um glossário de más palavras nadando com o ano em uma piscina olímpica de maldades. Eu penso sobre elas, sobre os maus e tudo o mais. É inevitável. No entanto, minha concentração dedico aos bons. Acredito em sua potência e, como não sou religiosa, faço deles a minha oração. Deles e dos poemas, porque sem poemas, bah, sem poemas, nada tem graça.

5.8.20

Dia 141: por Maristela Scheuer Deves

Sempre gostei de tramas pós-apocalípticas. Filmes e livros – principalmente livros – em que as personagens são submetidas a situações extremas, caóticas, em que uma ameaça repentina subjuga a humanidade e o herói – alguém comum, como eu e você, que até então vivia uma vida tediosa – precisa enfrentar seus medos, reagir, tomar as decisões certas para continuar vivo e inteiro. 

Não devo ser a única, vide o sucesso recente de Caixa de Pássaros (Bird Box, no original), de Josh Mallerman, ou de muitos livros de Stephen King (gosto especialmente de Sob a Redoma /Under the Dome e de Celular). Parte do fascínio, penso eu, é o fato de nos imaginarmos no lugar dessas personagens: e se fosse eu, trancada numa casa há dois, três anos, sem poder sair porque um perigo invisível e que não compreendo me aguarda lá fora? E se fosse a minha cidade que estivesse “presa” embaixo de uma redoma invisível, sem ninguém poder entrar ou sair? E se fosse eu, num mundo em que um pulso misterioso enviado pelos celulares enlouquece as pessoas?

Pois desde meados de março eu, você e boa parte das pessoas deixou o papel de quem observa de fora, na segurança de seu sofá, e entrou nas páginas de seu próprio romance pós-apocalíptico. Outros continuam transitando pelas ruas, por necessidade ou por ignorância de que o perigo, agora, é real. Talvez não seja nada tão espetacular como aviões explodindo e vacas sendo partidas ao meio pela redoma, nem pessoas transtornadas ao atender uma ligação ou ao olharem pela janela – e talvez seja aí mesmo que resida o problema, nessa aparente normalidade. Não vemos sequer exércitos de homens vestidos com roupa protetora pelas ruas, como nos filmes norte-americanos de contaminação e quarentena...

O que vemos somos a nós mesmos em casa – no conforto de nossas casas –, esperando. Esperando que o vírus se vá. Esperado que um remédio milagroso apareça. Esperando que se encontre a vacina. Esperando que todos façam a sua parte. E, aos poucos, enquanto olhamos pela janela e vemos crianças brincando sem máscaras, ruas cheias, futebol retornando, pensamos se não fomos nós que enlouquecemos. Se a leitura daqueles livros não nos fez pensar vivemos num deles. 

Por sorte, sabemos que há outros como nós, que vivem o mesmo confinamento. Com as mesmas dúvidas. Com a mesma saudade da família, não vista a meses. Com o mesmo medo e as mesmas precauções para o que antes seria uma simples ida ao supermercado. Por sorte, o distanciamento não impede a amizade – aliás, até promove o reencontro, virtual, de amigos não vistos há anos, e agora mais perto do que jamais foram. Por sorte, ainda temos os livros, e os filmes, embora nem sempre se tenha a concentração necessária (escrever, por exemplo, parece uma tarefa árdua como nunca antes foi). Por sorte, temos a tecnologia, e embora eu não a veja como a panaceia para todos os males, ela tem sido de grande serventia.

Enfim, por mais que o mundo não esteja em escombros, eu, você e muitos mais sabemos que o inimigo desta guerra é real (embora pareça surreal). Mas também sabemos que essa é a hora de sermos fortes, e de nos mantermos vivos. Porque, como os livros e os filmes também ensinam, não importa qual for o perigo, no fim a humanidade sempre sobrevive, e se reconstrói. 

4.8.20

Dia 140: por Lia Bianchi

Com o isolamento, muitos planos: caminhar no parque todos os dias; selecionar doações; pintar paredes; cuidar do jardim. Tudo se esgotou nos primeiros quinze dias. Passei talvez um mês inteiro numa inércia absurda e sem precedentes: Clientes sumiram, amigos distantes, cinemas e aeroportos fechados, crush proibido. Ah, vou limpar as gavetas, liberar espaços. E ali, esquecidos por décadas, meu tesouro particular: Cartas de antigos amores (um em especial que me deu um ultimato): “Sono stanco di aspettare la mia principessa”. Certo que ele deveria estar cansado, havia um oceano entre nós. Assim, remexendo no passado encontrei os textos e poemas e letras de músicas. Qualquer coisa que eu julgava importante recortava e guardava. Até o nome do perfume de David Beckham estava ali. Mas, o grande resgate foram os textos do Poetinha. Eu os copiava e os decorava e os encenava em frete ao espelho “Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces”....“Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos”. E assim, fui reencontrando minha essência. Foi trazendo o passado para o presente que encontrei uma misteriosa mistura de saudade e aconchego. Garimpei cada vez mais. Agora, a estante dos livros e vinil (sim, ainda os tenho). E ali, outro tesouro: Caetanos, Chicos, Bethânias, Plácidos. Todos a minha espera. Eu os abracei e sai bailando pela casa, eu e Chico “Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar”. Nos livros, o reencontro com Gabriel García Márquez, passando por Érico Veríssimo, José Luís Peixoto (esta lista é interminável). Neste momento meu encantamento chama-se Mia Couto.

Um SALVE aos poetas e poetisas e a toda gente que escreve e compõe por trazerem luz e leveza a estes dias sombrios.

3.8.20

Dia 139: por Geórgia Santos

Nunca fui religiosa, os dogmas sempre me espantaram. Mas isso não impediu que eu cumprisse a saga da guria católica que calhou de nascer em uma cidade minúscula da Serra Gaúcha. Até porque, não tive escolha. 

No começo, fui batizada pelo Padre Marcelino quando ainda não podia me defender. Mas tudo bem, foi só um banho geladinho e tudo aconteceu muito rápido, no verão, no colinho da dinda e do dindo. O problema, mesmo, apareceu anos depois: a primeira comunhão. Àquela altura, eu não só sabia me defender como brigava com o pessoal da catequese todos os dias. A verdade é que eu não precisava estar lá, meus pais nem eram religiosos. Seu Jorge detesta padres até hoje. Para se ter uma ideia, quando a catequista ligava para minha mãe cobrando minha presença na missa de sábado, a dona Gertrudes sabia que não tinha moral para pedir que eu fosse: “Desculpe, eu também não vou, não posso cobrar isso dela. É com vocês.” Mesmo assim, eu era obrigada a ir. Porque todo mundo em Paraí, quando completava 10 anos, simplesmente ia. No fim, eu acabei frequentando a missa todo santo sábado porque disseram que se eu faltasse mais que três, eu precisaria fazer tudo de novo. Foram dois anos horríveis até o dia em que me autorizaram a comer uma bolachinha seca. 

Mas não para por aí, não. Ainda tinha mais dois anos de catequese até a Crisma. Sim, é isso mesmo. Quatro anos de catequese no total. Quatro anos construindo um ódio irreconciliável com a Igreja Católica. Quando finalmente acabou, eu lavei a alma. Literalmente. No dia da confirmação, enquanto esperávamos do lado de fora da igreja, caiu uma chuva tremenda e sem aviso. Ficamos encharcados e marchamos pingando pela nave. Para completar, eu estava de saia branca e uma batinha amarela toda fofa. SEM SUTIÃ. 

Eu poderia estar livre, mas não. Resolvi casar na Igreja, como uma espécie de concessão à minha família - na verdade, minha avó. Do meu jeito, é claro. Escrevemos nossos votos e o padre Volmir concordou em fazer uma cerimônia menos tradicional.  Mas não me arrependo, foi uma cerimônia cheia de amor. O problema é que eu precisei me confessar e o Padre Volmir tentou me convencer que fofoca era pecado. Muito pecadora, eu. 

Mas resolvi contar essa minha trajetória para vocês porque essa saga sempre me afastou da religião. Era sinônimo de sofrimento, de contradição, de sufocamento. Eu sempre vi o catolicismo como algo retrógrado, atrasado, um espaço cheio de muito preconceito, embora o Papa Francisco seja um passo importante na direção de uma igreja mais progressista. E, vamos combinar, não estou errada. Eu sei que na Igreja Católica há inúmeros movimentos políticos importantes, que foram fundamentais, por exemplo, no combate à Ditadura Militar. Mas vocês não imaginam que esses movimentos tenham florescido em Paraí, né? Então, sempre foi uma relação muito conflituosa. 

Isso não significa eu não enxergue beleza na religião. A Umbanda me encanta com a realidade dos Orixás, acho linda a tradição judaica, a doação islâmica, o autoconhecimento do budista e, sim, mesmo a devoção dos católicos. E essa beleza da religião tem florescido durante a pandemia. De uma forma triste, é verdade, mas ela está ali, nas mãos juntas de quem faz a oração, na mente tranquila de quem tem fé. 

Há 20 semanas, minha mãe espera que Deus nos guarde; minha avó reza para que todos tenhamos saúde; minha madrinha lê altos salmos para que todos fiquemos sob uma bolha de proteção. Eu acho bonito. Claro que eu reforço que Deus deve estar bastante ocupado neste momento e que, por via das dúvidas, é melhor usar máscara, higienizar as mãos com frequência e manter o isolamento. Mas eu acho bonito. É uma forma de seguir em frente diante de tanta tristeza, tanto desdém, tanto abandono, tanta morte. 

Por isso, eu resolvi fazer as pazes com a religião como uma forma de lidar com a ansiedade, a dor e a raiva que essa pandemia me traz. Resolvi fazer as pazes com a Igreja Católica para tentar espantar o ódio por quem coloca a vida dos outros em risco, a frustração por não ter um governo inteiro, o medo de perder alguém querido, a tristeza por quem já precisou passar por isso. Mas resolvi fazer isso do meu jeito. Ou seria à la Jesus? 

Como?

Eu faço pão e bebo muito vinho. 

2.8.20

Dia 138: por Guilherme Smee

Hoje é Domingo, mas todos os dias são Domingo.

Hoje é Agosto, mas todos os dias são Agosto, mês do desgosto.

Sentimos esse desgosto, todos, nos dias durante a pandemia. 

O desgosto de não poder mais fazer as coisas que a gente fazia, mas também aquele desgosto de sem gosto, de apático, de sem sal nem açúcar, porque as coisas continuam as mesmas.

O COVID-19 também é caracterizado pela falta de paladar, a falta de olfato, a falta de motivação e a falta de ar. São sintomas que todos nós estamos sentido aprisionados em nós mesmos como nunca antes, estando contagiados com o vírus ou não. A claustrofobia tem as regras do jogo.

Cada dia que passa fica mais difícil manter um fio de sanidade com as tarefas que se acumulam dentro da casa e dentro da mente. 

Talvez, num futuro próximo, as coisas que enlouquecem as pessoas sejam relativizadas. 

A ansiedade e a fobia social, por exemplo, estão hoje na ordem do dia. E desculpa, gente, eu já sentia tudo isso que vocês sentem hoje, muito muito antes. Me sinto os vikings estragando o dia de ação de (des)graças dos pioneiros.

Eu já guardava distância das pessoas desconhecidas, já evitava ao máximo aglomerações, já mantinha uma rotina de higienização das mãos mais dura. Só faltava usar máscara. Se bem que mascarava meus sentimentos. Fingindo estar bem quando só queria fugir desses lugares.

Trabalhar de casa, então, para um freelancer é rotina. E, como diria aquela banda da Rita Lee, “eu sou free, eu sou free, eu sofri demais”. Não tem essa de horários ou finais de semana. Nem carteira assinada, nem descanso, nem aposentadoria. Freelancer trabalha quando tem trabalho. E, se tem trabalho sempre, trabalha sempre. 

Então de certa forma eu gostaria de sentir um schadenfreude sobre a Pandemia. “Agora eles vão ver o que é bom (pra tosse?)”. Mas não, eu não sinto isso, não. É mais um alívio e uma esperança de que vão entender um pouco das minhas esquisitices quando acabar esse período antissocial que estamos vivendo.

Veja como o normal é construído socialmente. Engraçado como somos levados a pensar o que pensamos em sociedade. Hoje, normal é ser antissocial. Não é um novo normal, é um velho normal. Ser antissocial é, hoje, uma questão de vida ou morte. E isso pode ser verdade na cabeça de muitas pessoas A.P. (antes da Pandemia) ou D.P. (depois da Pandemia). O normal pra mim é fugir, das pessoas, das tarefas, dos medos, das inseguranças, da  ansiedade, da baixa auto-estima. Fugir sem sair do lugar. Petrificado pelo que as pessoas insistem em dizer que é normal e o que não é normal, ou ainda no que ela insistem em ser o velho normal no novo normal

A Pandemia hoje petrifica pessoas, embota mentes com rotina, cria calos nos hábitos, deixa os jovens com reumatismo, ela desafia a gente a fugir sem sair do lugar. Por muitas vezes eu joguei a toalha para este desafio. Dizia Guimarães Rosa e dizia minha mãe: “A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. 

Hoje é Domingo, hoje é Agosto.  

1.8.20

Dia 137: por Ana Dos Santos

Acordei no meio de um sonho molhado... estava quase chegando lá...

Escuto o primeiro ônibus do dia passando, devem ser 05h00min, o motorista e o cobrador com certeza acordaram as 03h00min e já estão trabalhando. 

No meu privilégio de poder trabalhar em casa, viro paro o lado e tento dormir. Mas começo a lembrar da minha tripla jornada de mãe, dona de casa e professora. Ah, tenho que revisar um artigo pra pós, que parou também por conta da pandemia... Então, distribuo mentalmente as tarefas como: prioritárias, urgentes e “faço quando der”!

Abro os olhos, uma lagartixa está subindo pela parede... Eu também!

Assim como uma grande parte das pessoas ao redor do planeta, eu finjo que a vida agora está no “novo normal”. Me conecto ao ciberespaço, abro meus e-mails:
- Sôra, desculpa por não fazer o trabalho, é que fui assaltado ontem e levaram meu celular, não sei quando vou ter outro...
- Tudo bem, Breno, eu aguardo. Como você está? Te machucaram? Cuidado com a violência e cuidado com o vírus também!

Eu ia escrever “Fica em casa!”, mas lembrei que assim como ele, muitos alunos precisam trabalhar, pois os pais foram demitidos quando essa tragédia mundial começou. A exclusão digital está afastando um grande número de alunos da escola, assim como outros que devem ter se contaminado ou tiveram que cuidar de alguém doente na família.

Hoje já se passaram quatro meses de pandemia do Corona vírus, e eu permaneço em isolamento social. Já perdi duas amigas para o covid-19. Não pude me despedir. Também conheço outras duas que se contaminaram e conseguiram se curar. Lembro que a Rosa que está há uma semana com o teste positivo... sinto medo, começo a chorar....aproveito para chorar também por outras dores e perdas.

CAFÉ PARA CONTINUAR!
Vou ler as notícias, nada mudou!
Infelizmente o número de mortes continua crescendo: 90.000 pessoas!
Nossos governantes continuam mentindo e roubando o dinheiro do povo. 
Nada mudou!
SINTO FALTA DE AR!
NÃO CONSIGO RESPIRAR!
Já tive a impressão de que me contaminei 1000 vezes, mas limpei tudo há tempo.
SINTO FALTA DE AR!
NÃO CONSIGO RESPIRAR!
O racismo no Brasil continua matando pessoas negras a cada 23 minutos. Sempre sou seguida pelo segurança do supermercado, agora, com minha máscara, “Aqui estou, mais um dia sob o olhar sanguinário do vigia”.
CAFÉ PRA CONTINUAR!
SINTO FALTA DE AR!
NÃO CONSIGO RESPIRAR!
Estamos em 2021, mas nós negros, continuamos em 14 de maio de 1888.

Anoiteceu. E com os dias gelados, anoitece cada vez mais cedo. Troquei o dia pela noite.

Aqui na minha rua, depois das 20h não se vê uma viva alma, com exceção dos moradores de rua, que crescem em números exponenciais.

VINHO PRA RELAXAR!

Vou pra sacada no escuro. Gosto de observar os vizinhos. Já conheço suas rotinas e horários. Quando acabar esse isolamento, quero conhecer os que bateram panelas comigo quando havia esperança na justiça. Há dois meses as panelas silenciariam.

MAIS VINHO PARA RELAXAR!

Tem um vizinho no prédio da frente que gosta de tomar sol só de cueca. Ele também esquece a toalha quando sai do banho nu. Lembrei! Foi com ele que sonhei na noite passada.

A lagartixa continua subindo pela parede. Eu também!