Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

29.6.20

Dia 104: por Marisa Schroeder

Dia 17/03/2020 fui surpreendida, assim como todos os gaúchos, com a novidade do isolamento social. Naquele dia não conseguiria imaginar o que isso significaria muito menos o que teríamos pela frente.

Tenho percebido que, como todos que estão vivendo essa pandemia, venho passando por diversas etapas. O medo está sempre rondando, a ansiedade também, assim como as noites de insônia. Também tem momentos legais, surpresas "doces" de amigas queridas, mensagens simples e significativas no whatsapp, reuniões pelo meet, momentos em que sinto não estar tão sozinha.

Essas experiências têm mostrado, cada vez mais, o valor dos encontros. Este é o ponto mais dramático dessa pandemia na minha vida. A falta dos encontros.

Estou afastada do meu filho, que é muito cuidadoso e segue todos os protocolos de prevenção a Covid-19, desde março. Entendo e apoio as razões dele e me sinto cuidada com esse afastamento. Precisamos mesmo nos manter afastados de quem amamos, porque precisamos proteger quem amamos. Esse paradoxo é complicado.

No entanto, por conta de uma circunstância pessoal, que me deixou em vantagem, neste fim de semana tive o privilégio de um encontro com parte da minha família. Foi ótimo mas não perfeito, pois não foi possível reunir toda a família e meu filho não teve o mesmo privilégio que eu.

Vivi esse momento com muita intensidade, quase me assustei em sentir tanta felicidade em meio a essa pandemia. Como é bom estar em família, escutar vozes e ser escutada. O aniversário de uma sobrinha muito querida me presenteou com esse afago no coração. Espero que essa dose de carinho me abasteça para que eu possa enfrentar toda a imprevisibilidade que temos pela frente até que eu possa novamente dar meu melhor e maior abraço para meu filho.

28.6.20

Dia 103: por Glória Di Leone



Durante o afastamento social acordo cada dia mais tarde, pois durmo cada vez mais cedo, ou seja, próximo ao amanhecer.

Mesmo assim ainda é cedo.

Não há tempo para ler todos os livros que repousam na estante, nem para realizar a limpeza da casa como planejo, nem de assistir filmes, entrevistas e lives que me interessam.
Como pode?
Sem falar no tempo de ócio necessário, entre uma xícara de chá e outra, contemplando o nada, tocando o instante com a ponta dos dedos, oferecendo uma pausa para o pensar.

De repente uma estranha angústia me traz o medo do futuro, uma insegurança relacionada ao trabalho, o temor de não ver mais os filhos e de não encontrar o mínimo de previsibilidade na vida.

Percebo o quanto é difícil lidar com a constante ameaça de um ser invisível e desconhecido que se expande pelo planeta.

O que me salva neste momento?
Talvez a arte. Voltei a pintar aquarelas, me dedicando às conchas.
Mas por que conchas?
Porque um ser que habita a concha é um ser amparado, em seu estado de isolamento, curvado sobre si mesmo.



O ser que habita a concha se abriga, mas também prepara uma saída, fala Bachelard.

Então já não me preocupo com incertezas.
Pintar conchas, recortar formas, compondo colagens me coloca em contato com o presente.

O presente é o real.
A vida no exato instante em que o pincel toca a tinta e a dilui com água, que se espalha no papel, dando origem a novas tonalidades.
O presente é fugaz.
É um sopro de vida possível ou impossível, dependendo da forma como se encara a ruptura do cotidiano, provocada pela pandemia.

Então me escondo. Procuro abrigos de paz, tentando espantar morcegos. Tento me encontrar como ser vivo que um dia abandonará sua concha.
Porém tenho dúvidas. Será este, mais tarde, meu desejo?

Há quem diga que existe um risco de viver só.  Seria a intolerância à presença do outro. Pois o ser vivo se molda de acordo com seus contornos e labirintos, desistindo depois de compartilhar espaços com outros seres falantes.
E adaptado ao silêncio, o único ruído suportável se torna o barulho do mar, que vem de dentro.
Então as palavras deixam de ser necessárias, pois aprendendo a viver em isolamento o ser às vezes acaba descobrindo sua zona de conforto, desistindo de abandonar sua concha.

27.6.20

Dia 102: por Marcelo Coelho da Silva


Inebriante

Já se passaram 85 dias desde o início da pandemia. O estado de emergência foi decretado em Porto Alegre no dia 17 de março, desde então, eu também me encontro alerta. Passei a beber com mais frequência, até evoluir para diariamente. Por noites tenho apelado para o chocolate. O doce é inebriante e também me fornece bem estar. Racionalizei a situação e decidi não comprar mais chocolates. Tenho estado sozinho. Falo sozinho. Tento cantar. Reviso os quartos vazios dos meus filhos todos os dias. Sozinho, gastei uma barra de sabonete inteira, mas ainda não consegui acabar com o xampu.

Há 37 dias, seis horas, 17 minutos e 47 segundos não toco em ninguém. Trinta e tantos dias em que ponho o pé dentro de casa, ligo a televisão, vou tomar banho e janto em minha auto-companhia. Preciso de algum ruído além dos meus próprios. A Miche e as crianças estão bem longe, em segurança. Alegrete, no interior gaúcho, é um oásis se confrontada com a Capital e é um paraíso se compararmos à situação brasileira.

As matérias jornalísticas são insalubres e povoam telejornais, rádios, jornais, sites de notícias. A realidade é deletéria desde a sua negação até o seu sensacionalismo. As notícias só não são mais infames e anacrônicas do que o Presidente da República. Como último ato, ele achou por bem mandar suprimir informações de mortes acumuladas dos atuais boletins epidemiológico-militares do Ministério da Saúde. Isto em um país onde há uma subestimação monstruosa de casos pela falta de testagem dos doentes. Talvez ele deva acreditar que pessoas mortas e não contabilizadas são pessoas “não mortas”. Mas, se também são pessoas “não vivas”, então serão zumbis? Sei lá o que se passa naquela cabecinha vil. Em plena era da informação, alguém acredita que estes dados irão desaparecer? Nem a indigência será empecilho a essa resposta. Contudo, a cena nacional tem evoluído num roteiro digno do Monty Python. O histórico de atleta do nosso mandatário máximo, que o deixou imune ao coronavírus, ajudou-o a demitir um ministro da justiça e dois da saúde em meio ao caos sanitário. Temos pexotadas, temos bizarrices em “entrevistas” diárias. Ainda bem que os internautas registraram, e estão registrando, aquelas falas para todo o sempre. O nosso país está sendo elevado a uma categoria de chacota mundial.

Desprezando a raiva, deixemos a política pra lá um pouco. Vamos aos números. Segundo sites independentes, no placar da Covid-19 no Brasil, temos 38.497 mortos, 742.084 casos confirmados, uma taxa diária girando em torno de mil óbitos e, em letras garrafais nos scouts do Governo, são 311.064 pacientes curados. Estamos ganhando de lavada, minha gente! Só que não...

Aqui em Porto Alegre a situação parece estar mais controlada. Os números totais de pessoas que perderam a vida para a doença são considerados baixos (48) e o sistema de saúde está suportando bem. Parte da população, aquela mais fervorosa, parou de nos acusar de que estaríamos levando a cidade à falência. O comercio está reabrindo. Os shoppings voltaram a ser palco de clientes ululantes. Sôfregos a consumir, eles devem ter rogado a algum Santo atlético. São Paulo Cintura, rogai por nós!

Eu achei uma aposta arriscada. Mas o quão chata seria uma vida sem riscos, não é mesmo? Dizem por aí que o vírus do desemprego é pior do que o da doença. Fiquei pensando nisso. Empregos são perdidos desde que o mundo é mundo, mas só perdemos a vida uma única vez. Eu já fui demitido (umas três vezes) por diversos motivos. Consegui dar a volta por cima porque tinha uma família, que me suportou, e porque tinha S-A-Ú-D-E para suportar.

Na minha função de fiscal da Vigilância em Saúde, um dos objetivos do trabalho consiste em ações de prevenção para que as pessoas não precisem de hospitais. Logo no começo, acreditava que o primeiro mês de pandemia seria o pior. O que foi um erro grotesco, e estou com medo de qualquer antevisão do futuro.

Até aqui, enfrentamos muita coisa pesada, onde a morte esteve por perto. A morte e a ignorância. A ignorância e a mesquinharia. A mesquinharia e a ganância. A degradação humana vem de eras. Havia trabalho análogo ao escravo, resultante de relações de poder desequilibradas, e garis submetidos ao descalabro humano. Houve quem enxergasse oportunidades de lucrar com a pandemia oferecendo um drive thru para coleta de exames para Covid-19. Até aí, tudo bem, se não estivesse sendo utilizado o estacionamento do condomínio em que se localizava o laboratório. Imaginem o Seu Fulano, terapeuta holístico, chegando para trabalhar e sendo recepcionado por um astronauta na garagem. Também foi preocupante o caso de uma empresa terceirizada para a coleta de lixo hospitalar da cidade. Os trabalhadores paramentados descarregavam as bombonas de lixo infectadas e, junto a esta área de contaminação, podiam beber água filtrada por um equipamento com três torneiras. E, se quisessem relaxar um pouco mais, tinha também uma garrafa térmica com café adoçado que poderiam sorver em copinhos plásticos dispostos em cima do filtro. Tudo isso é impressionante. Mais do que isso, é impensável.

Teve uma inspeção que vale contar com detalhes. Foi a do cemitério. Por ironia, o mesmo cemitério católico onde os meus avós paternos estão sepultados. Era uma demanda banal. Alguém reclamando de que os funcionários do cemitério não tinham álcool em gel, não usavam máscaras, não faziam distanciamento das pessoas, não, não, e mais não. Enfim, pensei em aproveitar a oportunidade para fazer uma visitinha a Vovó e Vovô. Porém, eu sofro do “mal do fiscal”, e comecei a elaborar hipóteses: E se eu encontrar algum velório? E se a capela estiver lotada? E se o falecido testou positivo para o novo coronavírus? E se o caixão estiver aberto? Pois então, o meu sangue começou a circular frio pelas veias. O pior é que o “mal do fiscal” não termina por aí. Na minha cabeça, produzi respostas aos questionamentos hipotéticos: Vou ter que averiguar o velório. Vou ter que mandar as pessoas chorarem em casa. Vou ter que perguntar à viúva (ou viúvo ou filho ou neto) do defunto se a (ex) criatura morreu de Covid-19. E, como todo o “mal do fiscal” não termina bem, vou ter que mandar fechar o caixão e enterrá-lo de imediato. É aterrorizante esta ânsia dramaturga. Então, eu fui até o endereço denunciado. Confesso que suava ao entrar no cemitério, apesar de ser um dia frio de outono. Havia uma névoa suspensa no ar, e o silêncio era indefectível. Em linha reta, dirigi-me ao setor administrativo. Rapidamente, o gerente de vendas e atendimento ao público (descobri que cemitério tem gerente) me deu a notícia. Relatou com uma voz assustada que, naquele dia, não havia nenhum velório. Terminada a inspeção, decidi ir embora o quanto antes. A visitinha aos meus avós ficou para outra oportunidade.

Agora, estou há 37 dias, seis horas, 30 minutos e 12 segundos sem tocar em ninguém. A televisão continua a matraquear. Enquanto a minha família estava aqui comigo, eu podia tocá-los, dar e receber abraços, trocar um pouco de calor humano. Tento me convencer de que eles estão mais seguros onde estão e que eu estou bem. Posso trabalhar tranquilo sem a preocupação de trazer a doença para casa e infectar as pessoas que amo. Sou um adulto racional. Até gosto de ficar sozinho e...  Que estupidez! A quem eu pretendo enganar? Não estou preparado para este tipo de solidão. Não estou.

Tentei participar à distância da vida deles. Fizemos vídeo-chamadas, trocamos áudios, fotos, mensagens, mas parece que falta alguma coisa. A minha esposa se desdobra para manter a nossa proximidade. Apesar dos esforços dela, os detalhes se perdem. Aquele sentimento espacial de completude não está disponível para mim. Eles não estão nem na minha visão periférica, nem naquele contato de almas que se tem sem sentir. Falta presença, em todos os sentidos. Eu nunca havia estado assim tão frágil.

Meu filho cresce a olhos vistos. Tem só quatro anos. Ele é argumentativo, engenhoso, persuasivo ao extremo advogando em causa própria. Fala comigo ao telefone com desenvoltura. Papai, eu fiz novos amigos hoje! Pergunto do que brincaram. Eu escalei uma árvore sem ninguém ajudar. Queria que tu visse! O papai não conseguiu mais responder.

A minha filha, na última vez que a vi tinha três dentinhos, agora tem quatro. Está começando a falar. Oi, não, tchau, Tetê, mamãe, papai. Pede papá, indica que quer aguinha. Adora fazer bagunça com o mano. Fala papai para tudo, e aponta para a tela do celular. Menina de sorriso fácil. Sempre sorri quando me vê, joga-se para trás encobrindo o rosto com as mãozinhas (fazendo-se de envergonhada). Já possui trejeitos que são somente dela. Mal caminhava, agora corre e anda com firmeza. Eu não estive por perto. Dela, eu perdi coisas demais.

Além das crianças, eu sinto uma falta terrível do abraço da minha mulher. Virei um taciturno horripilante vagando pela casa. Penso nela e, como se imergisse dentro de mim, transporto-me para encontrá-la. A sua boca, o seu hálito, o brilho em seus cabelos, as suas curvas sendo percorridas pelas minhas mãos. Desperto por noites a fio, estendo o braço, e não a encontro. Seu lugar na nossa cama está gelado. Desabo no silêncio. Na minha cabeça, um zumbido vazio me aturde. Só escuto este maldito zumbido! Sinto uma dor de cabeça cansada e lágrimas fugidias, ultimamente.

Não sei o que ainda teremos de enfrentar aqui em Porto Alegre. E isso me preocupa, pois o retorno da minha família é incerto. Nesta semana atendi dois surtos da doença, um com oito, outro com cinco infectados. Lugares tão distintos quanto o revólver e a reza, mas por iguais insurgentes. Os números de casos e de óbitos causados pelo sars-cov-2 têm aumentado, e ainda tem gente capaz de negar a realidade. Meus colegas epidemiologistas revelam que os surtos estão aparecendo em toda a Capital, e ainda existem os sabichões que não acreditam na pandemia. Preferem não assistir a Globolixo (sic). É, simplesmente, inacreditável. Como se o problema maior fosse a notícia (em seu viés), e não a capacidade pessoal de interpretação da mensagem.

A solidão me facilita a pensar em tudo. Chega num ponto em que o cansaço vai se transformando em raiva. Achei que a minha se dava só no campo político, mas nada é só. Estou cansado desta gente fraca. Minoria que parece multidão. Gente fraca sem um pingo de empatia, sem uma nesga de solidariedade. Gente estúpida! Pessoas sem respeito! Enquanto uns adoecem, outros se divertem. Enquanto uns morrem, outros fazem festinhas proibidas. Isso não é rebeldia, crianças! Vocês se aproveitam de uma situação para a qual não estão contribuindo. Ficam bêbados entre amigos. Vão pescar, fazem churrascadas, riem até vomitar, tomam mate ao pôr do sol. E o meu rosto está marcado de tudo.

Agora, estou bêbado e sozinho. Ganhei olheiras, que ganharam vincos no meu rosto marcado pelas máscaras. Vincos desenhados até as orelhas. Sulcos pelos quais escorri saudades ao acordar à noite. São verdadeiras cicatrizes que me acompanharão no espelho.

Li em um livro do autor espanhol Javier Cercas que o ofício de escritor é muito filho da puta. Pois o bom escritor torna visível o que já é visível e ninguém quer ver. Aquela realidade desconfortável, que as pessoas desejam negar, o escritor a desnuda usando o dom da escrita como escudo para não enlouquecer. Para Cercas, e eu concordo, ao enxergar a realidade, um escritor nunca mais deixará de vê-la e terá de conviver de modo pacífico (se conseguir). Fiquei pensando nas coisas que vi e no que estou (e estive) fazendo. Eis que tenho dois ofícios filhos da puta. Tenho que trabalhar pela saúde dessa gente fraca também. É muita empáfia minha achar que sou escritor. Talvez eu me torne um daqui a alguns anos. O fato é que me sinto melhor depois de descarregar por aqui as angústias dos últimos dias. Posso não ser um escritor, mas já estou utilizando o escudo.

Estou há 37 dias, seis horas, 39 minutos e 27 segundos sem tocar em ninguém.

26.6.20

Dia 101: por Gustavo Czekster

O fim do tempo

O que faz com que um dia seja um dia? Ou melhor, o que faz com que 24 horas sejam plenas, pulsantes, repletas de acontecimentos, sons, reviravoltas, dissabores, alegrias, e que todas essas pequenas rusgas na realidade constituam um tempo tão bem vivido a ponto de ser chamado de “dia”?

Pergunto isso por que perdi um dia. Aconteceu em torno de três semanas atrás: imaginava que era quinta-feira, tinha uma agenda de atividades para cumprir na sexta e, no final da tarde, descobri que já estava vivendo na sexta. O que aconteceu na quinta-feira que perdi? Ou melhor, será que ela existiu?

Depois descobri que outras pessoas estavam passando pelo mesmo fenômeno, o apagamento do tempo. Dormiam de dia e tinham madrugadas ativas; almoçavam às quatro da tarde e jantavam à meia noite; confundiam as semanas, as datas comemorativas, os aniversários dos entes queridos. A quarentena apagou a noção de tempo passado e tempo a correr, além de ampliar o alcance do espaço, eis que estamos confinados nos cômodos reduzidos de nossas casas. Para mim, uma pessoa acostumada a acorrentar o tempo em relógios e calendários, a noção de estar vagando em meio à indefinição temporal é fonte de angústia: se eu não acreditar que estou vivendo no dia correto, em qual dia estou vivendo? Ainda estou no presente?

Desculpem a minha inconformidade, mas perder um dia é inaceitável. Sei que muitas pessoas dizem que perderam o dia fazendo algo chato ou maratonando uma série, fazendo pães artesanais, ficando na cama. No meu caso, perdi o dia de maneira tão completa que o apaguei da minha memória, e receio que nunca mais irei recuperá-lo. Ter essa aterradora certeza me fez perguntar quantos dias já não perdi no decorrer da minha vida, quantos dias ainda me restam. Não temos uma cornucópia infinita de dias, eventualmente iremos chegar ao nosso último. A quarentena trouxe consigo o desconforto de colar um dia no outro, uma semana na outra, um mês no outro, até que o tempo cronológico se tornou uma grande borra de acontecimentos insossos. Foi incrível notar o quanto somos pautados pelos encontros, e o quanto os nossos compromissos, prazeres e a vida social acabam fazendo surgir o tempo.

Impossível não lembrar o início de “Preâmbulo às instruções para dar corda em um relógio”, de Cortázar: “quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar”. A quarentena nos liberou do inferno dos minutos, horas, dias e semanas a que estamos confinados: o tempo passou a correr devagar para uns e rápido para outros, pode se apagar por algumas horas ou ser dolorosamente presente em outras. É capaz de fazer os anos se acentuarem ou retardar o surgimento das rugas. A quarentena transformou tudo, inclusive a nossa saúde, em uma incógnita; mais do que nunca, agora, somos nosso próprio tempo.

Foi possível observar uma mudança gradual durante o período de isolamento: desde a euforia dos primeiros dias, quando as pessoas se entregaram com volúpia a fazer cursos, assistir filmes, comentar política, ler livros e pesquisar sobre o vírus, até que, com o passar do tempo, a rotina começou a impor suas regras sufocantes, esmagando-nos por completo entre as suas impiedosas engrenagens. As horas deixaram de passar; todos os dias tornaram-se o mesmo. Um dia não aproveitado continua sendo um dia? Ou não passa de um acúmulo enfadonho de minutos? Se for assim, pobre desse Deus incauto que, ao criar o Universo, se condenou a uma eternidade de dias iguais, modorrentos, chatos: criou o seu próprio inferno.

Alguns otimistas dizem que o vírus vai deixar a humanidade melhor, mais centrada, mais disposta a pensar no próximo – não foi o que vimos até agora. O vírus parece ter despertado as bestas que moravam escondidas nas frestas dos pensamentos, e o mal sempre é mais divulgado do que o bem.

Em um texto psicanalítico, leio que o coronavírus é o “vírus da solidão”: ele nos força ao isolamento social; impede-nos de encontrar as pessoas amadas, os amigos, os familiares; ele segrega avós dos seus netos. Depois de contraído, o coronavírus continua isolando: os pacientes são presos em alas específicas, das quais existe a grande possibilidade de não saírem vivos; não podem se despedir dos familiares; estão cercados por pessoas desconhecidas trajando roupas especiais; não lhes permitem sequer tocar outro ser humano. Após a morte, ainda há um último e cruel isolamento: enterros vazios, familiares distantes, menções de nomes em um que outro boletim, a transformação de uma pessoa em um número frio dentro de uma estatística insensível. Não somos preparados para a solidão.

A quarentena encaminha-se para um fim, de certa forma, melancólico. Não por causa da aguardada cura, mas por que as pessoas preferiram deixar tudo nas mãos da sorte. Enquanto as estatísticas gritam mortes e apregoam a necessidade de um pouco mais de proteção ainda por algum tempo, as pessoas sentem-se abandonadas pelo governo que deveria protegê-las e preferem rolar os dados, confiantes em serem bafejadas pelo Destino. Talvez o vírus não entre na nossa casa, talvez a Morte vá espreitar a vida de algum vizinho. Talvez não seja tão grave quanto dizem, talvez a cura surja na forma de um remédio corriqueiro. Talvez o governo minta, talvez os jornais mintam. Cercados de incertezas, caminhamos sobre pilhas de mortos, fazendo de conta que não escutamos o estalar dos ossos que espreitam nossos passos culpados, nossas aglomerações, voluntárias ou não.

No entanto, a minha quinta-feira continua desaparecida. O que fiz nela? Qual a vida que tive nesse dia? Às vezes, acordo no meio da madrugada, ainda sacudido pela instabilidade do tempo cronológico que deixei de contar com a precisão (falsa) de um relógio suíço, e observo os prédios ao redor. Várias luzes acesas, pessoas caminhando de um lado para o outro, algumas delas paradas na janela: somos uma legião de desorientados. Como eu, talvez estejam procurando dias perdidos. Mas as respostas – todas elas – estão na literatura, é só uma questão de procurar, - e Faulkner disse qual a verdadeira função de um relógio, esse “mausoléu de toda esperança e de todo desejo”: “Dou-lhe esse relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu tempo tentando conquistá-lo”. A quarentena também nos ensinou a esquecer que o tempo existe.

25.6.20

Dia 100: por Elisabeth Abreu


Já peço meu primeiro perdão desde o início, porque sei que sou pipa demais para escrever um bom diário.

Estou mal e porcamente presa ao chão. De poucas convicções, uma é que o tempo é o vento, passa sem ninguém ver e só se sente quando pausa... e estabacam-se as pipas no chão. Esse, aliás, é um desses raros momentos de estabacamento, se tudo der certo. Outro perdão requerido: eu tenho medo do chão. Por favor não me façam ficar muito tempo no chão, eu não aguento. Chão duro é desgraça demais para meu corpinho de bambu e rabiola. Quero ficar longe, longe... onde o tempo passa e eu fico lá, voando no mesmo lugar.

Nessa missão de marcar ao menos um dia num diário, tenho a chance de ouro, para mim, pelo menos: amarrar essa corda solta em um ponto fixo, uma vez na vida. Ter certeza do hoje para depois me lembrar que, por mais que pareça, não estou suspensa num tempo pré-tempo de lenda, sem início nem fim.

O que são cem dias? Não sei. Cem vezes nascer do sol, sem vezes para se nascer sol nenhum? Devo ser sincera e dizer que vejo o sol cruzar de ponta a ponta da minha janela, quando as nuvens assim me permitem. Então, podem confiar, ele ainda existe e está lá. Mas então outra confissão... de uns tempos para cá eu tenho visto o quadrado da minha janela cada vez mais como uma moldura. Aos poucos meu quarto vira um museu meio deprimente. A paisagem que eu vejo vai terminar de virar uma pintura qualquer dia desses, e infelizmente, é uma pintura meio feia.

Mesmo que cá na cidade o sol seja enquadrado por prédios, paredes, antenas, guarda-chuvas ou olhares para baixo, eu sempre baseei minha noção temporal no nascer e pôr do sol. Nada inovador, eu sei, e tampouco consciente. Tanto é, que passaram noventa dias para eu entender que não havia passado nenhum, de verdade. Se foi por o sol não ter nascido ou por eu não ter vivido, fico suspensa e sem resposta.

Pergunto de novo: o que são cem dias? Eu não levantei cem vezes, não rabisquei nem escrevi nem escutei nem toquei flauta cem vezes, não vi cem filmes e séries e animações, não tentei me alongar nem me esforçar nem liguei cem vezes, não li contos e contas e artigos e relatos cem vezes, não comecei projetos, não desisti de projetos, não fiz contato, não faleci de tédio nem de medo nem de saudade cem vezes. Não, porque o sol do primeiro dia nem sequer se pôs ainda. Eu não o vi ir, nem vir, então ele não foi nem veio...certo?

Talvez seja só a consequência cósmica e melancólica do pós-solstício, essa certeza de que o tempo agora não se marca e sim vagueia em Hiperbórea até o meu aniversário lá no equinócio. Sim... uma estação segue a outra, sunrise, sunset, logo o ciclo volta a fazer sentido. Ainda vou me convencer que o tempo só começa na primavera de novo. Mas como vamos chegar na primavera se o tempo não passa? É até irônico, mas se o tempo é o vento, e ele parou, como que ainda estou voando presa no mesmo lugar? Suspensa de novo, sem resposta.

É por isso que eu não faço diários. Estabacamento é um negócio delicado. Talvez eu deva recomeçar, deixar as coisas mais concretas. Ou tentar. Vamos lá:

Paro o que estou fazendo e medito, recomeçando. Que dia é hoje? Sim, já falamos sobre isso, é o centésimo. Não, é o primeiro ainda. Estamos no canto primeiro, chuchu. Tá, mas é vinte e cinco hoje. Já se passaram cem páginas. Mas como? Quando que a história anda? Ela tem andando, e bastante. A corrente, se não meu barco, joga uma frota inteira nas pedras. Onde estão essas pedras? O mar é ilusão, são tudo pedras, é só uma questão de profundidade... no fundo no fundo, até a menor delas quebraria esse barquinho. Só que aqui onde eu tô, o mar não é raso, ou não está. Que sorte. Será que o horizonte está tão curvo que não dá mais para ver? É uma odisseia estática, e na melhor das hipóteses, sem intercorrências... é isso?

Alguém amarra a alegoria na âncora e a âncora nas Fossas das Marianas, por favor. E que fossa, nossa. Não, tangente, pode parar.

Que desventuras nesse meu barco-pipa à deriva, que desventuras nesse primeiro-ou-centésimo dia? Bem, o barco está bem, seus navegantes estão... bem, surpreendentemente bem até, eu diria. O horizonte parece o mesmo, bem curvo, só mais nublado quase não vejo outros barcos. As janelas, abertas porque está abafado, e fechadas porque está chovendo, e abertas de novo porque precisamos ver o que está acontecendo no mundo. Mas não era uma pintura esse mudo? Qual a realidade de olhar pela janela ou pela janela do computador? Como disse, na melhor das hipóteses, sem intercorrências. Se é tédio, uma vocação para pitonisa ou pra mênade que vão decorrer de nada decorrer, só o tempo para dizer. Isso, quando ele voltar a andar.

24.6.20

Dia 99: por marília-saldanha

Solidão solar

Ontem foi um grande dia para o Brasil. Um ministro da educação que desonrou o cargo e desrespeitou o povo brasileiro das mais diversas maneiras foi deposto. E o sumido do Queiróz, policial militar amigo do presidente com pê minúsculo, foi preso. Brindes com sucos de laranja! É neste espírito que escrevo. Mas não esperem uma análise política da nossa conjuntura. Aproveito apenas a atmosfera de renovadas esperanças para compartilhar com vocês minha experiência na pandemia e na quarentena. Desde que me propus a escrever, me vi fazendo contato com uma certa melancolia, serena e suave de fundo. Junto o micro e o macro como tintas e talvez saia um texto aquarelado, sigamos!


Pois o contexto do corona me pegou em fase recente de aposentadoria. Eu que fui aeromoça e psicóloga e que também enveredei pelo campo acadêmico com forte viés feminista, estou em pleno processo de reinvenção, aos cinquenta e seis. Imaginem-se chegar nesta fase da vida, morando só, começando a se tornar boêmia e com alma de artista se desnudando. Nascida em Porto Alegre, saí da terrinha aos vinte um e morei vinte cinco anos fora. Pois é, camaradas! Fui para o mundo sob as asas da Varig, morei em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Roma, em Los Angeles. Há dez anos que voltei para a aldeia.

Tornei-me uma mulher desengajada do mundo doméstico, tive dois casamentos e trabalhei ininterruptamente por mais de trinta anos. Pude me dar ao luxo, neste país de tanta desigualdade social, de parar e pensar para onde ir daqui pra frente. O que realmente me move? De tudo o que fiz e experimentei, o que pulsa dentro de mim? Estas interrogações andavam comigo quando no verão decidi reformar a cozinha. Os montadores chegaram quando já era recomendado evitar os contatos físicos. E foi assim que lhes disse “lamento não apertar sua mão” quando o senhor na entrada do meu apartamento estendeu seu braço na minha direção. Sejam bem-vindos neste contexto estranho!

Pois eu não tinha ideia, de quanto aquela cozinha renovada me faria feliz nos meses que se seguiriam. Virou palco para dançar, cantar, performatizar! É onde mais fico na casa. Preparo meus pratos vegetarianos, veganos e sorvo missô todos os dias, meu bálsamo benigno. O isolamento alargou minha relação com a solidão fértil. Se antes ficava bem, hoje fico melhor. Digo isto porque fui localizando com o passar dos dias que a solidão coletiva teve o efeito de me acalmar. Não estou perdendo mil eventos...claro que há as lives, mas ando mergulhando nos livros. E nas escrituras diárias. Escrevo há anos e agora mais.


Não se enganem, eu sinto saudades. Quando caminho no décimo andar, no terraço modesto do prédio, aqui no centro histórico, olho para o céu. Todo dia ele está lá diferente e lindo. Meu jeito de espreguiçar os pensamentos. E, às vezes, choro. Sinto tantas coisas. Amo viver. Caminhar por uma hora ou quase, é aquele bom encontro com o movimento e com o meu estado emocional do dia e daquele momento. Não se enganem, eu sinto saudades de vocês que não conheço. E de outras criaturas com quem senti a pele, o beijo, o abraço. Ah, não se enganem se eu parecer auto suficiente. Não, não. É resistência. Resistência adquirida com o primeiro corte que me afastou da família em 1986. Longa história. Mas estou de volta e todo dia observo as diferentes posições do sol.

23.6.20

Dia 98: por Ana Maria Meinhardt

O buquê de gérberas, rosas e lírios orientais interroga-me de volta. São vinte horas e há cinquenta anos Karin paria Betina no Conceição; vinte horas e Betina  responde à trinta felicitações paralelas. Hoje soube particularmente a feriado - o aniversário ou o hasteamento da bandeira vermelha (famigeradas bandeiras vermelhas). 

Queria dizer de como meu pai chegou apressado e beijou minha mãe sem lavar o rosto - "mas passei álcool", apressando-se ao banheiro antes de acompanhar-nos à mesa (9h). Dos agradecimentos seguidos de condolências pelas mechas canceladas de Karin; e seguidos de mútua comiseração, votos de fé e risadas irônicas entre minha mãe e sua sogra Leonor (10h). Do zelador Tiago lamentando o salão de festas interditado (mas minha mãe jamais festejaria em salão). Do cartão que Betina lançou à areia da gata no contorcionismo de adentrar a casa (15h).  E da sobreposição do mesmo nome por duas âncoras à fuga deste àquele canal (sempre).

Queria dizer de como negação, colapso e adaptação aplicam-se a cada um, um de cada vez se Deus abençoar - se Deus abençoar, as explosões sucessivas quarto a quarto; e de como temo encontrar gritos congelados quando caírem as máscaras. Dizer da autopiedade ofertando medo ("medo de quê?" "de tudo...quer dizer...não do vírus, da questão econômica"); e de como faz falta misturar meu asco defensivo - descobriu a pobreza agora, mãe? - ao delas (vocês, gurias), cozinhando nosso caldeirão de mágoas fervorosamente para perguntarmo-nos, afinal: isso tem gosto de quê? 

(Uma a uma brande o cálice. Ríamos. O riso nos escudava pra batalha. E o absinto da Cidade Baixa...que submergiu na memória).

A professora contou de alguém que perdia o chão ao andar de avião, não sabia ser entre um ponto e outro porque não se encontrava em lugar algum, e do vazio que o pânico possuía... Então Alguém costurou álbuns destas viagens para carregar consigo ao longo, e venceu. 

Meu pai cospe aos quatro ventos que é um ano de faz de conta.

É um ano de faz de conta pra quem não consegue contar. Não faz cantar esse agudo esdrúxulo e inesgotável de passarinhos assoberbados e guindastes inimputáveis. É incapaz de marchas fúnebres. 

As orquídeas observam minha sofreguidão, amordaçadas como eu, seus pescoços verdes agonizando ao luar; adentro-me, alucino. Privilégio mais polêmico que o tempo de alucinar¿ Que dinheiro pra ter cova e não esgoto. (Afogo em toneladas de flor).

A respeito do esgoto, entre pão e leite matinal a manchete: novo marco legal do saneamento. E discutimos Carris, uberização. Mormaço, mormaço...Ah, deixa eu sonhar o metrô em Porto Alegre que sonho é bússola em céu nublado, além do mais "prometo realizar o que estiver ao meu alcance" (só me alcança antes a realidade). 

A introdução da Voz do Brasil ilumina palhacinhes dançantes no palco do pensamento. E tecidos (vai macaquear nos panos, artista? Viu que o Soleil tá quebrando?). Infalivelmente lembro a performance de Daniel Lima Santiago, O Brasil é meu Abismo.

Lembro que meu abismo é meu princípio. Enfim embriagada, reverencio quem sofregamente relincha contra o vento, construtores de memória (vocês).

A Cidade de Deus é campeã, afirma o jornal. Outra vez. Cantamos parabéns. 

22.6.20

Dia 97: por Carla Vargas

Depois de três meses e tanto esforço, estamos na bandeira vermelha! E já ficou sem graça (se é que um dia teve) contar os dias de “isolamento social”...

Sem exagero, este termo cabe bem aqui em casa já que moro sozinha. Tirando algum encontro esporádico com vizinhos, nos corredores do edifício, ou trabalhadores dos serviços essenciais – mascarados como eu - todos os outros contatos passaram a ser mediados pela tecnologia. Da ligação ou recados pelo celular, às “lives” e vídeo-chamadas... E agradeço muito por isso! Insuficientes e frustrantes no início, hoje, os contatos virtuais representam a única possibilidade segura de manutenção da sociabilidade, da parceria e dos afetos e, por isso, já foram incorporados à rotina da maioria! Quem diria?

Os resistentes a esta alternativa sofrem mais; são raros, mas eu conheço alguns... E sofro junto, pois me fazem falta as conversinhas “bobas”, mas vitais! Acho que são elas que dão sabor à vida...

Ontem foi o meu aniversário e a comemoração: virtual, claro! Não é a mesma coisa: a imagem congela, o som atrasa, alguém cai! Mas é bem melhor que nada... E se eu pudesse fazer um único pedido online para aquela velha fada madrinha da infância, pediria o extermínio sumário deste vírus maldito, miseravelmente pequeno e desproporcionalmente desastroso. Por causa dele, a vida - como a gente conhecia até então - ficou suspensa... Não tem abraço, beijo, visita, cinema, trilhas na natureza, caminhadas à toa, na cidade mesmo...  E quantos projetos foram interrompidos ou adiados como se tivessem morrido subitamente? Muitos! Por causa dele, meu planejamento se reduziu ao curto espaço de 3 ou 4 dias (o cardápio do almoço), e se estende, no máximo, até o pagamento das contas do mês seguinte...

Trancada em casa, às vezes me perco nesse universo infinito e cheio de memórias, lembranças vivas dos tempos de criança, que vem à tona durante as atividades de limpeza doméstica... Lembro demais da minha avó e da minha mãe e suas vidas, tão dedicadas e discretas, que hoje me são tão próximas como se eu tivesse voltado no tempo... Afinal, nunca fiquei tantos dias em casa , desde meus 6 anos, quando entrei na escola! E agora, é isto - entre outras medidas - que pode abrandar as piores consequências provocadas pelo coronavírus.

Estou com pressa, como quase todo o mundo!

Paciência? Nasci sem ela e ainda não aprendi o seu cultivo... Quem sabe eu aprendo até o fim da pandemia? E que seja logo!

21.6.20

Dia 96: por Felipe Schroeder Franke

Num sábado de inverno de 2016, meu vô me ligou de manhã. Naquela época, eu andava ocupado de um jeito bem caótico, sem tempo ou rotina para quase nada, e muito em dívida com muita gente querida. Meu vô era uma delas. Ele me ligou, e me lembro de ouvir a voz dele enquanto me debruçava pela janela do meu apartamento, olhando um dia ensolarado (era ensolarado?) na Cidade Baixa. Falamos coisas simples, mas boas. Quando desligamos, eu afirmei comigo mesmo: eu preciso conversar mais com meu vô, e estabeleci que me obrigaria, apesar dos compromissos caóticos, a ligar para ele no sábado seguinte.

Um dia depois, meu vô passou mal e foi para o hospital. Ficou lá duas semanas, e morreu.

Hoje foi o primeiro dia de inverno de 2020. Chegou ontem, às 18h44, como se fosse o verão, e esse foi, de novo, um fim de semana ensolarado de inverno. Também me debrucei por minha janela, mas sem falar com meu vô. Meu espanto, hoje, era ouvir os barulhos de uma cidade que vive como se nada de diferente estivesse ocorrendo no mundo.

Às vezes eu penso que não seria nada fácil para meu vô passar por essa pandemia. Ele era um homem extremamente ativo, criativo e independente. Depois dos 80 anos, ainda perambulava anualmente entre o Sul (ele odiava o frio) e o Nordeste (ele amava as praias). Do pouco tempo que ficava em Porto Alegre, menos ainda era passado em casa. Ia de lotação ao Centro, ia toda semana no cinema.

Ele era um homem muito engenhoso, mas penso que nem sua inventividade seria suficiente para se manter feliz em casa por tanto tempo. Ele provavelmente teria inventado alguma desculpa para pegar o carro e ir na fazenda do filho em Encruzilhada do Sul, ou visitar as irmãs em Itapiranga. Seria um desafio às regras da pandemia, mas seria um respeito ao espírito aventureiro e ativo que lhe era tão próprio.

Na casa da praia, meu vô tinha um cofre. Houve um verão em que ele decidiu voltar a usar o cofre, mas não lembrava a senha. Passou algumas semanas testando senhas, metódica e progressivamente. Pesquisando, descobriu também que soprar um secador em vento quente (óbvio que seria quente) desencadearia não sei qual mecanismo de dilatação metálica do cofre. Sem senha, mas com muito método, ele abriu o cofre. Não lembro o que tinha dentro. Provavelmente não tinha nada que já não estivesse fora: meu vô gostava de um bom desafio.

Meu vô gostava de um bom desafio, de um bom vinho, e também gostava de um bom verão.

Esta pandemia seria péssima para ele, que - idoso, diabético e ex-fumante - cairia em cheio no grupo de risco. Mas ele adoraria saber que esse início de inverno abriu com um dia de verão em Porto Alegre.

Hoje de tarde, depois de terminar um de meus compromissos (hoje já um pouco menos caóticos que em 2016), servi uma taça de vinho gelado, e senti saudade de não poder compartilhar esse vinho, esse verão extemporâneo, e os desafios da minha vida com ele.

20.6.20

Dia 95: por Aline Stawinski

Já é quase julho, e esse ano, pra mim, nem começou... me dei conta, do jeito mais didático, de que sofrer antecipadamente é um desperdício de energia. Que turmas vou pegar esse ano? Será que vou conseguir o que pedi? Me inscrevo naquele processo seletivo? E o congresso em Milão? Torcicolo, dores no corpo, será, será, será?  Tentei controlar o incontrolável, ansiei por respostas rápidas, e vem um vírus e derruba tudo. Pronto, agora não preciso mais me preocupar – ao menos, não com o que faço ou deixo de fazer... Ainda bem que deu pra aproveitar aqueles finais de semana no litoral, antes de todo mundo parar. Quando vamos poder voltar? Não sei...

Enquanto algumas pessoas parecem enlouquecidas com a abertura de um shopping (é só um shopping, aberto, no meio de uma pandemia...!), eu realmente me considero adaptada ao isolamento. Na verdade, estou até confortável, afinal, tenho uma tese pra terminar, um emprego estável que, por enquanto, permite que eu fique em casa... Tenho meu companheiro com quem posso contar e me sentir segura, dá pra assistir uns filmes e séries, curtir o aconchego da casa... Temos nossos cachorros pra fazer companhia, e que agora nos levam aos passeios diários fora de casa (com a máscara abafando o rosto)... Realmente, pra uma pessoa que sempre foi caseira, nada mau.

Pena que não é só isso. Não é só o alívio da rotina interrompida, das pressões e anseios da vida de quem dá aula, em um contexto cada vez mais desvalorizado (porque, sim, é possível piorar. Sai o ministro da falta-de-educação, e a pasta deve seguir acéfala em todos os sentidos). O mundo não parou porque as estruturas insustentáveis desse planeta se romperam. Elas continuam bem sólidas, aliás – e isso dá medo. São quase cinquenta mil mortos no país. Cin-quen-ta-mil. Acompanhar as notícias nos jornais é uma tortura imposta a mim mesma – mas como fugir das informações, se, hoje, é nosso maior bem? Até isso querem nos tirar.

Queria muito não pensar em nada. Esquecer que estamos vivendo uma pandemia em um desgoverno maníaco. Mas não dá. É impossível. Nem nos sonhos (pesadelos) consigo me livrar da realidade, me dá raiva. Eu não quero acreditar que faço parte de uma minoria que fica com um nó na garganta por causa de uma notícia do jornal, com a injustiça de uma morte injustificável, com o descaso à existência do outro... Porque isso é insuportável.

19.6.20

Dia 94: por Lucas de Melo Bonez

Turva a noite. São tantos dias observando a casa detrás da minha. Pela janela que resvala gotas e mais gotas de uma inesgotável chuva, inesgota meu desejo de vê-la uma vez mais. Já são dias em que a vejo abrir e fechar janela, sem nenhum movimento a mais que desmonte minha peregrinação pela busca de seus olhos.

Da janela para dentro, canta o aguaceiro pela claraboia, contrastando com o inequívoco silêncio que habita em mim. Se a música da tempestade recria um balé de categoria discutível, o que não se discute mais é a insípida vivência que o isolamento me provoca.

Do computador do escritório para a caneca de café na cozinha, com uma breve passagem pelo pátio de roupas estendidas; um retorno amargo para uma sala vazia que canta e desencanta notícias sobre um cotidiano comum – mas ensandecido pela voz de alguns. Falta de máscara? Tropeços? Risadas infames? Delirantes afirmações? De que me serve tudo isso se, na calada solidão do meu escritório, eu mal posso contemplar um dia da felicidade de alguém? Rio-me da desgraça.

Ao menos, ao lavar a caneca, vejo um brilho diferente. Reluzente. Se é o reflexo artificial de uma lâmpada ou a minha esperança por sair livre no dia seguinte, não sei. Mas brilha alguma coisa naquela limpeza. Me boto a olhar o pátio de novo e a chuva vem insistente, tornando esse dia também insistente em não acontecer nada.

Ao retornar para o escritório, ponho-me na frente do computador e começo a escrever. A luz que vem da janela de minha vizinha brilha intensamente de novo. Posso ver sua movimentação, seu circular de um lado para o outro, suas mãos passeando pela imagem como se tresloucadamente se fizessem entender. Mas alguém aparece e tudo escurece. Não se vê mais nada acontecendo do outro lado.

Turva a noite. Turva a imagem de desejo para se transformar em preocupação. E, assim, segue a noite, que lacrimeja mais e mais as poças do meu coração.

18.6.20

Dia 93: por Regina da Costa da Silveira

A máscara em quadrinhos de histórias

Sua máscara de pano, assim como você está a moldá-la de modo a cobrir nariz e boca, Lúcia, faz lembrar nossa colega Anita, em sua antiga instituição de ensino. Mas era com folhas de jornal amassadas que ela dava início às máscaras africanas em suas aulas de Literatura e de Língua Portuguesa.

Assim, ela cobria de barro o molde de papel e passava a alisá-lo com as duas mãos até chegar à base da bola achatada contra a mesa e sentir seus dedos e toda a palma da sua mão acetinada e viscosa. Só então, com um clipe introduzido na ponta de um canudo plástico, que podia ser de uma caneta Bic, Anita traçava uma cruz de malta sobre a superfície, introduzia os dois dedos até encontrar o papel, fazendo furos  para os olhos nas pontas horizontais da cruz, perfurava também o barro para que desse vazão à boca e, como quem acariciasse não mais o barro amorfo, mas já uma face humana, perfilava com gestos lentos o nariz.

Fui sua aluna em Letras, mas também a acompanhei como monitora em outras turmas e nunca esqueceria do modo como Anita agregava a turma em volta da mesa da maquetaria dos cursos de Arquitetura e Design, para uma releitura de Saramago, revisitando o talento do velho oleiro Cipriano Algor, protagonista do livro A Caverna. Aquilo pareceu-me resultar sempre em esculturas em movimento, de acordo com o que um certo Jean Laude escreveu sobre as máscaras.

A confecção daquelas máscaras dava-se como uma preparação para reanimar antigos seres mitológicos, seres insólitos dos filmes de terror, cenas dramáticas de contos, romances e peças teatrais. Ao final da aula, chegava-se ao símbolo da máscara como identificação dos sujeitos que a modelaram, momento em que os alunos apresentavam cada qual a sua máscara, observando como ela foi pensada, enquanto ia sendo construída, e quais as possíveis representações que ela então pronta sugeria.

Nesse ponto, a professora costumava observar com o grupo que, não obstante as medidas tivessem sido as mesmas, e o mesmo material tivesse sido utilizado, nenhuma máscara resultava igual à outra. Por certo elas evidenciavam que a diferença entre os humanos, esta que começa pela ponta dos nossos dedos, estende-se por todo o nosso ser. Nas referências do plano de ensino da professora Anita, constava o Dicionário de símbolos, de Chevalier. Tua atividade com retalhos de tecidos hoje, Lúcia, me puxou para lembranças antigas e para as reflexões que seguem.

***

Já éramos mascarados antes mesmo da COVID19 

Dentre as tantas funções simbólicas, uma delas chama atenção para o momento, a de que as máscaras preenchem uma função social, uma vez que são também verdadeiros espetáculos catárticos, em que o homem toma consciência do seu lugar dentro do universo e vê a sua vida e a sua morte inscritas em um drama coletivo que lhes dá sentido.

Mas tudo isso ocorreu há meses, muito antes mesmo da quarentena pela pandemia do Coronavírus. Agora que você está em casa a me ensinar pelo WhatsApp como se faz uma máscara para prevenção de adquirir ou de propagar o vírus, Lúcia, fico ainda mais atenta, pensando nos povos das aldeias, para quem você disse que vai doar mil máscaras de tecido, você junto ao grupo de idosos no trabalho de extensão da sua universidade.

Penso nos pobres moradores de rua, na dor de quem está sofrendo à espera dos respiradores, nos que sofreram perdas de familiares e de amigos por conta da pandemia. Quanta preocupação entre as pessoas que trabalham em serviços essenciais, da saúde, do comércio de alimentos, dos entregadores de gás e frentistas dos postos de gasolina. Penso na saudade, palavra única para dizer tanto, que só existe mesmo na língua portuguesa, saudade de gente querida que está no exterior, impossibilitada de abraçar seus pais e irmãos, até quando não se sabe; saudade dos passeios em grupo, e aqui me lembro das saídas de campo nos trabalhos extensionistas junto ao grupo de Anita na pesquisa sobre o silêncio da história dos negros nesta cidade, saudade, saudade, só saudade.

As aulas mal reiniciaram em março e veio a quarentena, distanciando milhares de alunos e professores de suas aulas presenciais nesta cidade e em diferentes pontos do planeta. Todos deveriam ficar em casa, aconselhados a participar de aulas virtuais, situação que nivelaria o mundo todo, não fosse a falta de internet e de recursos afins para muitos estudantes, senão para seus próprios professores. 

Aos quase três meses de quarentena, os professores continuam pondo em prática o que na verdade nunca antes praticaram ou sequer ao menos obtiveram treinamento básico, no intuito de agregar suas turmas com aulas a distância.

Li hoje uma homenagem no facebook da psicóloga Vera - membro do Clube de Leitura de que Lúcia, Anita e eu, junto a mais de duas dezenas de professores-leitores fazemos parte no Clube do Professor Gaúcho - para você, Lúcia, porque você foi matéria do jornal da universidade, como representante do projeto que confeccionou e doou máscaras de tecido a pessoas necessitadas.

É interessante pensar no segredo de quem está por trás de uma máscara. A máscara instiga e agrega o outro, a partir do enigma que só poderia ser desvendado pelos olhos não fossem eles, como as pontas dos nossos dedos, parte significativa da diferença em cada um de nós.

Quando fui pela primeira vez de máscara ao supermercado, tive a certeza de ser vista e de ver os outros como seres amordaçados por uma situação delicada e amedrontadora. Tudo lembrava a crise na saúde, e tudo se expressava pelo olhar, porque poupadas eram as palavras sempre que essas não fossem urgentes, indispensáveis.

Nas nossas entradas em locais públicos, não podendo levar as mãos à máscara, levantamos os olhos para encontrar o olhar do outro, desvendar por vezes os sentimentos e, à luz da ciência, manter a necessária distância entre os indivíduos, regra pré-requisito da razão.

Esquecemos das máscaras como magia de um espetáculo para pensar nelas com a urgência que o novo tempo requer no mundo inteiro. A máscara, então, pensada como objeto a ser confeccionado para atender à sua função físico-social. A máscara vista agora como agente regulador da circulação das pessoas; como dominadora e controladora do mundo invisível do novo vírus.

Com função aparentemente, e só aparentemente, inversa à da psicanálise e da psicologia, ambas com o objetivo de arrancar as máscaras do indivíduo para colocá-lo na presença da sua realidade profunda; a máscara que hoje irremediavelmente usamos esconde parte do nosso rosto, ao tempo em que desnuda uma situação irremediável e um mal até agora também sem remédio.  É quando se toma consciência do lugar que ocupamos diante do outro, e na presença solitária de nós mesmos percebemos a nossa vida inscrita em um drama coletivo, agora relacionado à verdadeira guerra contra o novo Coronavírus. 

17.6.20

Dia 92: por Tailor Diniz


São dois os motivos pelos quais decidi não aproveitar a quarentena para escrever.

Primeiro: não estaria fazendo nada diferente do que tenho feito a vida inteira, todos os dias.

Segundo: tenho seis originais inéditos, acabados, lidos, relidos e revisados, prontos para serem publicados, e um no prelo, Só os diamantes são eternos, que sai em outubro, pela editora Folhas de Relva (SP).

Então, escrever um novo livro para quê? Seria mais um na memória incerta do computador, na fila, esperando sabe-se lá quanto tempo para ser publicado, se for publicado.

Assim, decidi me dedicar a algo diferente, que não fazia havia anos. Peguei minhas tintas guardadas, umas telas antigas, pincéis endurecidos e uma paleta e fui pintar. Se o corona me levar, o destino dos livros inéditos provavelmente será o saco. Já um quadro fica na parede, pelo menos por uns dias, e alguém o vê.

Esses acima são dois óleo sobre tela, quinze por vinte e quinze por quinze. O segundo ainda cheirando a tinta fresca. Abaixo uma sequência de três imagens a partir do esboço. Ao apresentá-los, peço a compreensão do amigo leitor. Minha participação neste diário, dessa forma atendendo a um gentil convite da Julia, se justifica não pela qualidade das obras, especialmente técnica, mas pela curiosidade sobre o que tenho feito para ocupar o tempo durante a quarentena. Portanto, só com o olhar benevolente de todos é que isso terá algum sentido.


E ainda faço uma última ressalva: embora mergulhado nessas misturas de tintas, que resultam em suaves pandorgas coloridas, primaveras em flor e casas com puxadinhos, é impossível perder a consciência sobre onde estamos e para onde somos levados nestes tempos sombrios de muitas mortes e demência institucionalizada. Não há dúvidas de que somos empurrados para a parte mais funda de um esgoto pútrido, pelas mãos sujas de uma espécie de elo perdido entre um perigoso psicopata e o mentecapto da pior espécie. Sustenta-o uma claque de canalhas pestilentos, exemplares raiz de um tipo abjeto de miséria humana do qual se orgulham, e que, por assim ser, jamais terão salvação.

Lamentavelmente, é nas mãos dessa gente que estamos, enquanto levamos a vida adiante, tentando evitar, do jeito que podemos, pisar nessa cloaca em que eles nos meteram.


16.6.20

Dia 91: por Marcelo Frizon

Quarenta anos hoje

1. “Vomitar esse tédio sobre a cidade. / Quarenta anos e nenhum problema / resolvido, sequer colocado.” Esses versos de Drummond em “A Flor e a Náusea” parecem tão sem sentido pra mim. Sinto-me um herege dizendo isso, mas estou fazendo 40 anos hoje e estou cheio de problemas, a maioria deles resolvidos, mas uns tantos apenas colocados. Não que eu não entenda o que ele disse aí, mas aprendi a não julgar os problemas dos outros. Não tenho e sobretudo não posso usar minha régua para medir problemas que não são meus.

2. Qualquer um que está fazendo aniversário no isolamento deve estar irritado com a situação. Eu imaginava meu aniversário bem diferente. 40 anos é uma idade redonda daquelas em que o sujeito precisa fazer um balanço do que viveu e do que ainda quer e espera viver. Mas a pandemia parece impor a dúvida se haverá outros aniversários a comemorar.

3. Às vezes acho que exagero ao pensar assim. No fundo, não me sinto no direito de reclamar de minha situação. Nunca imaginei que a minha classe seria tão privilegiada como agora. Sou professor em três escolas particulares de Porto Alegre. Trabalho com Redação, Literatura e Língua Portuguesa. Gosto do meu trabalho, gosto dos meus alunos, não parei de trabalhar, não estou sem receber nem tive corte em meus rendimentos. As escolas todas se organizaram com ferramentas digitais variadas para manter o estudo à distância. Continuo interagindo com os alunos, embora de forma diferente.

4. A situação brasileira é pior do que a de outros países porque, além do vírus, precisamos lidar com políticos incompetentes, sobretudo no governo federal, que mais atrapalham do que ajudam. Talvez isso gere mais náusea. E aí voltamos aos alunos.

5. Eles me perguntam quando voltaremos. Já respondi a essa pergunta muitas vezes em todas as turmas. Não sou membro da direção das escolas. Não sou político nem funcionário público da administração municipal, estadual ou federal. Não tenho como responder. Tudo que posso dizer, para tentar aplacar a ansiedade desses adolescentes ansiosos (o que talvez seja um adjetivo redundante), é que não temos previsão e que, como cidadão, acho que esse retorno está cada vez mais distante. A ideia inicial era retornar após a Páscoa. Depois era maio. Então junho. Agora, julho, mas logo será agosto, setembro, talvez outubro. Aí os alunos querem saber como ficarão os projetos que eles costumam desenvolver ao longo do ano. Alguns estudantes do 1º ano do Ensino Médio se irritam, querem gravar o curta-metragem baseado em obra literária, trabalho da série naquele ano. Digo que, provavelmente, não será possível. Como impor que eles se reúnam para fazer um trabalho em grupo? Até a Globo cancelou suas novelas neste ano. Hollywood também está parada. Eles protestam, afinal Globo e Hollywood envolvem centenas de pessoas numa produção, eles só têm cinco ou seis pessoas gravando com um celular. Argumento que eles precisam ficar distantes, não podem se tocar. Eles arrefecem. Negocio fazer a atividade no ano que vem, apesar de não ser um projeto do 2º ano. Eles dizem que alguns estarão viajando, fazendo intercâmbio. Então eu digo que não quero ser o portador de más notícias, mas que é bem provável que os planos de intercâmbio deles precisem ser adiados. Eles não tinham pensado nisso. Se incomodam com minha colocação. Eu argumento que o Trump proibiu a entrada de brasileiros no EUA. A Europa está fazendo o mesmo. Não há previsão para isso ser alterado. O Rio Grande do Sul está voltando atrás na flexibilização do comércio e de outras atividades. Então alguém diz que é um retrocesso voltar atrás e defende a cloroquina. Eu observo que a OMS não recomenda o uso da medicação para o tratamento da Covid-19. O aluno insiste dizendo que há estudos na China que provam que a cloroquina é eficaz. Eu respondo que queria muito que ela fosse eficaz, mas que, até agora, tudo indica que não é assim. Então uma conversa boba, baseada no que está sendo veiculado pelos mais respeitados veículos de imprensa do país, se torna uma discussão política. Eu corto a conversa meio irritado. Fico me perguntando em que momento aquilo que é fato se tornou objeto de divergência política. Não posso dizer que não há provas de que a cloroquina não é eficaz contra o vírus, mesmo baseado naquilo que diz a OMS e a maioria dos infectologistas, porque acabo taxado de comunista. A que ponto chegamos… O aluno argumenta que seu pai, médico, vai me enviar relatórios que provam a eficiência do remédio. Eu ignoro. Outro diz que recebeu um WhatsApp dizendo que a OMS é uma entidade de esquerda vinculada a partidos políticos espalhados pelo mundo. Preciso ignorar se pretendo continuar pagando minhas contas.

6. O que fazer? Porque quando um professor chega a esse ponto, algo precisa ser feito. Já duvidam da imprensa e controlam tudo o que o professor diz para ter certeza de que ele não está tentando formá-los para a revolução comunista, como se o professor fosse um espião infiltrado a serviço do PT ou do PSOL. Daqui a pouco, vão começar a duvidar de que Machado de Assis era negro, mesmo que o professor mostre fotos. Vão começar a duvidar de que “Marcelo” cumpre função sintática de sujeito numa frase como “Marcelo está cansado.” Não importa o que os gramáticos dizem, não importa o que o professor explica. O grupo de WhatsApp é que tem a informação correta.

7. Discuto “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, que eles leram por indicação minha. Quando digo que fica claro que o autor, ao escrever o livro, tinha em mente os regimes totalitários das décadas de 1930 e 1940, tenho medo do que eles podem questionar. Ficam quietos. Avanço e uso expressamente os termos “fascismo” e “nazismo”. Continuam quietos. Estarão ouvindo? Então observo que o autor declarou, em 2010, que o inimigo que ele quis atacar com o livro era a televisão. Em sua visão, a televisão estava tomando um tempo que antes era dedicado à leitura. E aí parece que um alívio percorre o sinal da internet da minha casa até o computador de cada aluno, como se essa justificativa fizesse mais sentido para eles do que uma denúncia do cerceamento da liberdade por um governo opressor.

8. Neste Bloomsday, sinto-me como Leopold Bloom: ora fraco, covarde, ora heroico, corajoso, quase maluco e invencível. Parece uma sina por ter nascido nesse dia 16 de junho. Mas não é, porque essa já não é uma sensação exclusiva, nem é algo que incomoda apenas professores de língua e literatura.

9. Um colega gosta de contar uma história que experienciou num Uber. O motorista pediu a ele que fechasse seu vidro, porque havia parado ao lado do automóvel um caminhão transportando cilindros de hidrogênio. Para quem não sabe, o hidrogênio se dissipa no contato com o ar. Meu colega, professor de Química, estranha o pedido e pergunta por que deveria fazer aquilo. O motorista explica que aqueles cilindros podem explodir. Meu colega pergunta quem lhe disse isso, e o motorista responde “os guri”. Realmente chegamos ao ponto em que “os guri” viraram referência intelectual.

10. Lembro de um professor das antigas dando o recado. Na época, ele dava aulas na PUCRS e num tradicional cursinho pré-vestibular, mas também já havia dado aulas na UFRGS. Ele estava numa dessas turmas com 300 alunos querendo entrar numa universidade pública. Nesse tipo de aula, os estudantes costumam encaminhar ao professor bilhetes com dúvidas ou recados impróprios. Geralmente, o professor não tem como identificar quem é o autor do bilhete, porque ele vem através da multidão. Então ele lê o bilhete engraçadinho, que perguntava qual seria seu epitáfio. Ele responde “Lutou contra a ignorância, mas foi vencido. Eram muitos.” Talvez este devesse ser um epitáfio compulsório para qualquer professor no Brasil…

15.6.20

Dia 90: por Yannikson

Troquei a janela do quarto e comprei a cortina errada: tenho adormecido e acordado com uma claridade em formato de quadro na parede. De noite a luz dos postes fingem ser gigantes abajures, de dia os raios tentam fazer a manhã parecer um comercial de margarina. A vista até que é bonita: o rio Jacuí se estendendo no horizonte, revezando a aparição com as copas das árvores do pátio dos vizinhos e perdendo seu destaque somente para as paredes da penitenciária que, de longe, encaram as alturas do meu quarto. Distintos confinamentos.

A fadiga e a vontade de aproveitar o dia ao máximo se misturam na frigideira junto com o café da manhã, me avisando que tenho mais coisas pra esquecer do que pra lembrar de fazer. Num estalo, pensamentos perdidos visitam conflitos antigos, buscando respostas para brigas com pessoas que hoje não valeriam nenhuma discussão ou aproximação. Um pequeno redemoinho vai puxando outras lembranças avulsas, compactadas entre decepções, casos e acasos, coisas que eu devia ter dito mas não disse e coisas que nunca deveria ter feito mas fiz. Nessa hora percebo que há vários pensamentos que a gente acha que se livrou mas que, na verdade, continuam ali. Adormecidos na ressaca do tempo.

Pensando em tocar as pontas soltas me lembro que há muita ideia nova sendo costurada nestes últimos meses de exclusividade de vida. Trato então de emendá-las como se fossem fios de ouro, na tentativa de valorizar a preciosidade que carregamos no baú que rege as batidas do nosso interior. Na rua está o sol, guiando o dia e me convidando pra intermináveis xícaras de café. Sozinhos, ele lá e eu aqui, e ao mesmo tempo muito bem acompanhados, regidos por distâncias que, no final das contas, são justamente as que permitem que a gente se aproxime cada dia mais. No girassol que capta a luminosidade do dia os redemoinhos vão se desfazendo, se dissolvendo na respiração lenta que só quer que tudo isso se acalme de uma vez. E assim a melancolia e a esperança voltam a se abraçar ao longo de todo meu dia, disputando decisões que seriam ridiculamente fáceis de serem tomadas se houvesse uma rotina apressada guiando o meu tempo-espaço. Me canso de tanto, de tudo e de todes. Só não me canso de sentir saudade dos abraços que vão me irradiar quando tudo isso acabar.

14.6.20

Dia 89: por Gustavo Machado

Vão se acumulando os dias e eu os ponho lado a lado, como se numa lista que pretendo fazer mas nunca materializo. São muito parecidos, os dias. Talvez iguais. Não têm mais números. São asteriscos.

***

Pouca gente deve ter testemunhado; era tarde e a maior parte da vida se recolhera aos interiores dos apartamentos. Mas eu notei o véu muito leve de uma fina neblina cobrindo a cidade. Turvava os contornos, roubava a nitidez das formas, confundia as perspectivas e as distâncias. Quem eventualmente olhasse à janela àquela hora enxergaria em duração indefinida o que eu vejo quando vou espiar a rua e esqueço de levar comigo os óculos. Notam como é estranho?, eu penso (e quase digo). Esta redinha de água miúda, suspensa na madrugada de poucos ventos, por uns instantes me nivela à melhor visão que podem ter os outros. A noite é uma senhora gentil. Sempre foi boa comigo.

***

Estão falando no rádio. Um homem branco asfixiou até a morte um homem negro, é o que entendo dos pedaços de frases que vêm de algum lugar da casa. Foi em algum lugar da América. América do Norte, como se costuma chamar os Estados Unidos. Por aqui nós também já matamos e mutilamos e mesmo desossamos muitos negros, aplicando-lhes variados feitios de flagelo, nem sempre usando os joelhos contra os pescoços. Não só no passado. Fazemos isto todos os dias, desde quase sempre, somos experientes na área. É uma grande coincidência que eu esteja lendo, na hora, aquele terceiro volume da trilogia histórica de Laurentino Gomes. E relendo trechos dos dois primeiros livros, leio, rabisco, releio, rabisco de novo. Num destes livros já bordados de grafite, redescubro que em 1812 metade dos trinta maiores comerciantes do Rio de Janeiro era composta por traficantes de escravos. Pouco depois, entre 1830 e 1839, entraram no Brasil mais de quatrocentos mil negros africanos. Foi um erro, porque isto vulgarizou a mercadoria, aviltando o seu valor. Não se contavam os que morriam na travessia transcontinental. Nem os que expiavam logo nas primeiras horas do desembarque. É difícil trabalhar a fragilidade da carga viva. E os tempos estavam mudando. Os preços, passando de setenta e cinco para trinta e cinco libras inglesas, cada unidade. Esta queda no preço do negro vivo provocou grande abalo na economia.

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É lento e custoso o desencaixotar das coisas. Em algum momento de 2013, meu pai separou para mim um volume do breve (porém intenso) “O Mandarim”, uma espécie de “lado B” do português Eça de Queiroz. Por algum motivo, ele nunca me entregou presente e só há pouco encontrei o livro, com dedicatória e tudo. Parece que o afeto contido na tinta azul de meu pai e a generosidade exagerada das suas considerações vêm de mais longe do que o século XIX, quando Queiroz deitou esta narrativa ligeira, cantada em tom de fábula. “Abati-me sobre uma cadeira; e, com a face entre as mãos, chorei abundantemente”, diz Teodoro, como se num eco ao contrário.

13.6.20

Dia 88: por Mélany Dias

“Poesia” é o nome do despertador que programei pra tocar às dez da manhã. Esse marcador eu comecei a usar no ano passado, quando tinha a tarefa de produzir um poema por semana a ser entregue nas sextas-feiras. A palavra poesia em letras maiúsculas e seguida de cinco pontos de exclamação me servia pra lembrar que era tempo de escrever. Na maioria das vezes, o poema já existia em mim como uma inscrição de ideias e rimas antes do alarme tocar. Enigma do tempo do inconsciente e das coisas que começam a ser escritas antes do registro no papel. Agora todos os dias desperto com a palavra que me lembra criação poética e desde que a quarentena começou eu pensei que era tempo de escrever um romance. De umas duzentas páginas que ainda não consegui começar. Acordo com a poesia enquanto palavra que arrasto pro lado e suspendo por cinco minutos ou talvez meia hora. Depois levanto pensando em ligar pra minha avó que não vejo há dois meses e vinte e dois dias. A datar do início do isolamento ela pergunta quando isso vai acabar e eu respondo que daqui a pouco. Em breve. Saudade de abraçar vocês, ela me diz. Sim, também sinto, daqui a pouco, em breve. Deus te abençoe. Amém. Eu sempre desligo depois do amém e com a angústia de não saber quanto tempo cabe no daqui a pouco. Me parece que é tempo de refazer imediatamente os tempos verbais. Ontem mesmo eu me vi envelhecer vinte e nove anos quando sequei o chão do banheiro depois do banho, e lembrei da mãe da melhor amiga de uma amiga que não encontro há muito tempo. Aos cinquenta e três anos, a mãe da melhor amiga dessa amiga me marcou pelo costume desnecessário e improdutivo de secar o chão depois de tomar banho. Já faz dezoito dias que ao terminar o banho eu repito o exercício de enxugar o chão. Sinto falta de caminhar pelas ruas da cidade baixa, beber dois litros de cerveja por quinze reais e fumar o cigarro mais barato da tabacaria da Lima e Silva, 532. Se alguém me parasse naquela esquina com a intenção de alertar sobre o risco de três meses depois eu me encontrar secando o chão do banheiro, provavelmente eu ia dar risada pelo cômico de uma profecia descabida. Acontece que coube na minha rotina não só isso, mas também a indecência de enganar minha vó ao alongar o tempo do dentro em breve. Tenho tido tempo de me perder no tempo, de confundir os passados e dilatar o presente. É tanto tempo que falta tempo, de tão largo que ficou estreito. Ainda não tive tempo de aprender nenhum novo idioma, não pratiquei nenhuma aula de ioga e também não comprei nada pela internet, mas depois de ler um texto da Eliane Brum sobre a cidade que mata o futuro, tive tempo de ficar durante duas horas percorrendo Altamira pelo google maps. Me olhei no espelho como quem olha de fora pra dentro sem coragem de entrar. Eu tô cansada e indignada de não conseguir. Essa frase foi o ponto alto da minha semana. Uma frase incompleta e lacunar porque eu não sei como preencher esse sintagma. Eu tô indignada de não conseguir me posicionar frente a um governo que se promove através de conflitos. De não conseguir narrar contornos pro caos. De não conseguir me deixar levar pela poesia que desperta às dez da manhã. De não conseguir parar de secar o chão do banheiro. Eu tô cansada e indignada de não conseguir fazer alguma coisa que faça sentido. De não conseguir articular rede de vínculos e afetos. De não conseguir pensar sobre o que vem depois do daqui a pouco. De não conseguir pensar no depois. De não conseguir escrever sobre o agora. De não conseguir. Mas talvez amanhã às dez horas. Daqui a pouco, em breve. 

12.6.20

Dia 87: por Luciana Guirland

Meu isolamento voluntário começou no dia 11 de março. Lembro de ter faltado à última aula de um interessantíssimo seminário na minha universidade, que por sua vez suspendeu as aulas cinco dias depois. Moro sozinha e a solidão, nessa semana, começou a incomodar. As consultas com a psicóloga passaram a ser por Skype. Sempre foram semanais, mas à medida que a leitura das notícias sobre a pandemia ao redor do mundo se intensificou, as consultas tornaram-se mais frequentes. O medo e a ansiedade, rapidamente, passaram a ocupar as zonas do corpo que haviam se habituado a uma certa normalidade.

No final do mês, começaram os pesadelos com a morte. Não com a minha própria ou de alguém querido. Apenas a Morte, como força devoradora, espécie de buraco negro, a entidade em si. Sem rosto, sem esqueleto, sem foice, sem figura de desenho animado. Apenas essa força que me agitava na cama e me fazia acordar chorando no meio da madrugada.

Me afastei de meus melhores amigos e família nesta fase. A relação com meu namorado – nos permitíamos encontros aos finais de semana, afinal, ambos nos cuidávamos, cada um em sua casa – por pouco não terminou. A busca era por prazer e amor, mas surgiam conflitos indecifráveis e incontornáveis.

Sair à rua era perigoso. Além da onipresença do vírus, as calçadas eram habitadas por poucos. Raros moradores de apartamento, usando máscaras e atravessando a rua quando eu passava. Muitos moradores de rua. Sem máscaras. Sem nada. Desesperados. Eu cumpria as instruções dos profissionais de saúde à risca: saía apenas quando a comida acabava. Não lembro se já era abril quando estive próxima de uma crise de pânico por claustrofobia. Lembro de não suportar olhar para os mesmos cômodos e objetos, da taquicardia que me acometeu, lembro de sair à frente do prédio para ver a rua, as árvores, lembro do pavor que isso inspirou, lembro de voltar correndo para o apartamento e não ter outra saída a não ser controlar a respiração – “sente o diafragma, inspira, solta o ar devagar, inspira, solta de novo”.

Aconteceu no dia sete de abril. Eu havia lido, pela manhã, que nos Estados Unidos estavam morrendo cerca de duas mil pessoas por dia de Covid-19. Em Nova York, elas estavam sendo enterradas por presidiários em valas comuns no Bronx, mais especificamente em Hart Island – que, segundo a notícia, vem sendo usada há mais de cem anos para enterrar indigentes. Duas mil pessoas sem direito a um funeral. Por dia. Heart Island? Broken Heart Island? Para o meu coração, foi um tanto demais. O empurrãozinho para além do limite. Sabia que esse presente estadunidense insólito era o futuro do Brasil. Que a onda chegaria aqui. Morreríamos assim. Veríamos nossos anciãos amados, primeiro, morrendo, antes de seu tempo. Antes que pudéssemos dizer que os amávamos, pois seria rápido, muito rápido. Além disso, aprendi com meu pai que não é a morte iminente que nos faz pegar um telefone e dizer “eu te amo”. Nesse sete de abril, fui dormir cedo, com a ajuda de alguns calmantes. Acordei no meio da noite, sem saber a hora. Estava com fome. Fiz um sanduíche, e decidi, em meio ao delírio que os fármacos podem provocar, recheá-lo com mais remédios para dormir. Ali mesmo, entre o requeijão, o presunto e o pão. Todos os remédios para dormir da casa. Sabia bem o que queria. Não pedi ajuda. Não escrevi bilhete. Tratei apenas de comer o sanduíche com seu gosto de giz. Fui pra cama. Não lembro se dormi. Lembro da náusea e do vômito. Vômito involuntário.

Minha relação com a pandemia mudou a partir do dia seguinte. Fui aprendendo. Talvez não morra. Talvez minha mãe e minha tia, 82 e 91 anos, respectivamente, não morram. Talvez eu até mesmo possa fazer algo que impeça ou dificulte isso. Talvez eu não enlouqueça. Faço o que está ao meu alcance. Não me cobro. Não faço dieta. Talvez. A única certeza é a de que lá fora, nas ruas, faz um outono lindo como há muito não fazia. Sem chuvas, frio, ensolarado e com o céu de um azul altíssimo.

11.6.20

Dia 86: por Luiza Milano

Eu estava ouvindo I will survive – na versão meio introspectiva do Cake, na Rádio Elétrica, quando recebi o convite da Julia. Ha-ha-ha, justamente na hora (leia-se: aquela mísera fração de segundos) em que cogitei flertar com o medo e com a possibilidade de me recusar a dar meu depoimento ao Diário da Pandemia, rolou I will survive??? Tá, né, o sinal estava dado, tive a sensação de que era hora de encarar essa ideia de sair do aparente conforto do bastidor.

A segunda reação que passou pela minha cabeça foi indagar: “Pô, Julia, diz aí como é que tu tá gerenciando essa coisa toda pra acertar o timing, e disparar o convite bem nesse momento, assim tão precisamente?!”. Bueno, como eu já li Ruína y Leveza, sei que ela acredita em bruxas. Las hay, com certeza, las hay.

Já correndo (putz, metáfora infeliz, mas é a que se apresentou para mim agora) o terceiro mês de reclusão, vejo o quanto essa história de ficar nos bastidores me serve como escudo. Na verdade, em meu percurso até aqui, eu achava o maior barato dar aquela força para quem não tinha voz ou espaço para falar. Fiz isso por anos na clínica, na sala de aula, nas equipes de que fiz parte, nos relacionamentos amigáveis e nos amorosos. E eis que, através desse convite, a tal da quarentena me dá sinais de que, muito antes da Covid, ou esse tempão de bastidor me ensinou muito sobre suportar, ou eu estava mesmo, até então, só me escondendo, por um tanto de medo. Uma vez ouvi da Diana Corso que suportar tem dupla acepção: uma, a de “aguentar”, e a outra, a de “dar sustentação”. Acho que me empenhei em dar suporte para um monte de gente, por bastante tempo. Se meu escudo ainda não caiu, ao menos percebo que ele anda beeeem vasado. Agora talvez seja mesmo tempo de eu suportar mostrar a cara, a voz e a escrita.

Valeu, Julia!

Ah, em tempo: ando louca para sair para dançar com os amigos, no pós-quarentena, e suportar botar também o corpo em cena. E quero muito dançar I will survive. Dessa vez, na versão da Gloria Gaynor, óbvio!

10.6.20

Dia 85: por Ana Carolina Ferrão

Dia-não-sei-qual-do-isolamento, mais conhecido como o-pior-dia-da-minha-vida. Os corpos não são nada. Eu descobri isso quando tu foi internada no hospital e os médicos começaram a revirar o teu corpo, tentando descobrir o que estava corroendo os teus ossos. Eles descobriram. E a gente achou que a quimioterapia de ponta ia te levar pra casa em algumas semanas. A gente ficou até feliz quando tu foi pro quarto privativo: TV e ar-condicionado. Hoje isso parece tão bobo, que a gente tenha ficado feliz sem nem saber que aquele quarto seria o último lugar que tu estaria com vida. As semanas cresceram nutridas pelas bolsas de sangue que tu fazia dia após dia. Elas viraram meses. E quis o destino que o teu câncer avançasse bem no meio de uma pandemia. As visitas foram cortadas e eu só te via por chamada de vídeo. Até o dia em que uma infecção  resolveu achar o caminho dos teus pulmões. Não era covid-19, mas foi fatal. Foi tão difícil assistir a tua respiração sofrida, lutando pra existir. Eles então liberaram as visitas, eu não pude nem ficar contente porque iria te ver. Liberaram as visitas porque tu estava morrendo. Nesse ponto tu já não reconhecia muitas pessoas por causa da medicação. Eu não queria chorar ao pé da tua cama, mas o meu peito começou a embaraçar, junto com a minha vista. Eu encharquei o tecido que cobria o nariz e a boca, o calor embaçou os óculos. Foi por essa lente pouco nítida que eu vi teus olhos abrindo: tu é o amor da minha vida. Eu engoli o peso que subiu pela garganta: e tu da minha. Sim, o meu rosto tu reconheceu, mesmo vendo só uma parte dele. Contra todas as rezas e clamores que eu poderia fazer, a tua partida aconteceu no dia seguinte. A ameaça do novo vírus parecia tão pequena dentro dessa tragédia que estava acometendo nossas vidas. Eu te perdi durante a quarentena, não pude te abraçar e tu não pode ver meu rosto uma última vez. O teu velório, mesmo sendo a professora mais querida na escola que tu trabalhou quase a vida toda, estava praticamente vazio. A nosso adeus foi através de uma máscara, de um vidro tão pequeno no caixão fechado. Eu queria que tudo isso fosse apenas ficção, e às vezes eu até acredito que vou te ver de novo porque é tão inconcebível que tu não exista. Como pode ser realidade que nunca mais tu vai estar aqui? Eu sequer me despedi direito. O coronavírus roubou o último beijo que eu queria tanto ter te dado. Mas tudo bem, dinda, eu vou guardar ele pra ti.