Uma pessoa por dia. Um dia de cada vez. Diário da pandemia é uma tentativa de reunir relatos daqueles que estão atravessando os tempos de coronavírus em Porto Alegre.
Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.
31.7.20
Dia 136: por Loren Hofsetz
30.7.20
Dia 135: por Caue Fonseca
29.7.20
Dia 134: por Clarice Nilles
28.7.20
Dia 133: por Laura Peixoto
27.7.20
Dia 132: por Rochele Bagatini
26.7.20
Dia 131: por Leandro Ayres França
A utopia é a pior inimiga do solitário. da solidão. Não lembro a frase exata do autor. Mas a grifei no livro. Penso nisso enquanto olho para uma cidade adormecida ao pleno meio-dia. E, enquanto penso nisso, me pergunto se é assim que uma cidade sonha. E, enquanto me pergunto isso, penso o quanto é curioso eu me lembrar de citações de livros no meio dos sonhos. Hoje é o centésimo primeiro dia de quarentena. Não deve ser. Não estou contando. Só nos filmes se contam dias de quarentena (e presos riscam os dias nas paredes da cela). Mas, parece que um registro de quarentena só faz sentido a partir de uma centena.
No início, estabeleci uma rotina rígida. Acordar. Passar o café. Ler por uma hora. Passear no parque. Resolver trabalhos menores. Lavar a roupa. Almoçar. Dieta controlada. Ler trabalhos acadêmicos. Passar o segundo café do dia. Fumar um cigarro. Verificar as correspondências. (ooi) Fazer exercícios. Caminhar rumo ao pôr do sol, pela orla do rio. Preparar um lanche. Passar mais um café. Lavar a louça. Acender um cigarro. Estudar. Preparar o jantar. Reduzir o consumo de carne. Verificar as mensagens. Arrumar a cama. Ouvir música. (tu gosta da carreira solo do thom?) Adormecer. Repetir. Um regime de isolamento autoimposto e disciplinado. As poucas notícias que eu lia com atraso davam conta da disseminação do vírus. A humanidade apanhando de um agente invisível e sem bandeira, obrigada a se recolher sem qualquer outra estratégia à disposição.
Mas não era do vírus que eu me refugiava ao estabelecer a rotina de um autômato. A assepsia era emocional. Quando as pessoas começaram a extravasar suas reações numa livemania incessante, me desconectei. E desconectado foram se fundindo sonho e realidade. Porque, além das citações de livros, sonho com ambientes vazios de móveis e pessoas. (isso é sinal de psicopatia) Caminho por amplos apartamentos, edificações abandonadas, escadarias de diferentes formatos me conduzem a outros andares e cômodos desabitados, portas me introduzem a espaços distintos, vez ou outra na companhia dos meus cães. Às vezes faz sol no quintal de uma casa, na maioria é noite úmida de verão numa metrópole pouco iluminada. No fundo, a cidade foi feita para se tornar ruína. Essa é outra citação que me ocorre. Na maioria dos sonhos, caminho com familiaridade por edificações desconhecidas. Raras vezes, identifico prontamente o lugar, como há poucas noites quando sonhei com o meu próprio prédio, abandonado, saqueado e com as vidraças todas estilhaçadas. São sonhos mudos e, nas muito raras ocasiões em que sou surpreendido, sem alarme, por alguém, faltam-lhes voz. (achei curioso o fato de tu receber cartas em sonhos?) São mensagens, não cartas. (eu adoro terminar afirmações com interrogação) Tem uma diferença aí: cartas pressupõem carteiros e eles não aparecem nos meus sonhos. Não me lembro de alguém ter me contado que sonhou com um carteiro. Dias desses, ia perguntar isso para a Julia. Se ela já tinha sonhado com um carteiro. A pergunta engasgou porque logo ela me convidou para escrever. O registro num diário da pandemia. Engoli a pergunta e a recusa. Vou tentar. Se tivesse uma filha, se chamaria Julia. Engoli também esse comentário. (ah, uma pergunta importante: assistiu anima?)
Há dois meses, sonhei que estava no parque. Reconheci o lugar. Por isso o artigo definido. Céu limpo e frio, típico das manhãs de inverno em que o sol parece mais um reflexo. As duas cadelas disputavam galhos secos. O terceiro, mais velho, à sombra de uma árvore, contemplava distraído e sereno o mundo, um tanto aborrecido com a agitação das duas. Ela se aproximou e se sentou ao meu lado. (tu é paulista?) Num breve romance de sonho, partilhamos informações sobre nossas vidas. Eu sei, é título de um livro. (achei uma bela coincidência) Na despedida, trocamos os nomes. Anotei uma mensagem: Hoje conheci a B. O sonho se repetiu. Outras manhãs. Nos reencontramos sem combinação. E, por vezes, nos perdemos. (ontem de manhã, por sinal, procuramos vocês) O diálogo é retomado no exato ponto interrompido. (ba eu acho sagita meio complicado) Seis planetas em sagitário. (mas na vdd tu não parece ser assim) Sentamos, cada encontro, mais próximos. Me ocorre que tudo isso acontece à moda antiga. (estou lendo Gabo) Cem anos? (amor nos tempos do cólera) Quantos anos eles demoram pra ficar juntos mesmo? (são décadas) Deduzo que não estamos indo tão devagar assim. (tentando tirar uma música no uke) E ela me envia um arquivo de áudio. Isso me parece romântico e antiquado. Em plena distopia pandêmica, somos fora de moda. Quero encaminhar para alguém, mas os sonhos são desocupados. Exceto, agora, por ela. (faz meses que tô com insônia) Lembro-me daquele livro em que uma mulher deixa de dormir. Ela cita um trecho de outro Muramaki Murakami. Hakuna Matata. Sempre erro a grafia. (o incolor tsukuru) As manhãs se repetem, se confundem. (eu talvez possa ter te mencionado pra minha terapeuta) Sorrio, mudo. Compartilhamos nomes de filhos. Sonhamos dentro dos sonhos. Tipo Inception. Martina, Artur. E Julia. O mundo parece encolher. (eu preferiria o almoço contigo) E então almoçamos. E nos beijamos, enquanto os cães brincam embaixo da mesa. (foi meu jeitinho de dizer que quero ir na tua casa logo) No sonho seguinte, abro a porta e a deixo entrar. Nos lábios, dois mundos colidem. Sonho e realidade se fundem.
Já não consigo distinguir os dias da semana. Parece domingo, mas todos os dias se parecem domingo. Se for, explica a cidade assim adormecida. Fugir do mundo só tem sentido num mundo imperfeito. Me ocorre essa citação. Enquanto penso nisso, sinto a presença de mais alguém na cama. O cômodo todo vazio, uma manhã confortavelmente muda. No rodapé do diário, anoto o nome da destinatária. Lanço um último olhar para a cidade, satisfeita por se ver livre de seus habitantes e poder ser, enfim, apenas concreto. É outra citação. E já não sei se sonho.
25.7.20
Dia 130: por Marcela Donini
Hoje, 25 de julho, faz 132 dias que eu não olho mais o app de previsão do tempo. Eu sei o que vem no dia seguinte: acordar, tomar café, fazer a mamadeira, brincar, requentar o café, brincar, cozinhar, almoçar, trabalhar e trocar de turno com meu marido, que, à tarde, passa a ser o responsável por corridas fantásticas e criação de cidades imaginárias. Tudo dentro de casa.
"Do que a gente pode brincar agora? Tem uma ideia nova?"
A chegada do Santiago, três anos atrás, me ensinou muito sobre gestão do tempo. Uma criança é uma âncora no presente. Não há nada mais urgente do que barriga vazia ou fralda suja. Talvez a falta de atenção.
Somos dois adultos trabalhando em um apartamento onde o escritório é na sala, conjugada com a cozinha, e onde fica a única TV da casa. Santiago, antes na escolinha, nunca passou tanto tempo conosco, mas também nunca passou tanto tempo com um de nós presente mas dedicado a outra atividade que não suas demandas.
"Quantas horas é sete, zero, dois?"
Um estudo de 2017 da Universidade da Califórnia, em Irvine (EUA), diz que levamos 23 minutos para voltar nossa atenção a uma atividade interrompida por fatores externos.
"Mãe, onde tá o Foléti?"
23 minutos.
"Olha, mãe, achamos o parafuso verde que faltava pra montar a escavadeira!"
Mais 23 minutos.
"Mãe, você viu que o Rider chamou só o Rubble e o Chase pra essa missão?"
E lá se foi mais de uma hora do expediente, normalmente compensada à noite, depois que Santiago vai pra cama. Quando também temos a chance de ver um episódio de alguma série, de preferência curto para não sacrificar muito o sono.
"Hoje eu vou ficar acordado a noite toda!"
É verdade que, como tudo na vida, me acostumei a dividir a atenção entre meu filho e o trabalho durante o trabalho. Meu tempo de retorno à atividade interrompida é cada vez menor. Além disso, às vezes, uma gargalhada ou uma cafungada no cangote pós-banho no meio do expediente são pausas muito bem-vindas.
Às vezes, não.
Às vezes, há tensão. Ansiedade. O ciclo. O noticiário. Autocobrança. Estresse. Falta de paciência. Culpa.
Num desabafo dia desses, minha mãe acolheu meu sofrimento com a exaustão do combo home office + criança + pandemia + trabalhar com notícias. Mas me disse: "tu não tem que te culpar por trabalhar", conselho que eu já tinha lido num livro da Chimamanda Ngozi Adichie, mas que ganha mais força quando vem daquela que é a minha referência de maternidade. A dedicação ao meu trabalho é um valor que quero passar ao meu filho. Mas também quero ensiná-lo que há muitas outras coisas importantes na vida, como ele vem me ensinando.
"Para de mexer no celular, mamãe."
Santiago não só é uma âncora no presente mas um lembrete de que, por mais brutal que seja o coronavírus, a vida não foi suspensa como dizem por aí. Houve mudança de rota nos planos, é certo, ainda estamos fazendo ajustes.
"Mãe, larga esse celular!"
Mas a vida segue, e vai bem para nós. Ainda que nos falte poder "sair para qualquer parte", temos renda, casa, comida e até diversão e um pouquinho de arte. Nesses mais de 4 meses de isolamento, já comemoramos dois aniversários aqui em casa, o veículo onde eu trabalho cresceu e lançou novos produtos, e Santiago desfraldou e está aprendendo a ver as horas. Logo vai entender a diferença de urgência entre a pauta do dia e o parafuso perdido da escavadeira de plástico.
Vou poder, enfim, dizer para ele o que ele já me diz, em outras palavras:
"Algumas coisas podem ficar para amanhã".
Especialmente, se o amanhã for um domingo sem plantão.
24.7.20
Dia 129: por Patrícia Viale
23.7.20
Dia 128: por Rafael Balsemão
Súplica
Hoje acordei com o fantasma sentado no canto da minha cama, me olhando. Não foi a primeira vez.
Não sei precisar o exato momento em que ele se mostrou pra mim, mas acredito que tenha sido no dia 24 de março, quando, junto à última leva de colegas que ainda estava na redação, deixei o prédio do jornal em que trabalhava rumo ao home office.
É engraçado falar dele, porque nunca acreditei nessas coisas de espírito. Achava que, se um dia algo assim aparecesse, me daria um susto ou me mataria, como nos filmes de terror. Muito pelo contrário. Ele é puro silêncio. Teve um dia até que se materializou na forma do moço bonito que sumiu pouco antes da quarentena sem nem ao menos me dar tchau.
O primeiro mês em casa não foi fácil. O computador que peguei na empresa era lento demais, o que dificultava a lida diária. Fiz planos que me pareciam bem realizáveis. Ler alguns dos livros que estão na minha estante há tempos e que nunca foram sequer abertos. Zerar a caixa com todos os filmes do Hitchcock que ganhei há mais de uma década. Finalmente assistir à série Sopranos. Nada disso foi feito.
São problemas bem burgueses, eu sei, se comparados aos da maioria da população brasileira neste momento. Mas trabalhar com notícia me consumiu de uma forma que não sei explicar, o aumento do número de mortos dia a dia foi me deprimindo, deprimindo.
O expediente acabava, e eu ia para o meu quarto praticar exercícios físicos - era só o que conseguia fazer. Lá tem um espelho gigante que uso para ver se o movimento está sendo executado da forma correta. Ali o fantasma apareceu várias vezes, quieto, me observando.
Enquanto levantava peso não era tão ruim assim a presença dele. Deve ter a ver com aquela substância boa que encharca o corpo quando praticamos esporte. O brabo era quando acabava, no banho. Não sentia medo, mas desespero. Não foi uma nem duas vezes em que chorei debaixo do chuveiro, soluçando. E ele sempre lá. Imóvel. Para evitá-lo em meio à frieza dos azulejos do box, cheguei a dormir sujo algumas vezes.
Passado um mês de trabalho em casa, fui demitido. Não foi inesperado, já imaginava que em algum momento aquilo pudesse acontecer. Rolou um pouco de preocupação por conta de grana, mas logo me dei conta de que aquilo não fazia mais muito sentido pra mim. Deixar o jornal até que foi simples. Difícil foi perceber a presença cada vez mais constante do fantasma por perto.
Engraçado, porque ele nunca aparece nos meus sonhos. Tem dias que vou pra cama por volta de meia-noite, esgotado, e o espírito está sempre ali comigo. Não me deixa dormir. Esses dias vi o sol nascer com ele do meu lado. Quando surge em forma de gente, até sorri pra mim, o desgraçado. Tem dentes bonitos.
Tentei aceitá-lo, enfrentar o monstro, como indicam os terapeutas. Quem sabe entender que agora ele faz parte da minha vida trouxesse algum alívio. Depois dessa mudança de atitude, até passei uns dias mais tranquilos, mas não adianta, é impossível se acostumar.
No meio de toda a desgraça, até tenho alguns momentos de felicidade. E é a essas pequenas coisas, quando consigo me desligar do noticiário e da contagem das vítimas, que tento me agarrar para seguir adiante. Isolado em casa, emagreci e passei a me alimentar melhor. Quase não tenho bebido. Finalmente consegui entrar para o grupo de pesquisa de um professor que tanto admiro da faculdade de Letras. Rolou até um trabalho super bacana nesse meio tempo, mesmo que temporário. Aprendi a rodar com o bambolê na cintura. Tomei coragem e puxei assunto com o rapaz poeta. Ele correspondeu.
Comemoro, sim. Mas não tenho paz.
Os dias mais frios têm sido especialmente difíceis. Não gosto nem de lembrar, teve uma noite de domingo em que, enquanto lavava a louça, aquela água gelada acabando com a pele das minhas mãos, o fantasma apareceu. Não o vi. Só me dei conta de que ele estava ali - dentro de mim, ao meu lado, na pia, na minha roupa - porque senti minha respiração ofegante demais, numa ansiedade absurda.
Queria muito que o espírito fosse embora. Até cogitei propor uma troca: que o vírus viesse para substituí-lo. Mas com ele não há negociação. Amanhã vai fazer quatro meses que o negócio está comigo. Já pedi tanto para que ele vá embora. A merda é que não acredito em Deus, poderia rezar se fosse o caso. Nem isso.
Não aguento mais. Estou exausto. No meu limite.
Não sei se você gosta ou sabe ler, fantasma (ou sei lá o que seja você), mas se estiver aqui, acompanhando as palavras deste diário, por favor, vá embora.
Eu imploro.
22.7.20
Dia 127: por Antenor Savoldi Jr.
21.7.20
Dia 126: por Amanda Richter
Quando o isolamento social começou, eu achava que teria um pouco mais de tempo para ler e escrever. Estava errada. Todas as demandas aumentaram, a maioria ligada a leituras. Da graduação, as do tipo egoístas: provavelmente, terás que ler mais de uma vez, com atenção, para entender o que está ali.
Todos os clientes da agência, de repente, se deram conta do quanto o digital é importante e exigiram conteúdo como um urso que passou o inverno hibernando vai atrás de comida ao acordar. Foram dias vorazes.
Passei cerca de 2 meses nesse frenesi intenso de produzir conteúdo, ler materiais e participar das aulas, que pareciam infinitas. Não vou mentir: atrasei muitas coisas em boa parte das cadeiras.
Erro meu pensar que teria mais tempo durante o isolamento.
Eu queria muito adotar um cachorrinho e, finalmente, adotamos um filhote – agora que teríamos tempo de educa-lo. Mas eu não tinha previsto que o filhote demandaria tanto. Nem que eu teria que ficar com ele sozinha o tempo todo. O isolamento do Alisson acabou cedo. Apenas um mês e o trabalho já voltou, de novo exposto ao vírus todos os dias.
Acho que o pior desse isolamento é que, com o tempo tão lotado de tantas coisas, eu sinto falta de ler e escrever. Nunca foi um hábito sair de casa, adoro ler no conforto e segurança de casa.
Talvez ter morado tanto tempo em uma cidade pequena e sem criminalidade tenha me deixado mal-acostumada. Sair sem preocupações é um luxo que não se pode ter em Porto Alegre. Frequentemente, quando estou de férias, e tenho paz e tranquilidade, sinto saudades da última casa em que moramos em Ivoti: o quintal era praticamente do tamanho da casa, tinha uma árvore do tipo “mangueira” enorme, na qual meu pai prendeu um balanço feito de tábua de madeira e cordas rústicas, tinha duas ou três laranjeiras, entre as quais prendemos uma rede. É engraçado como um pedaço de terra que nem sequer é nosso possa ser tão querido na imensidão do planeta.
Sinto falta de encontrar um espaço assim em Porto Alegre, que seja pertinho, confortável e seguro. Preciso de um espaço meu para ler e escrever livremente.
A quarentena me fez pensar muito sobre isso. E a saudade de ler e escrever só cresce. O apartamento fica num bairro calmo de Porto Alegre, ouço os passarinhos cantando, os raios de sol da tarde entram pela janela, dando um toque dourado a tudo que toca. O filhote dorme aos meus pés e, no geral, há silêncio na rua, entrecortado pelo riso de uma criança de algum dos condomínios da volta. Mas ainda assim, o apartamento é pequeno, tudo está uma zona, desânimo e pressão por todos os lados. É impossível encontrar um cantinho de leitura nesse caos.
Eu gostaria muito de ter encontrado um café ou um parque para ler e escrever, como aqueles de filme. A vida pode parecer um filme às vezes, mas se fosse mesmo, eu teria que reclamar com o roteirista. Que raios de história é essa?
A quarentena em si não me incomoda. Eu gosto de estar em casa. Estou esperando ansiosamente que cheguem as férias e eu possa ler mais, e escrever mais. E gravar mais vídeos. Em meio a toda essa confusão, comecei a tocar um projeto que estava na gaveta há tempos: fazer vídeos para o YouTube e publicar. Muita ansiedade numa pessoa só. Queria me dividir em pelo menos dez “eu” pra poder fazer tudo que tenho vontade. Queria ver mais filmes também.
Esse isolamento de certa forma me fez voltar àquela menina de 12/14 anos, mais ou menos – meu auge criativo da adolescência, provavelmente. Foi uma experiência interessante. Desde aquela época eu já sabia que queria ser escritora, não sei muito bem por quê.
Ainda que não tenha conseguido mais tempo para executar os planos que tenho, a quarentena me possibilitou reerguer alguns hábitos e desejos antigos. As aulas foram grandes motivadores para alguns deles. Voltei a fotografar, comecei a gravar vídeos com assuntos que eu gostava de escrever em blogs, aprendi a editar os vídeos, voltei a desenhar – e até comecei a querer me aprofundar mais em mangás, animes e HQs. Descobri que HQs de não-ficção são extremamente interessantes.
São tantas as possibilidades para ser como uma escritora. São tantas as oportunidades e diferentes mundos que os professores nos apresentam. E quero experimentar cada uma delas ao longo da vida. Não sei muito bem como, e é assustador não ter um plano definido. Mas é sensacional assumir a identidade da profissão: eu sou uma escritora. Só levou 10 anos pra chegar aqui, e uma pandemia.
20.7.20
Dia 125: por Clara Oliveira
depois de tanto tempo, fica difícil pensar no que falar ou escrever. organizar as ideias e sentimentos não é tarefa fácil, especialmente quando se torna tarefa diária, constante, incessante. às vezes, durante o banho, me pego imaginando como seria escorrer pelas paredes como as gotas de xampu que escapam dos meus cabelos. escorrer feito água. escorrer por algum lugar, banheiro, quarto, sala, casa afora. escorrer e sair, mas em segurança. sem medo de cruzar com o vizinho que segue sem usar máscara nas áreas comuns do prédio; sem receio de encontrar o filho da vizinha, que é um amor e adora distribuir abraços, tornando mais difícil recusar o afeto gratuito e imerecido; sem o encontro com o olhar severo de quem vê como exagero os cuidados que tomo. ciente dos privilégios e possibilidades que tenho, opto por ficar em casa, usar máscara, lavar as mãos, fazer o mínimo - me importar.
por falar em se importar, tudo se tornou tão duro e ando tão à flor da pele que já não sei mais separar os aborrecimentos válidos dos desmedidos. ouço amigos dizendo que não há problema em sair, a vida precisa continuar, todos vão pegar uma hora, não é mesmo? sim. não. é complicado. a rotina nos atropela e a vida continua, sem dúvida, mas aos trancos e barrancos, do jeito que dá, afinal, ainda estamos aqui. por isso, ler o Diário tem sido reconfortante: não estou sozinha, ainda há quem também veja a gravidade disso tudo, dessa realidade paralela que nos engoliu e não pretende nos botar pra fora tão cedo. leio o Diário e penso: ufa. sinto o abraço dessa gente de muitas palavras, com suas angústias, chateações e pequenas alegrias, com seus tantos sentimentos mistos e compartilhados. sinto os abraços e desejo abraçar de volta, mas não tenho certeza se ainda sei fazer isso. tudo bem, não faz mal: abraço cada um em pensamento.
pensando em abraços, acabo de me dar conta de uma coisa curiosa: meu relato caiu hoje, num vinte de julho, data em que duas das minhas cancerianas favoritas comemoram aniversário, uma em cada ponta do país. há exatamente um ano, o dia transcorria normalmente, em mais um inverno frio, e minha noite já estava reservada pra aniversariante gaúcha, com direito a festinha, comes, bebes, música, gente aglomerada num salão relativamente pequeno, um esquentando o outro sem nem perceber direito – o de sempre. jamais poderia imaginar que, exatamente um ano depois, estaríamos fazendo comemorações virtuais, nessa modalidade cada-um-na-sua-casa, impossibilitados de dar aquele abraço forte e encher o aniversariante de beijos. que saudade dos meus amigos. que saudade do "de sempre".
(ao mesmo tempo, penso sobre o "de sempre" e o "normal", sobre até que ponto eram assim tão bons. não sei. sinto que me importo em excesso com as coisas, mas, a cada dia que passa, vejo que ainda não me importo o suficiente. talvez esse isolamento possa servir também pra repensar e criar alternativas, pra que o tal do "novo normal" seja mesmo novo, melhor.)
quando tudo isso passar, quero deixar pra trás o cansaço, os resmungos desnecessários, a melancolia que não me cabe, o medo que me atravanca. quando tudo isso passar, quero seguir fazendo o mínimo, que é me importar ao máximo. quando tudo isso passar, quero correr pros abraços, sem medo nem ansiedade. quando tudo isso passar, quando tudo isso passar, quando tudo isso passar. enquanto não passa, a gente segue do jeito que dá - gota a gota, passo a passo, com tropeços, mas sempre em frente. sigamos.
19.7.20
Dia 124: por Mariana Laranjo
permeando nosso país do sul ao agreste,
deixando-nos reclusos em meio à peste,
dificultando acesso à ciência que preste.
a dualidade política prévia ao acontecido
tomou partido em vários momentos:
mesmo que "curado" esteja um conhecido,
não são válidos os medicamentos?
a pseudociência chama muito a atenção,
sabe dizer "sim" ou "não" - sem precaução -,
faz os olhos brilharem de emoção,
dá respostas para a população.
andam numa montanha-russa minhas perspectivas:
como indivíduos, estamos retrocedendo?
seremos altruístas, pessoas mais afetivas?
ou tão rápido a dor e o pesar vamos esquecendo?
misturo, às boas, as más percepções:
há quem resista às tentações?
ou permaneceremos sem aglomerações?
a sociedade reflete sua escolha de ações...
com a drástica reclusão do início,
tomada por dúvidas assombrosas,
tudo era um grande suplício,
as respostas eram sempre pavorosas.
durante o processo, saltaram aos olhos a desigualdade -
na saúde, na doença, desde mais tenra idade -,
a violência contra a mulher na sociedade,
a necessidade de uma liderança de verdade.
isolada em meu mundo, voltei a escrever.
é rico e infinito o substrato:
Beauvoir, Atwood, quero tudo ver.
na literatura, afinal, é tudo fato.
quando voltaremos a nos permitir?
será que finalmente conseguiremos, o caos, deglutir?
não é fácil, com tantas dúvidas, coexistir.
aguardemos o agente invisível partir!
18.7.20
Dia 123: por Marta Colombo
Até aqui, o que vi e presenciei na vida foi quase insustentável, sobretudo no que se refere ao planeta, ao clima, à natureza. Uma sociedade de consumo, com pouco ou nada de vida e satisfação interior, sempre buscando "mais"; e, com isso, não encontrando o principal: que é ser feliz. Talvez seja esta a primeira vez na história, que há uma sensação de que somos uma única humanidade, que o que acontece com um pode acontecer com todos, independente de cor, raça, credo. Estamos todos inseridos nesse vírus, em quarentena, dialogando com os sentimentos. Já me desesperei e chorei muito por "ene" motivos nesse enclausuramento.
O medo desse vírus é a morte (por isso o choro e o desespero). Se o vírus me pegar, pertenço ao grupo mais vulnerável, estou próxima dos 70 anos e sei que se me contagio, a probabilidade de morrer será de 99,9%, quer dizer: tenho um por cento de chance de sobrevida, isso contando com a sorte. Então a probabilidade de morte é muito clara! Sendo assim, reflito sobre o que essa pandemia pode me ensinar. Sim, me ensinar! Porque ainda sonho, ainda aprendo. O que primeiro ela me ensina é ficar em casa, me proteger e proteger o outro; segundo, me desapegar das coisas não essenciais. Não preciso de nada, tenho muito. Olho à minha volta e me pergunto: pra quê tudo isso? Só preciso das pessoas com quem eu quero estar: filhos, familiares e amigos. Constato, também, que apesar de tanta coisa ruim, o mundo ainda tem graça: os rios, mares, céus, e montanhas seguem belos brindando à vida. Sim, há contradições no que penso e escrevo, mas há em tudo e em todos. É a coexistência de tudo e todos.
Quer a gente queira ou não, isso, de alguma forma, está nos fazendo valorizar e enxergar o que, de fato, é importante. A quem essa pandemia mais atinge primeiro e qual a chance de recuperação. Também, que somos uma grande família, o que acontece com um ser humano em Wuhan, acontece aqui e com qualquer um em todo o planeta, sem muralhas e sem paredes que possam nos separar. Todos queremos uma nova normalidade, não a de antes. Que outro normal queremos? Aquele sonho de um mundo melhor, mais fraterno: e é pra lá que queremos ir.
A gente vem ao mundo pra ganhar e perder. Quanto mais se vive mais se ganha e se perde. A coisa mais importante que se ganha é a vida, e é também a mais importante que se perde.
É tempo de repensar. A todo instante me vejo em busca de novos prefixos para revestir com novos significados as palavras e ações no desejo constante de dar voz, cor e vida àquilo que aparentemente já não tem. E, nesse vaivém de pensar, repensar e pensar de novo, transformo as impossibilidades em possibilidades. Sou alguém que caminha ao meu lado, e, esse alguém, me avisa que estou de pé, que posso andar, parar, cortar meu cabelo, aplicar injeção, refletir sobre a minha história, exercitar a memória através das ricas lembranças que trago comigo desde a longínqua infância, que tenho um baú recheado de experiências, sentimentos e vivências que me fazem única e que me distinguem dos demais seres. São valores, práticas, ações, desejos e gostos que experimentei ao longo desses anos de vida.
Em tempos de quarentena, visito esse baú com frequência e, algumas coisas, transformo em memória experienciada. É valioso me permitir reviver sensações e lembranças passadas, seja através de fotos, registros escritos, receitas e sentir que é possível ser útil e repetir esse legado. Isso acalma sobremaneira os meus dias de confinamento.
Assim vivo essa quarentena interminável. Acordo sem saber as horas, dia da semana ou do mês. Durante o dia, divido meu tempo entre leitura, exercício físico, tricô, afazeres domésticos e experiencio práticas culinárias.
Há 60 anos, portanto, com 10 anos fiz pão pela primeira vez. Sim, pão! Ninguém me ensinou, foi vontade de experimentar. Observava quem fazia pão na casa: minha mãe e irmãs mais velhas que eu. Certo dia, em casa sozinha, resolvi surpreender e arrisquei: fiz o pão _ tudo certo, mas esqueci de um ingrediente: o sal. Fiquei frustrada e nunca mais fiz, mesmo com incentivo de mamãe pra que eu continuasse a praticar.
Hoje volto a esse tempo e faço experimentações quase diárias. Faço pães, cucas, molho italiano, tortei, bolachas, crostoli, sagu, feijão e muito mais. Às vezes fica muito bom, às vezes regular e às vezes péssimo, mas continuo experienciando.
Com tantas coisas ruins desse 2020, inspecionar o passado e dele lembrar as coisas boas, me faz olhar a vida com mais carinho. E vejam o resultado desses meus experimentos: tudo o que faço compartilho com os filhos. Os filhos, às vezes, compartilham com amigos e, assim, chegaram alguns torteis para a Júlia, essa pessoa querida por quem tenho um grande afeto. A Júlia me envia mensagem, via Messenger, agradecendo e, sendo muito gentil, dizendo que estavam maravilhosos, e, também, fazendo um convite para participar desse projeto lindo. A princípio pensei: não! Como participar desse diário com tanta gente incrível fazendo parte dele? Ao mesmo tempo, não posso negar um pedido da Júlia, por se tratar de uma daquelas pessoas pelas quais tenho maior apreço, carinho e respeito. Como dizer não? Dizendo não! Assim! Seja o que Deus quiser, vou entrar nesse barco!
17.7.20
Dia 122: por Juliana Gonçalves Mota
Era meados de março de 2020 e tu, minha filha, ensaiava teus primeiros passos pela sala de casa. Tínhamos tantos planos para a nossa família naquele início de ano. Tu iria entrar para a escola e fazer teus primeiros amigos.
Seguíamos nossa rotina de todos os dias quando a vida parou subitamente. Uma enxurrada de incertezas e notícias ruins tomou conta do nosso dia-a-dia. Nossos passeios ao ar livre cessaram e não tivemos mais os almoços em família, as festinhas de aniversário, a rotina de sair para o trabalho e os abraços dos avós.
Tu não entendia o que era uma pandemia, e teu pai e eu nos aproveitamos desta condição para entrar no pequeno, mas encantador universo de um bebê de um ano e meio. Enquanto o mundo se fechava lá fora, aqui dentro de casa tu ia descobrindo um mundo fantástico de tampas de panela, potinhos coloridos e botões pelos aparelhos da casa. Teu vocabulário e formas de se expressar deram um salto impressionante. As semanas foram passando e tu passou a correr, dando voltas e voltas pela mesa de jantar, andando por baixo das cadeiras e te escondendo no armário.
Mesmo exaustos com a tua energia, decidimos transformar o isolamento em uma experiência positiva e viver a maternidade-paternidade de forma plena e fantástica contigo, algo que não estávamos conseguindo por conta das rotinas fora de casa. Instalamos a barraquinha no meio da sala e, contigo, reaprendemos a brincar, a mergulhar na imaginação e esquecer um pouco a tristeza lá fora. Tudo era cantado, dançado, no nosso musical. Às vezes de um jeito meio esquisito, desafinado, sem compasso, mas do nosso jeito de viver a pandemia. Para ti, tudo estava bom, tudo era alegre.
Mesmo com o universo tão pequeno da nossa casa, um mundo incrível de estímulos e curiosidades se abria para ti e, assim, entramos na tua onda. Mesmo com a tua alegria, contudo, o desânimo e a angústia da incerteza me abateram diversas vezes. Essa é uma das partes ruins da vida de adulto. Não há mais brincadeira, desenho na TV ou imaginação que nos encante como na infância. A tristeza vinha acompanhada das notícias ruins. O inverno chegou e não deu mais para curtir o jardim. Eu me joguei no tapete da sala e olhei para o nada, sem energia. E, então, fui surpreendida com um carinho espontâneo teu.
Em plena penumbra da pandemia, tu aprendeu a abraçar, a fazer carinho, a expressar teus sentimentos. Tu aprendeu a ficar triste pela tristeza dos teus pais e a vir consolar. Tu aprendeu o que é saudade, chamando pelos teus avós e padrinhos. Tu aprendeu a se preocupar se a pessoa do outro lado da chamada de vídeo estava bem.
Assim fomos vivendo cada dia da quarentena, em um misto de angústia e esperança. Apesar de tão pequena, tu nos mostrou que o caminho da simplicidade é de fato o mais feliz e duradouro. Quando uma pandemia nos assola e tira todo o tipo de consumismo, de parafernálias e de artifícios que usamos para trazer felicidadezinhas momentâneas no dia-a-dia, o que nos resta? Me fiz essa pergunta tantas vezes naqueles dias de isolamento... Tu, Isadora, mesmo sem entender, nos ensinou que, quando tiramos todas essas artificialidades da nossa vida, o que sobra é o mais simples e fundamental: o cuidado, seja com a nossa alimentação ou nossos sentimentos; seja com a natureza, com os nossos relacionamentos, nosso tempo livre ou com a nossa casa.
Sem ti, a pandemia teria passado em nossas vidas e nos ensinado a adotar novos hábitos, a ser mais precavidos financeiramente. Mas, contigo, a pandemia nos mostrou que olhar com mais cuidado e amor para a nossa vida é essencial.
16.7.20
15.7.20
Dia 120: por Adriana Antunes
14.7.20
Dia 119: por Renata Dal Sasso Freitas
13.7.20
12.7.20
Dia 117: por Julia Luiza Schäfer
Cento e dezoito dias. Duas mil, oitocentas e trinta e duas horas. Cento e sessenta e nove mil, novecentos e vinte minutos. Um terço do ano de 2020.
Esse é o tempo que já passou desde que o isolamento social começou.
Mas quanto tempo dura o tempo?
“Um segundo”, disse o Coelho Branco.
O tempo “não suporta ser marcado”, “ele é alguém”, disse o Chapeleiro.
Voltei ao País das Maravilhas do sonho de Alice no dia 105 desta pandemia. Um dia no País das Maravilhas é quase como todos esses dias – ainda a contar – na Pandemia. A diferença é que, por mais que pareçam parte de um sonho, os mascarados pelas ruas, as mais de 70.000 cabeças cortadas, as danças de quadrilhas televisionadas que não são de lagostas e a manipulação que não são de rosas, mas de informação, são tão reais quanto aquilo que comi no café da manhã.
“Caindo. Caindo. Caindo”. “E pensar que ontem tudo estava normal”. Foi mais ou menos assim, como o sonho de Alice, que essa Pandemia começou: em uma queda lenta e longa, quase sem fim, com tempo de especular o que aconteceria em seguida ou o quão próximos do centro da Terra estávamos chegando. Tão irreal e tão curioso. Tão esquisito. Acontece que ambas as quedas terminaram em uma toca, ou casinha, cujas aberturas são pequenas demais para conseguirmos passar. Eu, você e Alice. “Como ela [Alice] queria sair daquela sala escura e passear entre aqueles canteiros de flores esplendentes e aquelas fontes fresquinhas!” Ah, pequena Alice, como te entendo! Tanta coisa lá fora e a gente aqui dentro!
Só que acontece que, no País da Pandemia, lá fora têm ciclone. Tem nuvem de gafanhoto. Tem ministros falsos que, de tartaruga, estão a “Grifos” de distância. Tem um vírus que não é de Copas, mas que já cortou as cabeças de mais de mil. Não é toa que, tantos de nós, já nadaram nos seus próprios mares de lágrimas.
Em meio a imprevisibilidade de dias tão indistinguíveis – e tanta coisa acontecendo lá fora e aqui dentro, já mudei de tamanho diversas vezes. Não precisei de bolos, ou de cogumelos; bastaram notícias na TV, idas ao supermercado, ou artes musicais ou literárias para me deixarem ora grande, ora pequena demais para os 52 metros quadrados do apartamento em que vivo. Assim como Alice, acho “[...] bem curioso, sabe, este tipo de vida! Eu queria saber o que foi que aconteceu comigo”. No País da Pandemia, “[...] eu sei quem eu era quando acordei esta manhã. Mas acho que já mudei tantas vezes desde então...” que arrisco dizer que já não serei mais a mesma. Tenho a impressão de que eu mudei tanto que “não consigo me lembrar das coisas como antes”.
Queria era dar por mim deitada em um barranco acordando de um sono pesado e nos despertando desse sonho esquisito. Tal como aconteceu com Alice. Mas, o País da Pandemia não é sonho como o das Maravilhas. E embora ele não tenha nenhum Gato de Cheshire para nos indicar o melhor caminho a nos salvar, eu sigo acreditando na moral da Duquesa de que “oh, é o amor, é o amor que faz o mundo girar”.
Referência: CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. 2a edição. São Paulo, 2000
11.7.20
Dia 116: por Marcos Almeida Pfeifer
Para o mestre Dorival Caymmi, as canções tinham de ser buriladas, deixar que o tempo mostrasse a melhor nota, o verso mais inspirado, a canção tinha o seu próprio tempo. Pois antes da pandemia, vínhamos de um tempo social e econômico que atropelou o próprio tempo, não se tinha tempo para sentir, olhar, ouvir e perceber. O individualismo da sociedade brasileira que se reflete na política de um “governo” que se esfacela enquanto atua na violação dos direitos humanos básicos ficam mais evidentes, mas parte da população parece recobrar os sentidos da importância da solidariedade e da democracia. A sombra dos preconceitos cresce, agride, mas encontra luz no despertar dos movimentos sociais organizados e unidos pelas redes sociais. Acho que muitos ainda acreditam no amor, na diversidade e na compreensão que venham a tornar mais leve a palavra justiça.
Um tempo novo, já estamos vivendo o “novo normal”. Um tempo de trabalho, ansiedade, de repouso, de dar-se ao tempo e nada fazer. Olhar para si com mais amor, um novo significado para a nossa história de vida, lembrando dos encontros, festas, passeios, amigos, canções e famílias com um jeito diferente, uma luz e uma gratidão que são energia para seguirmos. Um tempo de rupturas e de coragem para fazê-las, para quem as precisa, um tempo para cada um viver o seu tempo, nada é absoluto. Confesso que enquanto escrevo este texto, passo por muitas transformações. Estou aprendendo a ler, a ouvir e a falar, com quase 40 anos de idade.
Queria trazer aqui, coisas que não desgastassem, mas acreditem, desgasta não termos empatia em cada dia desse tempo. Conforta saber que ao adotarmos os cuidados e fazendo o isolamento, estamos cuidando de quem amamos e de toda sociedade, do coletivo, e um amor pelo todo pode estar nascendo aí. Cada dia da pandemia é difícil e é fácil, nos desperta a energia do cuidado, a humildade de que nada sabemos, a certeza da finitude, a consciência de que estamos no maior rito da humanidade em quase 80 anos, um rito do nosso tempo, de não termos utopias nem quimeras. Estamos vivendo uma oportunidade: de colocarmos amor em cada dia que nascemos, de ouvir aquela música com um gosto que nunca tínhamos sentido, de poder sentir prazer, náusea, tristeza, empatia, felicidade. De sermos inteiros e de encontrarmos os sons da nossa música interna, que é a nossa grande companhia!
10.7.20
Dia 115: Marcelo Miranda Becker
Todo fim de semana de folga é um bálsamo. A sensação que já se fazia presente no "antigo normal" só foi reforçada pela rotina da quarentena. Trabalhando com o noticiário, eu sou apresentado diariamente a inúmeros motivos para me preocupar, me angustiar, me desesperar com os rumos desta tragédia que vem anunciando a iminência do pior a cada dia, e a cada dia descobrimos que o pior foi mais uma vez adiado, mas segue à espreita, ali adiante, inevitável.
Trabalhar com o noticiário também me expõe à percepção inconveniente dos meus privilégios em uma situação extrema, que embora afete a todos em uma escala global, escancara e aprofunda desigualdades centenárias. Quantos podem de fato se dar o luxo de manter o isolamento social? Quantos podem trabalhar de casa, esperando o pico da contaminação passar? Quantos, aliás, ainda têm um emprego? E uma casa onde se isolar? Quantos podem lavar as mãos com regularidade, com acesso à água encanada? Como esperar que a soma de esforços individuais seja suficiente para retardar o avanço da pandemia, em um Estado que insiste em se omitir, em fugir da responsabilidade de prover condições mínimas de dignidade a sua população? Um Estado cujos líderes, ao se depararem com uma crise, têm como única ambição encontrar uma forma de eximir-se de culpa. É o mantra do “essa pica não é minha” elevado a plano de governo.
Perceber-se privilegiado também é um fardo. A afirmação ridícula já carrega em si uma culpa, uma vergonha de se queixar por tão pouco. White people problems. Classe média sofre. Reclamar de boca cheia. Não importa o bordão que me acompanhe mentalmente a cada infortúnio, o efeito psicológico é o mesmo: deslegitimar o próprio sofrimento. Toda vez que me dou conta de que eu, um homem-branco-hétero-de-classe-média-assalariado, ainda me sinto vulnerável, aterrorizado com a possibilidade de ser um vetor em potencial dessa doença, a construção lógica imediatamente a seguir é desoladora. O que sobra pros outros? Que merda de mundo este em que nos enfiaram.
Desde a adolescência me identifico como ateu. O fato de não acreditar no plano divino de uma entidade superior, no entanto, não significava para mim livrar-me de todas as crenças. Costumava dizer, com frequência, que o mais próximo de fé que eu experimentava era a esperança depositada no avanço da humanidade. A imortalidade seria alcançada não no plano espiritual, e sim no impacto que causamos na vida das outras pessoas, em uma sucessão de minúsculos passos que levariam, eventualmente, a um mundo mais justo, igualitário e fraterno. A pandemia, porém, foi implacável em abalar as fundações sobre as quais ergui meu templo de otimismo.
O Brasil de 2020 é um suquinho da desesperança. A coincidência de crises política, econômica e sanitária, aliadas a uma negação histórica de chagas sociais urgentes, fazem do país um laboratório do pior cenário possível. Nenhum outro lugar do mundo tinha tanta aptidão para a normalização do absurdo. Assistimos ao número de mortos escalar passivamente, dia após dia, também porque fomos condicionados, anos a fio, a relativizar as tragédias cotidianas. Somos brindados com exemplos diários do que há de pior na humanidade, do egoísmo sobrepondo-se a qualquer senso mínimo de coletividade, em nome de “não ser feito de trouxa”, atividade que deveria ser reconhecida como o verdadeiro esporte nacional. Como ter esperanças no futuro? De onde tirar forças para encarar um novo dia desta distopia?
Eu me refugio nos fins de semana de folga. Se a realidade é acachapante, ao menos vislumbrar a iminência daquelas 48 horas mágicas de alienação dedicada ao bem-estar tem me ajudado a encontrar razões para seguir em frente. É incrível o poder restaurador de uma bolha de amor perante os horrores do mundo. Porque para cada mandatário que afronta a ciência há um abraço apertado de bom dia. Para cada cidadão de bem que se nega a fazer o mínimo para o bem coletivo, há uma videochamada para conhecer o mais novo bebê da família. Para cada incursão em um supermercado lotado que nos faz chorar de desespero pelo medo de contaminar quem a gente ama, há uma receita nova a ser testada na cozinha.
Mesmo que a humanidade dê mostras diárias de que me falhou, é no amor e naqueles que eu amo que eu encontro forças para levantar da cama. É por eles que eu acredito que, a despeito de todas as evidências apresentadas até aqui, tudo pode ser melhor. Tudo tem de ser melhor. Por eles, eu não espero nada menos que isso.
9.7.20
Dia 114: por Ângela Both Chagas
Fiquei pensando sobre o que a Bruna me disse. Não sei se daqui a alguns anos, quando passar em frente ao prédio da Avenida Cristóvão Colombo, terei a mesma sensação de felicidade por ela descrita. Em meio a esta pandemia, precisar sair de casa tem sido motivo de angústia. Máscara, cabelo preso, álcool em gel na bolsa. Chego na clínica e um segurança com 2 metros de altura diz que preciso medir a temperatura antes de entrar para o exame. Dentro da clínica, uma senhora higieniza poltronas e mesas o tempo inteiro. Tudo isso me dá medo. Não posso me contaminar. Aproximar o dedo na maquininha para retirar a senha de atendimento já é motivo de preocupação.
Para piorar, meu companheiro não pode me acompanhar em nenhum dos exames. Nem nas consultas com a obstetra. Tudo para reduzir o número de pessoas nesses ambientes. Concordo com a medida, mas gostaria que ele também pudesse ver nossa menina se mexendo, ouvir como seu coração bate acelerado. E me ajudar a cuidar para não pegar essa praga de vírus - distraída que sou, sinto-me mais segura quando Guilherme me alerta: não se encosta na parede, não coloca a mão no corrimão, passa álcool em gel de novo...
Talvez eu não tenha mesmo boas lembranças destes momentos tensos fora de casa, mas encarar esta pandemia grávida tem muitas coisas boas. E é nelas que eu tento me focar, sem antes deixar claro que tenho consciência dos meus inúmeros privilégios - moro numa casa confortável, não perdi renda, posso trabalhar de casa e ter uma alimentação saudável. Infelizmente, esta não é a realidade de boa parte das gestantes e mães neste país desigual.
Dito isso, quando começo a me preocupar com o aumento das internações em UTI em Porto Alegre, recebo fotos de mais uma almofada de crochê que minha mãe fez para o quartinho da Anita, meus sobrinhos encaminham áudio com beijos para a prima, minha avó liga emocionada depois de ver as fotos da barriga crescendo. Também me distraio separando as roupinhas doadas por tias e tios que já tiveram bebê.
Nesses momentos esqueço até da indignação com um presidente que faz propaganda de medicamento sem eficácia comprovada e me desligo do turbilhão de informações sobre o coronavírus. Eu ainda me empolgo com a preparação para o parto. Nas inúmeras leituras que faço sobre esse momento (mulheres, informação é tudo!), deparei-me com uma frase de uma doula que disse: parir hoje no Brasil é um ato de resistência. Resistimos a visões que ignoram que o nosso corpo foi preparado para isso, resistimos àqueles que afirmam que não temos força para encarar tamanha dor e focamos no poder de uma mulher que gera uma nova vida. Sentir-me empoderada física e psicologicamente para esse momento é mais um motivo de força para enfrentar tudo que acontece lá fora.
Minha menina deve chegar a este mundo louco em outubro. No começo pensava que até lá a vida teria voltado ao normal. Capaz! Mas a espera pela Anita em meio a esse turbilhão me traz esperança: quem sabe conseguimos construir um futuro com mais empatia e solidariedade. Amanhã tem exame, já vou colocar o álcool em gel na bolsa.
8.7.20
Dia 113: por Augusto Vieira Stern
A noite
Traz o tom
Cala o som
Porto Alegre
Apagou
Passem bem
E agora vem o dia pra te mostrar
Que não vale a pena
E agora vem o dia pra te mostrar
Que não vale a pena
O dia
Atrasou
O anoitecer
Porto Alegre
Desmanchou
Se calou
E agora vem o dia pra te mostrar
Que não vale a pena
E agora vem o dia pra te mostrar
Que não vale a pena
7.7.20
Dia 112: por Douglas Ceconello
Somos privilegiados, essa é uma certeza. Estamos trabalhando em casa, protegidos. E aproveitamos esse momento em que a Ana se desenvolve e está totalmente em chamas. Nada detém essa guria: estamos exaustos e, ao mesmo tempo, maravilhados. Os dias dela são cheios de atividades, espontâneas ou enviadas pela escolinha. Tenho feito um esforço extremo separar uma coisa da outra. Existe a pandemia, com seu caráter desolador, mas também uma manifestação extrema de vivacidade, que é a Ana transformando a casa em um universo particular onde sucedem eventos impressionantes, como viajar de avião sentada em um pufe que é pilotado por um cavalo com a camisa do Inter.
Talvez por uma questão de autoproteção, não usamos os termos exatos para definir o que acontece. Quando me permito, a definição que me ocorre para o momento é "aterrador". Não apenas a pandemia, mas um processo que vem de algum tempo, que enveredou de vez quando o país escolheu arremessar-se no abismo do obscurantismo e da indigência mental. Desde então, a impressão é que o "tecido social" não foi apenas comprometido: virou farelo. E eu decidi mandar bastante coisa para o lugar em que habitam as coisas desprezíveis. Primeiro, a ruptura devido à bifurcação moral; depois, o distanciamento social pela pandemia. Como no conto de Julio Cortázar, somos empurrados cada vez mais para um canto da casa. E os cômodos disponíveis vão rareando.
Há algumas semanas, respondi um questionário de uma entidade sanitária que pretendia monitorar o comportamento das pessoas em meio à pandemia. O resultado apontou que estou muito abaixo da média em termos de "bem-estar". A rotina é exaustiva, a sensação de prazer está adormecida, as garrafas estão com problema de vedação. Mas não é de hoje, esse questionário maldito (e bem formulado) talvez não tenha notado. Os últimos anos foram exigentes, os meses antes da pandemia já estavam duros. Ana andava ficando doente com frequência e nossa gata estava morrendo. No momento em que decidimos pela quarentena, Maya chegava em casa bastante debilitada após duas cirurgias no intestino. Hoje, está roliça e recuperou a sagacidade de sua tenra juventude felina. O tumor pode voltar, então evitamos o otimismo, mas o fato é que Maya vive sua primavera particular em meio à pandemia.
"Em comparação a antes da pandemia, você acredita que está como?" Mais temeroso, é certo, mas o desalento não é de hoje. Antes disso tudo, tive fortes crises de ansiedade. Então, duas semanas antes do isolamento, comecei a fazer análise. Foram apenas duas sessões no consultório. Ao que parece, um Deus "onibobalhão" fazia lobby pela manutenção das minhas neuroses. Resolvi continuar pelo Whatsapp. Como o coronavírus não respeita sequer refúgios oníricos, passei a usar máscara também nos sonhos. Para quem vive no Brasil, acabaram as metáforas, então nas sessões os assuntos são diretos demais. Meus sonhos, aliás, se passam sempre à noite, às vezes estou numa plataforma cercado de água. A única saída: esperar a água baixar. Correr para o esgoto, que seja. Com tanta apologia à morte e falta de senso coletivo, acredito que o maior desafio pós-pandemia será continuar tendo algum apreço pela sociedade como um todo. E a misantropia não é exatamente uma postura que eu gostaria de repassar à minha filha. A motivação é egoísta, mas o eco talvez seja coletivo: o futuro dela é o que me obriga a acreditar que não estamos, caros amigos, irremediavelmente fodidos.