Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

30.4.20

Dia 44: por Juliana Maffeis

Faz tempo que perdi a noção dos dias. Hoje fui levar almoço na casa da vó e ela, pela janela, pegou a sacola e me perguntou quando isso vai acabar. Não sei, vó, ninguém sabe. Ela me atirou um beijo e eu outro: até mais, até mais. Semana que vem ela completa 83 anos e não poderei abraçar minha velha. Saindo do prédio, notei uma movimentação. Buzinas, carros enfileirados, motoristas de máscaras camufladas, bandeiras verde-amarelas. Era uma carreata a favor do governo e contra o isolamento social. Como alguém ainda defende esse governo? 

Ando com a paciência zerada. Juro que não queria entrar nesse conflito. Cuspi meia dúzia de verdades na cara de um cidadão de bem e de repente já tinha cavalaria, spray de pimenta, espingarda apontada pra mim. Olha, se fosse pra me arriscar, estaria brindando o fim do mundo com meus amigos. Não aqui, não com essa galera. Tentei me defender atrás de uma camionete branca e o motorista me chamou de comunista. Vai pra casa, o polícia me disse. Era isso que eu tava querendo, seu, desde o início. O mundo tá tão louco que eu tava, em plena pandemia, no meio da rua concordando com um policial. 

Cheguei em casa tremendo. Pelo menos um pouco de emoção, ninguém me disse. Morar sozinha em tempos de pandemia potencializa o medo. Em casa é mais seguro, esse é o mantra que eu repito ao longo do dia. Uma porra de um vírus minúsculo me afasta da sociedade e me aproxima de mim de um jeito pouco saudável. De repente surge a obrigação de rastrear minha sombra. Sem folga, sem férias, sem esconderijo. Por ironia, uso máscara. A pandemia parece estar tirando algumas e devolvendo outras, descartáveis em outra medida. Justo agora que precisei enfrentar o espelho, minha boca tá coberta. Observo o mundo tão longe e eu pequeninha correndo dentro de mim. 

Quem diria que eu, toda cagada entoando que-meus-inimigos-tendo-pés-não-me-alcancem-tendo-olhos-não-me-vejam antes de sair de casa pra entregar comida pra vó, iria ignorar qualquer perigo pra bater boca com fascista? Parece mesmo que me conheço pouco: não sei sair e voltar pra casa sem alterar a rota. Só por hoje não olharei os dados, as curvas, as estatísticas, as prospecções, os números. Já não tenho força para interpretar a dança dos gráficos e seus movimentos bruscos. 

Não estou otimista, não tenho motivos pra isso. Bate uma imensa vontade de mandar tudo à merda e sentar na calçada, acender um cigarro, foda-se. Se fosse só por mim, já era. Ando tão puta com esse governo que pouco me interessa ser testemunha do futuro. Aí me vem a imagem da vó na janela perguntando quando isso vai acabar. Não sei, vó, ninguém sabe. Dá vontade de ter uma resposta melhor. 

29.4.20

Dia 43: por Joelma Terto

“Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol”

Hoje o sol não saiu. Há 44 dias, desde que comecei o isolamento voluntário, as manhãs começam com 15 minutos de banho de sol, na rede armada em um dos dois pátios do apartamento em que vivo, sozinha, na Cidade Baixa. Há 44 dias penso no quão privilegiada sou de morar nesse apartamento térreo, com pátio, no meu bairro preferido. Pensar que comecei 2020 com planos de me mudar desse apê...

Na verdade, comecei 2020 cheia de planos e projetos, como há muito não começava um ano. A decisão de mudar de casa foi das menores e com menos argumentos. “Tá na hora de ir prum lugar maior e com banheiro de porcelanato. Quem sabe trocar os pátios por uma vista bonita? Ver o movimento da rua”, divagava. Mal sabia a sorte que seria continuar aqui quando, no 15º dia de home office, fui dispensada do trabalho como editora, em uma agência de Conteúdo. Antes disso, foram as festas. Além de jornalista, sou DJ de música brasileira e as discotecagens são parte das minhas atividades remuneradas. Sem renda alguma entrando, nem dos eventos, nem da Comunicação, o aluguel barato desse apê é um presente. Ter uma pequena reserva também. Privilégios.

O mais estranho tem sido inventar uma nova rotina, que não é de férias, mas não inclui responsabilidades profissionais. São incontáveis dias preenchendo as horas com tentativa de meditação, exercício físico indoor, botando as leituras em dia, alguma Netflix, assistindo mil aulas online e entrevistas sobre qualquer coisa, web encontros com as pessoas que amo, cozinhando receitas inéditas só pra mim, lavando a louça que se multiplica como gremlins na pia e zapeando lives nos stories do Instagram. Novos hábitos gerados pela pandemia. No início, os panelaços contra esse governo genocida, às 20h, ajudavam a distrair, mas agora são mais raros. Alguns dias danço na sala. Noutros, me encolho, choro no sofá e janto paçoca.

Com tempo livre, me voluntariei a ajudar na moderação de um grupo virtual, criado por amigas, no Facebook, que conecta mulheres com dificuldades econômicas (a maioria em situação precária e sem poder trabalhar em função da quarentena imposta pelo Covid 19) e pessoas que queiram colaborar financeiramente. É bonito ver o tanto de gente disposta a dividir o que tem com quem precisa e enxergar alguma humanidade em tempos tão sombrios.

Nos dias quentes, que vão rareando à medida em que o Outono avança, o pátio onde tomo sol é o local preferido. A rede convida a ler mais um pouquinho, ouvir um podcast enquanto brinco de ver as formas das nuvens no céu ou dar um cochilo ao sabor do balanço, quase sempre embalado pelo som do trompete de um vizinho que, pelo jeito, aproveitou o confinamento pra se aprimorar no instrumento.

Não hoje. Porque hoje o dia foi todo nublado e porque preciso me concentrar em um orçamento. É a primeira possível proposta, em quase 30 dias sem trabalho. Coisa mais difícil que existe é precificar-se. Quanto vale, de fato, a minha força de trabalho? A pandemia faz a minha capacidade produtiva valer mais? Faz valer menos? Coisas que a gente pensa no meio de uma quarentena.

Há alguns dias tive a epifania: nunca fiquei tanto tempo, sem abraçar, nem tocar alguém. Mas, peraí, não é exclusividade minha! Assim como eu, milhões (!?) de pessoas, no mundo inteiro, também estão vivendo essa mesmíssima incomum situação: nunca ficaram tantos dias sem contato físico. Estão experimentando essa mesma estranheza que é sentir falta do toque. Sequer um aperto de mão. E agora, privados dos sorrisos, que se escondem atrás de máscaras de pano que contribuem para a não propagação de um vírus letal. Ainda nos restam os olhares, ufa.

Hoje são 44 dias sozinha. Sem gato, nem cachorro. Poucas plantas. Longe 3 mil quilômetros da família de sangue. Numa entressafra de amores. Questiono minhas escolhas, meus caminhos, meu auto-exílio voluntário que me trouxe, há 20 anos, a Porto Alegre. Faço um esforço pra lembrar o cheiro que tem o último pescoço que cheirei. Em vão. De palpável: a cama em que durmo, o lençol que estendo, todas as manhãs antes de tomar sol, o chão de madeira em que piso, o álcool volátil que bebo. O celular e o notebook também, tão reais. Dispositivos que se tornaram ponte. Devaneio.

Em dias nublados, como hoje, eu trocaria meus pátios por uma sacada, de onde pudesse enxergar a rua do meu bairro boêmio, sem movimento algum.

28.4.20

Dia 42: por Irka Barrios

Eu ouço o Átila Iamarino. E ouço o πrula. E, mesmo sem compreender totalmente o inglês apressado do Jacob Glanville, minha nova esperança, também o ouço. Dias atrás descobri sua conta no Instagram: @curlyjunglejake. Passei a segui-lo. Além da @ espirituosa, ele é pai de um bebê muito branco, careca e bem gordinho. Volto ao Instagram para rever as postagens. No dia 12 de abril (domingo de Páscoa), a bebê usava um laço rosa. Leio a legenda, seu nome é Seraphine. A bebê aparece brincando na grama, talvez o jardim da casa de Jacob. Ela não foca muito o olhar na câmera, o mundo inteiro ao redor clama por seu interesse. No instante fugaz em que Seraphine responde aos chamados do pai, percebo o olhar, aquele que oscila entre a inocência e o espanto, e que todos nós tivemos um dia. A placidez também é nítida. A segurança de estar num mundo que (até então) se mostra gentil. Chego na foto em que Jacob se desculpa pelo overposting da bebê. Não se desculpe, Jacob, isso é o que te traz para perto de nós. E nós, no momento, somos um número bastante grande de pessoas que estão, tal como Seraphine, inocentes e espantadas, depositando tudo o que nos resta de confiança na área em que você atua.

Procuro outras fontes sobre Jacob e percebo que ele fala um espanhol perfeito, o que me faz desconfiar e (bingo) ele tem raízes na Guatemala. Só podia ser latino, digo a mim mesma e sinto o coração pulsar mais forte. Assisto-o cruzar as ruas de uma cidade (acho que São Francisco) de skate e chegar ao seu laboratório para mais um dia de trabalho. Descubro mais, ele largou uma colocação elevada na poderosa Pfizer, cerca de dez anos atrás. Ouço vozes perguntando por que alguém faria uma idiotice dessas. A resposta faz com que meu coração bombeie mais um volume grande de sangue para o resto do corpo: idealismo. O povo que sai às ruas gritando que não existe almoço grátis jamais compreenderá o barato de Jacob. Em entrevistas ele defende vacinas e medicamentos acessíveis para toda a população mundial. Embora eu goste de pensar que eles, o povo que não acredita em almoço grátis, sejam a minoria, lamento o estrago que essa minoria causou ao meu país. Eles são barulhentos e estão entre nós.

Depois de stalkear Jacob, parto para minha segunda obsessão: analisar gráficos, projeções, tabelas, crescimentos em escala exponencial e outras palavras que nunca fizeram parte de meu vocabulário cotidiano. Acesso pelo menos duas vezes ao dia a página disponibilizada pela Secretaria da Saúde do RS. Foco num gráfico que mostra o número de contaminados ao longo do tempo. Apoio o lápis na tela: um, dois, três, vou contando os retângulos azuis que se sucedem conforme as alturas crescem. Calculo quantos dias levamos para dobrar o número de casos. Certifico-me do cálculo por duas ou três vezes. Fecho o link sabendo que vou reabri-lo em duas ou três horas. Hoje estamos dobrando a cada quinze dias o que, segundo o Átila, é muito bom. Reabro a página, esqueci de comparar o crescimento da contaminação entre os estados do sul. Não é para ser uma competição, óbvio, mas não consigo controlar a torcida para que nossa curva seja menos sinuosa que a de nossos vizinhos. É uma espécie de desforra, é como dizer “viu no que dá ouvir lunáticos como o Véio da Havan?”. Também vale para eu me gabar, nosso governador é menos irresponsável que os deles.

Todos os dias, antes de sair para o trabalho, sinto medo. A segunda sensação é a de coragem e a terceira é um excesso da autoconfiança típica das pessoas que fazem idiotices. Consegui reduzir muito, mas não há como parar, outras dores não respeitam tempos de pandemia. Também recebi uma convocação do governo. Devemos estar prontos para substituir outros profissionais da saúde afastados caso tudo dê muito errado e a epidemia avance mais que o previsto. Minha rotina de paramentação segue cuidados que beiram a paranoia. Antes de sair de casa, coloco as máscaras, uma cirúrgica e uma de pano. Ao chegar no consultório, calço os propés, corro até a torneira e lavo as mãos. Em seguida visto o jaleco e o gorro. Lavo as mãos. Ajeito os óculos e coloco a viseira de acrílico. Lavo as mãos e, por fim, calço as luvas. Não cheguei ao ponto de comprar o macacão de apicultor, mas confesso que a página ficou aberta no meu note por uns três dias. Desfazer-me das EPIs é tão trabalhoso quanto me paramentar e sempre gera um medinho. Li em algum lugar que a maioria das pessoas se contamina neste momento crítico. Ao chegar em casa, lavo todas as roupas utilizadas no dia. Minha máquina nunca trabalhou tanto.
   
Separei Guerra e paz para ler durante a quarentena. Fiz os cálculos, se eu lesse cem páginas por dia em menos de um mês eu terminava o livro inteiro. O planejamento não tem funcionado. Gasto boa parte de meu tempo livre lendo outras coisas, como fábulas. As mais antigas tinham uma moral duvidosa e eram contadas para educar crianças na base do terrorismo. Descobri que a história original de João (o do pé de feijão) não é tão virtuosa. João subiu até o castelo do gigante pela primeira vez porque tinha fome. Nas vezes seguintes, entretanto, João deixou-se contaminar pela ambição. Roubou a harpa mágica e (não contente) uma galinha que chocava ovos de ouro. João é silencioso e também está entre nós.

27.4.20

Dia 41: por Iuri Müller

Seria preciso procurar mais nas margens dos livros do que exatamente nos cadernos (no verde, de capa fosca e marcador vermelho, só há transcrições à mão de excertos alheios) para recuperar, com impreciso sucesso, os fragmentos dos dias atravessados, sobrepostos, confundidos num bloco de nuvens, embora nesta cidade não chova há meses. Tampouco será o caso de achar ali, na marginália estreita entre os versos de Ida Vitale (Poesía reunida, Tusquets, Montevidéu) ou os parágrafos concisos de Álvaro Mutis (A neve do almirante, Record, Rio de Janeiro), algo de muito revelador sobre o tempo que passa; talvez o jeito seja se inclinar nas lixeiras, no lixo seco e no cesto de papéis, já que as cascas e restos orgânicos descem diretamente para as engrenagens da rua, todas as noites.

Não está escrito em nenhum lugar, pois não escrevi e isso ninguém poderia escrever por mim, que pode ser um mau momento machucar o olho direito em tempos de reclusão forçada (mais, ainda, em um estúpido exercício autoinventado no chão quase gelado da sala de casa), ver o olho inchar, doer, e tornar proibidas mais algumas atividades, para além de todo o resto que está inacessível há umas quantas semanas. Horas sem ler, sem fixar o olhar nas telas, sem voltar a exercitar o corpo, horas para se evitar a luz, o movimento, a exaustão; pior, talvez, se o caso é de alguém que via de regra enxerga mal, confunde as cores, não distingue as letras, as fachadas e os rostos de longe (um perigo, sem dúvida) e precisa de óculos para assinar pequenos recados. Isso (a lesão no olho) foi há poucos dias, mas não saberia apontar a data; felizmente, penso, porque durou pouco, porque no outro dia, ou dois dias depois, já enxergava bem, podia voltar a me mover entre as páginas de sempre, as luzes amarelas da sala e do quarto, as minúsculas obrigações domésticas.

Sem separação entre o tempo sagrado e o tempo profano, como me escreveu um amigo por e-mail há poucos dias, se parecem os dias de semana, os sábados e os feriados, e assim não será simples estruturar as memórias desse tempo permanentemente nublado. Escolho, agora posso perceber, não me debater contra a revoada; quando escrevo, todos os dias, como hoje, não cito que estou isolado, nem que a cidade está ausente, que as fronteiras estão fechadas e que sequer posso imaginar com nitidez como devem estar os outros lugares que, para mim, seguem sendo espaços familiares. Quando escrevo, transcrevo algum parágrafo das leituras do dia ou rabisco nas margens, à esquerda ou à direita, às vezes nos rodapés, nunca no espaço superior aberto, alguma impressão sobre o que leio ou a ideia que me ocorre, avulsa, paralelamente; me restam, agora, duas canetas de ponta fina e tinta preta que servem bem para a anotação nos livros. “O brilho das madeireiras, alucinado e amarelo, como o das cúpulas das pequenas igrejas ortodoxas”, escrevo no canto inferior esquerdo da página 148 de A neve do almirante, e custo a decifrar a minha própria letra. (Junto aos poemas de Ida Vitale, por pudor ou reverência, me limito a um código lacônico: um ponto fino ao lado do poema a ser relido, dois para o que deve ser transcrito em sequência; e a orelha da página dobrada em casos excepcionais que até o momento foram seis.)

Escreveu um escritor argentino, se lembro com alguma precisão, que a crítica literária pode ser o caminho possível para se reconstruir uma biografia, de si e do outro; os rastros de leitura, as escolhas do que ler, os trechos destacados e os instantes de abandono, as relações de parentesco e de rechaço, as séries literárias e os novos mapas desenhados, as aproximações até então inusitadas entre dois ou mais textos, entre outras formas de articulação, poderiam desvelar uma vida, pois todos esses gestos deixarão inevitáveis pegadas de alguém. Rastros, impressões digitais, guardanapos esparramados, números de telefone, manchas de café e saliva num canto de página, entre variações mais ou menos criminosas. Anoto para lembrar, depois, caso se trate de recordar esses dias, de buscar não só nas abertamente legíveis páginas dos diários e dos cadernos, mas no emaranhado que se deixa apenas entrever entre páginas alheias e outras manifestações do desvio e da dispersão.

26.4.20

Dia 40: por Aimée Ayres


Porto Alegre, 26 de abril de 2020

Acordei com preguiça e sem ressaca apesar das doses de caipirinha e juropinga do jogo de ontem. A dor na garganta me deixou preocupada, mas lembrei que o ventilador passou a noite ligado.

Descobri que estava com saudade do carioquês e tive uma overdose na reunião-online-para-cantar-parabéns. Há um ano em Porto Alegre e segundo aniversário longe e sem contato – mas dessa vez tenho meus housemates. 

Com dificuldade em estudar à distância e, para diminuir os custos, tranquei quase todas as cadeiras da faculdade. Antes do modo caótico começar, estava ansiosa com a grade que havia montado, a distância só estragou. A quarentena foi adotada pela universidade no dia em que comecei o estágio novo. Lembro que perguntei ao rapaz do laboratório se ainda ia abrir em algum horário – pensei agora que isso foi ridículo.

Agora já são quarenta dias saindo só para mercado e farmácia – e duas idas ao psiquiatra que logo se tornaram sessões virtuais. Quarenta dias de “hoje vou começar a ler aquele livro” e “preciso escrever algo” e “a carne tá cara, vou comprar outra coisa” e “puta merda o tomate tá quase 9 e o alho quase 35” e “preciso fazer mais tatuagem quando isso acabar” e “preciso economizar” e “esse tesão acumulado” e “o cartão do Banrisul que não chega para eu sacar a bolsa” e “caraca! Todo mundo tá doido pra fazer tatuagem”.

Uma placa me acompanha desde que vim pro sul. Não consigo fazer metade das coisas que queria, mas comprei uma mesa para trabalhar em casa e, sentada nela, consigo ver as cores do pôr do sol por entre os prédios e o telhado feio de amianto do vizinho enquanto finalizo as tarefas do dia. Pelo menos esse gosto pelo pôr do sol ainda persiste. Que eu siga resiliente.

25.4.20

Dia 39: por Sara Albuquerque

(diário incompleto como esses dias também parecem ser)


“o coro”, “o coro na”, “o coro na janela”, o verso-zigoto em loop durante minhas delicadíssimas três horas de descanso, levantei-me com dor de cabeça, assim como nos últimos dias. Notívago, Gabriel deitara há pouco, entrou por debaixo da coberta e me enlaçou pelas costas, dessa vez eu acordei. Para fugir do limbo, basta o tropeço, o poema não me deixava dormir.


Entramos juntos em quarentena, dezessete de março, eu, Gabriel e a poesia. Desde então, só vamos até a entrada do prédio buscar tele-entrega. Nesse meio tempo, pelos cômodos, transitei entre o otimismo surrealista e o desespero romântico. Estacionei no realismo: se não sou da área da saúde, hoje, manter a distância social é um ato solidário, não é? Para além disso, são tantas as formas de contribuir sem pôr os pés na rua. Não pensei que coubesse dentro de mim tanta raiva como a que eu senti no domingo passado diante da imagem daquele aglomerado eufórico pedindo retorno à ditadura. 


spoiler


poupemos a pauta
por favor, poupemos
sobre passeata de antas não se têm pistas
sobre passeata de antas em antro de sucuris, tampouco
— animais têm instinto de sobrevivência


na passeata de ontem, Bandeira,
o bicho asséptico cuja gravata você não viu
era um homem que engole antas com voracidade


Pelos sonos truncados, fui eu quem pedi a Gabriel que, se ele também quisesse, encostasse em minha pele quando fosse deitar, seria o nosso “boa noite”, confio na memória orgânica. Não precisaria muito, o contato entre nossos pés bastaria, ambos dormimos largos e largados. Mas Gabriel, na maioria das vezes, prefere me abraçar inteira e depois comenta que geralmente relaxo um sorriso nos lábios, às vezes até sussurro, nunca lembro. Colocar-me na horizontal com outro ser humano me posiciona numa vulnerabilidade enorme (e vice-e-versa), a confiança é recíproca. Permanecemos grudados por pouco tempo, há coluna que aguente? São duas discopatias na dorsal e se meus ossos se comprimem, o sintoma é o grito. Mas o tato, ainda que curto, é suficiente para saber que estamos ali compartilhando dos efeitos da oxitocina. Por mais de um ano, a ponte aérea nos encurtou a distância dos encontros olhos-nos-olhos, eu, em Maceió; ele, já aqui em porto bonito. Fazia apenas dois meses da mudança para cá quando redescobri o significado de pandemia.

Subi a tela do computador, está ligado há dias.


o coro na
janela de quem cabelos brancos
o coro na
janela de quem crônicas
o coro na
janela de quem sem leito
o coro na
janela de quem paga as contas
o coro na
janela de quem veste o jaleco
o coro na
janela de quem reveste a cova
o coro na
janela de quem conta os corpos
o coro na
janela de quem carrega os dados
                                    as compras
                                       os dardos
                                           os lixos
                                 — ACABOU


Repetiu-se até virar hashtag, #sepuderfiqueemcasa

Pelos técnicos da saúde, fomos incentivados a neutralizar o superego (os que o têm): se quiserem nos ajudar no enfrentamento da pandemia, acomodem-se literalmente no privilégio de, um, ter um lugar confortável para morar; e, dois, continuar trabalhando na segurança da sua casa sem prejuízo de nenhuma das partes envolvidas, apenas processo de readaptação. Fazia apenas um mês da minha chegada naquela instituição, mas, por causa do ascendente em capricórnio, já tinha feito um Manual com todo o passo-a-passo das minhas atribuições, motivada pela ansiedade sim, mas mais que isso: quem passa por um esgotamento aos vinte e oito anos, lembra-se bem que outrora já esqueceu a data de aniversário, a senha do e-mail, onde estava, de repente, o branco, a despersonalização, a pressão alta, os derrames: a casca me denunciando: você está exausta — estafa, burnout, tudo a mesma coisa. Desde o início do tratamento, saio colando post its pelas paredes, quem convive comigo acha uma graça, me chamam de fofa, embora não seja fofo o motivo que me levou a escrever aqueles lembretes para mim mesma.

Foi assim que vim parar nessa cidade (onde já havia morado por dois anos num passado recente): o novo trabalho me ajudaria na recuperação também, novas metas, novos riscos, novos ambientes e uma nova eu, em busca de equilíbrio.


alinhamento:
mentes  para
lelas  lavram 
melhor as m
ãos depois q
ue o trem tor
na a correr a
pesar de nós
humanos sob
re os tri lh os

“acórdão haitiano” seria o título do poema. Pensei em fazer café, mas o auto-recadinho na geladeira dizia: “evite café, troque por chá”, ao lado, Gabriel acrescentou Porchat. Fiz de alecrim: minha amiga Taiane jura que alecrim é o que há nesse mundo, tenho pensado tanto nela, e também na Harini, no Jorjão, no Mateus, no Gui, na Fátima, nas Gabis, no Ravi, na Fabi, no Davi, na Júlia, na Moema, na Stefanie, na Andrezza, na Cacá, na Lisley, na Fernanda, na Diva, na Mari, no Bakker, no Gentil, no Buga, no Sérgio, no Magno, no Nilton, no Lucas, no Richard, na María Elena, no Fred, na Ângela, no Pietro, são tantas as saudades, às vezes, dou um jeito de fazê-los saber o quanto os amo e gostaria de dividir com eles aquela xícara quentinha (ou uma boa dose de catuaba, não dispenso), apesar de hoje, especificamente, estar calor.

O caos na televisão.


    desmascarado
    o gado expõe o couro
    na varanda em círculos
    a corte congestionada cumpre a etiqueta
    álcool-gel no cu
    o coro
    na rua na chuva na fazenda
    ou numa casinha de sapê
    — EM 2022 RETICÊNCIAS


A jornalista diz que tem um sol para cada pessoa neste sábado, na maior parte do estado gaúcho, mas os moradores devem ficar em casa para conter a disseminação do vírus. Pela janela, a avenida se deita esparramada, sessenta quilômetros, o limite máximo, consigo ler a tinta branca da sinalização agora que o asfalto tem pouca movimentação de carros, mesmo daqui do décimo terceiro andar.

Alguns vizinhos passeiam com seus cachorros, fiquem em casa — a moça da propaganda reforça; um senhor monta uma churrasqueira na pracinha, fiquem em casa, todo mundo tem dito, só abrir as redes sociais.


(Estou com medo, sim, no fundo, estou apavorada, mas, ao me narrar a história de que o isolamento não precisa ser uma prisão da subjetividade, mas sim bom senso e generosidade consigo e com o outro, que o foco é reduzir o número de mortes, me quero longe de ser uma bomba-relógio pro mundo, é assim que me convenço a ficar um tico melhor, o realismo azul clarinho)


Na reunião do trabalho, meu chefe foi assertivo: “o que tu ainda faz aqui, guria?”, o D.O.U. me obrigava a voltar para casa — o suprassumo do privilégio social — e se, numa democracia, o Diário Oficial da União manda, a servidora pública obedece. Até ontem, vinte e quatro de abril, os atos ali publicados tinham pressuposto de legitimidade. Até ontem, pelo menos, quando o circo pegou fogo e o palhaço deu sinal, acuda, acuda, acuda a bandeira nacional.


a.tu.a.ção

um sete
com firma
— nódoa


Do dia pra noite, passei de novata para grupo de risco, mais um para a anamnese, mesmo que depois tenha ficado evidente que nenhum de nós está livre de impacto, frise-se “Nenhum de Nós”, além de ser a banda porto-alegrense que nos lembra: o tolo teme a noite e como a noite vai temer o fogo, significa que ninguém está fora do alvo, inclusive atletas ou “atletas”. Corpo é labirinto sui generis.


(decidi não fazer faxina hoje, talvez amanhã eu não faça também)


cantemos

Morei numa Casa
muito engraçada
não tinha plano mas tinha vaga
ninguém podia falar nada não
porque o dono tinha um tresoitão
e quatro filhos no videogame
que de bobeira divulgam fake
ninguém podia sequer tossir
— humildemente se reprimir
mas era feita por convicção
na rua dos brocos
verde-amarelos

24.4.20

Dia 38: por Fernanda Bastos

Você acorda e não tem motivo para estar satisfeita. Não é o coronavírus.

O céu de ontem não se replicou como prometido e a tonalidade é blues.

No grupo acusam as jornalistas de especulação. Lembro que é o ofício. 

Continuo no trabalho e o cômodo cresce para dentro. A internet é instável.

No final da manhã, o juiz que quer salvar o país pediu demissão, de novo. No final da tarde o presidente que quer salvar a família garantiu que vai restabelecer a verdade. A verdade não se restabelece desde as Cruzadas.

O que o presidente chama de traição não seria um rompimento de expectativa, que é solitária e volúvel?

A palavra do dia: lealdade.

Significado: um acordo mantido, mas ininterruptamente ameaçado. É uma dívida paga ou por pagar. É autorização para fala ou silêncio. 

23.4.20

Dia 37: por Ángela Cuartas

Sou das manhãs e no entanto estou aqui, escrevendo às 2h20. O corpo da palavra ganhou massa suficiente para tirar meus olhos da tela do celular e me puxar da cama pela ação da graça ou da gravidade. Dizem que piscianos tendem a se dissociar nos momentos de conflito. Tenho lua e mercúrio em peixes, porém tenho o sol e o ascendente em áries. Dissociação é comigo. Então medito. Todo dia, às 8h e às 22h. Meu lado capricorniano veio me salvar da insanidade nessa quarentena. Roberto guia a meditação da sua casa na Colômbia pelo zoom e convida a gente a deixar que a atenção desça pelo corpo todo, como se obedecesse à força da gravidade. A gravidade é a medicina da Terra, lembro e concordo, mais uma vez. Essa semana me peguei repensando isso, não discordando da ideia, mas do raciocínio que levou a pessoa a tirar essa conclusão. Mesmo assim concordo, e me lembro de Louis C. K. dizendo that’s being a person, quando fala da nossa compulsão pelo celular. Ele relata o dia em que estava dirigindo e, sem nenhum aviso, um lamento vindo da música que tocava na rádio o fez entrar em contato com uma dor profunda, mas vazia de conteúdo.  Começou a chorar e teve que encostar o carro para simplesmente ficar assim, quieto, sentindo o que sentia, “chorando como uma criança”. Obedecendo à lei da gravidade, acrescento eu. Isso é ser uma pessoa. Mas já estou racionalizando a ação de meditar, preciso voltar a atenção ao corpo. Sinto a dureza do ombro direito, essa sempre está aí, é a sensação mais fácil de identificar e me lembra o meu pai, que sempre colocava a mão no meu ombro e isso quase sempre se sentia como um peso, mas às vezes como o carinho que pretendia ser. Meu pai, ainda bem que não viveu este momento, no final da vida ele também morava sozinho. Saudades do meu pai.

O que mais eu sinto? Sinto as plantas dos pés em contato com o chão frio e penso em como eles têm me levado em lugares. Saudades da natureza. Essa semana descobri uma paineira no novo condomínio. Dá para vê-la da minha janela, mas não sabia que estava dentro do condomínio. Está escondida atrás de um prédio abandonado, florida e com muitos espinhos. Assim que cheguei em Porto Alegre, dois anos atrás, o que mais me chamou a atenção foram as paineiras. Agradeci por elas, agradeço ainda, da minha janela. O que mais eu sinto? Sinto um buraco no peito, às vezes ele se expande, às vezes vira um buraquinho, outras esquenta ou congela, às vezes dói e outros dias me suga. Hoje ele está na média, mas está ali, posso senti-lo e, se eu escavar, vou achar lutos inconclusos. Lutos por diversas mortes, de pessoas próximas ou distantes, da infância até hoje. Hoje são muitos lutos para poucos corpos dispostos a sentir o que precisa ser sentido. Quando eu era criança tinha muita morte na minha cidade, no meu país. Quando era adolescente, também. E adulta, também. E também teve épocas de confinamento, porque a morte podia estar na próxima esquina, não na forma de um vírus, mas na forma de um carro-bomba. Um carro aleatório podia explodir e matar todo mundo que estivesse por perto a qualquer momento. Não, não pode sair com suas amigas. Porque não, porque pode morrer. E todos esses mortos? Todos esses que apodreceram sequestrados na montanha sem saber nada das suas famílias ou suas famílias deles? Todos esses que foram assassinados no sítio e do sítio do presidente do país? Do sítio, do condomínio, tanto faz, é a mesma história, contada em tempos, cenários e línguas ligeiramente diferentes. Todos esses jovens que foram assassinados nas favelas pela polícia? Favelas ou vilas? Tem favelas na Colômbia? Como se chamam lá? Lá se chamam comunas, em alguns lugares. Em outros não têm nome, como não têm direito a nome seus habitantes, como não têm direito a nome os habitantes das favelas aqui. E Marielle, que excepcionalmente tem direito a nome? Quem mandou matar Marielle? E quem mandou matar as centenas e milhares de lideranças sociais, indígenas e ambientais da Colômbia e da América Latina? E por quê? E esses lutos? Quando e como vamos vivê-los?  Estamos vivendo guerras distintas? O presidente (a sociedade) negacionista do conflito e o presidente (a sociedade) negacionista do vírus e da ciência não são a mesma coisa? Não são formas diferentes da mesma guerra? Divaguei de novo. O que mais eu sinto?

Sinto a barriga, ah, como eu sinto a barriga. O que eu sinto na barriga? Sinto como se meu intestino fosse uma cobra no zoológico, presa num aquário com pedras e troncos falsos e uma luz artificial castigando o dia inteiro. O que acalmaria a cobra seria um abraço. Repasso alguns dos abraços que dei antes de começar a quarentena. Um deles foi à Tai, foi um abraço especialmente forte, completo. Lembro que senti os seus ossos e quase o corpo todo, até a bochecha. Senti que por uns segundos formamos uma unidade, como se pressentíssemos que seria o último em muito tempo. E então me lembro do último abraço que dei na minha mãe, porque teve a mesma qualidade, o mesmo nível de fusão, no aeroporto de Cali. Não costumo abraçar minha mãe, por isso as despedidas e encontros são momentos de abraços intensos que me levam à infância, ao colo, durante poucos segundos. Revejo na minha mente o mapa hidrográfico da América do Sul e me espanta a facilidade com que acreditamos na materialidade das fronteiras. Só que agora as fronteias são mais reais do que nunca. Um psicopata comanda o Brasil e repetir isso já parece vazio, só que não é: a sua forma cruel de conduzir a crise me deixa ainda mais vulnerável no exílio, não sei quando possa voltar à Colômbia, minha mãe está com setenta anos, tem uma infecção nos olhos, precisa ir à emergência, e eu assisto a tudo numa telinha por onde minhas irmãs enviam receitas, minhas amigas stickers, meu professor livros, meu amigo músicas, outros fazem lives e muita gente não tem internet em casa para suportar tanta dissociação coletiva.  De novo fugi do corpo.

A cobra. O que a cobra representa, em muitos contextos, é medo. Em seu avesso, amor, sexualidade, vida. Sinto medo de perder minha mãe, medo de não conseguir fazer o que precisa ser feito, medo da solidão. Tenho muito medo da solidão. E me lembro do pensamento de Pascal que o doctor Calle me mostrou alguns anos atrás, como se estivesse me preparando para este momento. He descubierto que toda la desdicha de los hombres proviene de una sola cosa: no saber quedarse quietos, en su cuarto. Ficar quieta no meu quarto significa sentir o medo da morte que conheci bem em outras épocas da vida e guardei numa caixinha dentro daquele buraco; sentir a acumulação das mortes e da dor de todos os mortos apenas chorados pelas suas mães ou sem ter sequer esse direito, por ter sido eliminados, anulados em osso e nome, por ordem de um capitão, muito antes dos tempos do corona. Mortes e dores e lutos sobrepostos, não reconhecidos, não assumidos, nem sentidos, nem concluídos. Talvez o vírus nos obrigue a assumir nossa infância, que para muitos é a época da descoberta da morte, e é quando aprendemos a oscilar entre o peso e a leveza. Louis C.K. não chorou como uma criança, chorou como um ser humano. E como um ser humano também recuperou a paz depois do choro, e pôde se encher de ar e sentir a vida pulsando em seu corpo de novo. Da mão de Clarice Lispector, rezo: meu Deus, me dê coragem. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.

22.4.20

Dia 36: por Marcela Panke

Meu despertador tem sido o meu filho Nícolas, de quatro anos: "mamãe, vâmo pá sala?". Depois do café, ele me convida para brincar. Não precisa de muito. Bastam os bonecos de papel que desenhamos juntos para arrancar gargalhadas gostosas dele. Nic não parece sentir muita falta da vida de antes do confinamento. Tem a mãe e o pai por perto, os seus brinquedos e a sua imaginação fértil. Às vezes ele pergunta algo como "quando o coronavírus morrer, a gente pode viajar de novo, mãe?". De vez em quando, diz que tem saudades dos amigos da escola. Principalmente nos dias em que estou mais introspectiva e menos participativa nas brincadeiras. Aí ele sente.

Tem dias que penso que eu piraria sem ele. Meu filho enche os meus dias de afeto e de esperança. Quando os seus olhinhos brilhantes me encaram, pedindo um beijo, tudo o que parecia assustador lá fora fica do tamanho de um grão de feijão. Só que tem dias que são mais difíceis, e aí eu fico com pena dele, que não merecia me ter assim. "Cadê o sorriso, mamãe?", pergunta, e eu tento fingir alegria, mas não engano: "Mamãe, você tá triste". Ao mesmo tempo, não quero enganá-lo, porque a vida é assim, a gente nem sempre está bem. Ainda mais no meio de um furacão como o que estamos vivendo, que vai devastando tudo, derrubando nossas certezas e nos lembrando que a mudança e a morte talvez sejam as únicas que podemos ter.

Faz mais de 30 dias que estamos em casa. Levar o lixo lá fora e sentir o sol no rosto é uma das maiores emoções dos nossos dias. Quer dizer... isso é para mim. Para o Nícolas, nossos dias são incríveis! Corremos por vales encantados e encontramos vilões que combatemos e derrotamos em equipe, saltamos até o céu pulando na cama e voamos sobre florestas cheias de animais coloridos. Quando inicio minha rotina de trabalho em casa, o papai, que sai para trabalhar bem cedo, já está de volta e assume a diversão. Da sala, enquanto trabalho, me delicio com as gargalhadas e gritinhos que vêm do quarto.

Enquanto eles riem, eu mergulho no universo da notícia, que é com o que eu trabalho. Nunca lidei com tantos números, muito menos números tão indigestos. São centenas e milhares de mortos por coronavírus a cada 24 horas em diversos países. A pandemia se alastra em uma velocidade maior do que eu consigo digerir. Não bastasse isso, aqueles que, como eu, trabalham com a informação, recebem ataques daqueles que acham que tudo não passa de uma invenção, de uma conspiração. Todos os dias, por oito horas, eu visto a minha armadura e sigo em frente, tentando não chorar pelas famílias que perderam seus entes queridos e sequer poderão se despedir em um funeral digno, tentando não desistir do brasileiro e tentando não me abalar pelas agressões.

Encerro a minha jornada à meia noite, quando vou para o nosso quarto e encontro o meu anjo repousando ao lado do pai na nossa cama. Me aconchego no seu pescocinho perfumado, buscando o alívio da batalha diária. Mesmo já dormindo, todas as noites ele pega a minha mão, enrola os dedinhos nos meus, dá um suspiro demorado e finalmente cai num sono profundo, como quem diz: agora está tudo bem. Se eu pudesse, seria isto o que eu diria para ele: sim, meu filho, agora está tudo bem!

21.4.20

Dia 35: por Lê Mayer

Hoje eu acordei com medo
mas não chorei nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito sem presente,
passado ou futuro
─ trecho da música Poema.

Abro os olhos para alcançar o celular que desperta próximo da cama. Disseram ser importante manter certa rotina, então, não desativei os alarmes. O dia começa com uma
varredura no corpo. Temperatura, analiso tocando a testa com o dorso da mão, parece normal. Garganta, arranha um pouco. Deve ser pelas noites que têm sido mais frias, o outono está começando, nem sempre lembro de puxar o edredom. Nariz, sem obstruções. A cabeça dói, mas não muito, atribuo isso à redução da cafeína que comecei há alguns dias, junto com outros hábitos para ajudar num reforço à imunidade, ou à saúde geral. Tenho insistido em comidas mais saudáveis, as que ainda restam na geladeira depois da última feira. Passei a utilizar própolis nas limpezas nasais e a tomar banho de sol no chão do quarto. Ficamos esparramados, os gatos
e eu ouvindo música, no espaço entre a cama e a escrivaninha.

De manhã arrumo a cama e abro as janelas. O mundo lá fora anda emudecido, posso ouvir o barulho da chaleira. A água está pronta e começo a preparar o único café do dia. No celular, o álbum com olhos de farol de Ney Matogrosso. No ar, a música se mistura com o aroma que sai da caneca e do bule de cerâmica. No sofá, os acordes de Frejat percebem o medo e Cazuza lembra de um tempo ou perde alguma coisa. No café, o escuro é bonito e eu não reclamo abrigo. O infinito do caminho é como um abraço ingênuo, uma desculpa para um consolo.

Depois pego a garrafa de água e me posiciono no que tenho chamado de local de trabalho: uma mesa, uma cadeira, um notebook, alguns livros e blocos de anotações. Resisto o quanto posso para não desativar o modo avião do celular. Quando o faço, aviso família e amigos de que está tudo bem e justifico minha ausência: as notícias, mensagens e e-mails me deixam ansiosa demais. Também deletei do celular, pelo menos por hora, vários aplicativos. Escrever, muitas vezes alivia. Ler, nem sempre é possível. Quando percebo, estou olhando para o pássaro mordendo as frutinhas da árvore que enxergo da janela.

‘Amadurecência’ do Teatro Mágico diz: “O primeiro senso é a fuga. Bom, na verdade é o medo. Daí então, a fuga. Evoca-se uma sombra na inquietude. Uma alteridade disfarçada. Inquilina de todos os nossos riscos.” Medo. Fuga. Sombra. Riscos. No princípio, só fiz foi ignorar o medo. Abracei e dancei com a fuga. Servi uma taça de vinho depois da outra. Usei um par de drogas que tinha à disposição. Me entorpeci por completo. Volátil, a percepção do mundo modificou. Insisti no esquecimento, ainda assim, ele não me impediu de sentir a culpa. Depois disso, estagnei na leitura do capítulo ‘shadow’ de Integral Life Practice, leitura conveniente para esses dias, aliás. A dificuldade, porém, tem sido a convivência com a sombra. Tenho brigado comigo mesma. Eu, que sempre me considerei boa companhia, estou me sentindo insuportável. Mas não no sentido rabugenta. No sentido de doída mesmo. E não me sinto, de forma alguma, especial. Estou doída como todo os outros.

Faz alguns anos que ouvi a frase “quem tem a liberdade na alma se sente em casa em qualquer lugar”. Encarei como um direcionamento para me libertar do apego às coisas. Escolha de conduta, que se constrói, não se muda do dia para a noite. O lugar em que mais me sinto em casa é a minha casa. Exatamente onde tenho estado nos últimos dias. Trinta e cinco para ser precisa. Mais de oitocentas horas, mesmo descontando as quatro saídas, duas para a feira e duas para o supermercado. Neste apartamento tenho vivido desde novembro de 2011. O cheiro da tinta ainda ardia o nariz quando a cama foi entregue e eu quis dormir aqui mesmo. O lugar que tenho transformado em meu canto, com carinho. Ao mesmo tempo, não posso fazer disso o mais importante. O apartamento, as coisas, continuam a ser sempre mais do mesmo. O que muda, de verdade, é o que muda dentro da gente. Tenho pensado muito nisso. Na casa do eu. E o que tem doído é a casa que me habita nem sempre me abraçar. Por vezes, me sinto uma criança, de castigo no porão, obrigada a ver a bagunça toda lá embaixo. Nesses dias, falta o ar. O ato de unir as mãos em frente ao peito, como um gesto de honrar a si mesmo, fica ofuscado pela raiva, ou pelo vazio, que sinto queimar ali.

Dessas horas sem sair de casa, não contabilizo os momentos em que coloco luvas para levar os sacos de lixo. O contêiner fica a cerca de vinte metros da entrada do edifício. Escolho sair cedo para não encontrar o seu Luiz, zelador idoso do prédio vizinho. Nossa amizade é recheada de abraços. No dia do meu aniversário, me esperou na calçada, ele disse que queria ser o primeiro a me dar os parabéns. Assim que jogo o lixo, os cuidados da volta: álcool gel, portas, maçanetas e os chinelos que lavo no tanque e deixo secar dependurados no varal. A limpeza, que já era minuciosa, passou a ser impecável. Talvez até tenha resgatado alguns protocolos da época em que pesquisava as bactérias e gostava do odor doce e dos pigmentos coloridos. No entanto, isso foi num outro tempo.

Há dias não sei de onde encontro forças para fazer exercícios no tapete de yoga que estico no centro da sala. A liberação de endorfinas até acontece, há um relaxamento corporal. Mas faltam os abraços que se fazem casa e sobram espaços desocupados. Nessa caverna, a mente se extravia. Fica difícil controlar o choro. Debaixo do chuveiro, as lágrimas se diluem, escorrem pelo ralo. Assim como escorrem, entre os dedos, os dias e as horas.

20.4.20

Dia 34: por Rafael Lopo


Tinha uma quarentena no meio do Domingo

Tinha que levantar cedo e ajeitar a cozinha porque

Tinha que dar um jeito de almoçar porque

Não tem como ficar saindo a cada dois dias para ir no mercado porque

As ideias de combinações, pratos, vontades e paladares que surgem despretensiosas no meio de uma cabeça vazia continuam acontecendo em meio a uma pandemia mundial

Tinha Sol

Tinha o vizinho escutando música

Tinha a minha vontade de ter um som mais alto pra também ouvir música porque

Continua tendo a pulsão de combinar tudo que é música em playlists sem coerência pra dançar sozinho na sala e porque

Continua tendo a ilusão de que consumir resolve grande parte dos problemas

Tinha gente na rua porque

A gente sabe o porquê e mesmo assim continua sem conseguir explicar

Tinha o resto do Domingo porque

O tempo não é afetado pela pandemia

Tinha a sesta na rede

Tinha que receber a mesa que o patrão encarecidamente emprestou porque

Não tinha antes condição nem motivo para trabalhar em casa

Tinha o peso e a decepção pessoal de não dar conta do planejamento porque

Os defeitos ainda não foram afetados pela pandemia

Tinha a ligação virtual

Tinha que lavar de novo a louça e pensar na janta porque

O calendário já foi afetado pela pandemia

19.4.20

Dia 33: por Bernardo Bueno

Do outro lado do espelho

Nos mudamos para um sítio da família por uns dias, eu, minha esposa e meus filhos. Na manhã de páscoa, olhamos para o vale coberto de neblina à nossa frente e um pássaro branco voou silenciosamente lá adiante.

 — Olha, um drone! — exclamou meu filho.

Calma, ele não estava falando sério. Nós rimos e eu pensei como a vida ali era diferente de estar trancado num apartamento pequeno com três crianças. Pensei também que não era tão difícil assim ficar trancado num apartamento com as minhas três crianças. Mas não era como devia ser.

Como devia ser.

Lição número um: não há um “como devia ser”. Nós somos um acidente feliz num planetinha perdido no universo, um golpe de sorte no infinito, e certamente não estamos a salvo de coisas como pandemias ou escolhas ruins para presidente.

Tem dias que eu tenho certeza de que passamos para o outro lado do espelho. Só assim pra explicar como eu me sinto quando lembro de tudo que aconteceu antes de 16 de março de 2020, que foi o meu primeiro dia de distanciamento social – o dia em que as aulas na universidade passaram pra online.

Hoje já se foram 33 dias trabalhando em casa, saindo o mínimo possível, sem ir à pracinha, shopping, cinema; indo ao supermercado com medo, borrifando álcool nos botões do elevador, ouvindo o vizinho tocando sax na frente de cada prédio do condomínio, panelaço contra o Bolsonaro às 20h da terça, palmas pros profissionais da saúde na quinta, yoga no meio da sala, filha andando de patins no corredor.

Uma boa técnica para crises de ansiedade é identificar, à sua volta, cinco coisas para ver, quatro para tocar, três para escutar, dois cheiros e um sabor. Inspire por quatro segundos, segure por sete, expire por oito.

Off-topic: numa palestra sobre recursos humanos, o palestrante disse que, quando perguntam qual o seu maior defeito, as pessoas geralmente falam que é perfeccionismo. De uns tempos para cá, está na moda dizer que é ansioso. Ele disse isso como se fosse um truque barato, uma maneira de driblar uma entrevista de emprego, deu a entender que era mal visto.

Acho que agora ninguém vai duvidar se você disser que tem ataques de pânico.

Não sei se vejo isso (isso: o mundo inteiro em casa) como luto pelo mundo ou como oportunidade; me alterno entre uma paz zen estranha e um desespero existencial profundo; voltei a falar com Deus ou seja lá o que for, pensei no universo, olhei para as estrelas como há muito não conseguia fazer na cidade. Em média, acho que estou com o coronavírus umas três vezes por dia, cada vez que espirro ou me sinto meio estranho, mas tudo é estranho agora. Me sinto culpado por estar bem, com vergonha porque queria fazer mais. Acima de tudo, o que me desespera é não saber quanto tempo isso vai durar.

Eu sei que nosso modo de vida se alterou pra sempre, que o mundo não vai mais ser o mesmo, que as pessoas vão interagir de um jeito diferente, que talvez pensem melhor antes de votar. Eu não espero que as coisas sejam como eram antes, porque isso seria ingenuidade.

Eu estou cansado de ter medo, tão cansado. Onde eu estava com a cabeça quando decidi ter filhos? Seria muito mais simples se fosse só eu. Só eu, lendo e escrevendo num apartamento, trancado, num bunker, no meio do mato, com comida, livros e jogos para três anos. Mas o ser humano é esse bicho social, e a gente se ama e decide ter filhos e se torna responsável por eles e aí todo dia é um dia de preocupação. Às vezes essa preocupação tem a ver com as notas do colégio, e às vezes tem a ver com seres invisíveis.

Mas isso é num dia. No outro, estou fazendo exercício, preparando aulas, lendo, tocando, cantando, fazendo faxina, plantando feijões, revisando como calcular um diâmetro, qual é mesmo o valor de pi, como escrever o T maiúsculo em letra cursiva, assistindo à minha filha de 3 anos ouvindo a professora contar histórias pelo computador.

Marco os dias num diário. Penso na morte. Penso em música. Penso em religião. Tenho vontade de viajar. Penso em quanto não abraçar as pessoas é difícil. Penso sobre um sentido, só pra chegar à conclusão de que não há um sentido, que o tempo é um rio, que somos todos um rio e como é difícil aceitar que certas coisas simplesmente estão além do controle. Abrir mão da ilusão do controle é dolorido.

Num momento eu pensava como seria legal viver mais perto da natureza, trabalhar mais de casa. No outro eu estou cavando um buraco pra enterrar cascas de fruta e pensando que, olha só, é bem isso que eu queria, mas não é bem assim que eu tinha imaginado.

Passamos para o outro lado do espelho, eu tenho certeza, mas temos a chance de, deste lado ou do outro, dar uma boa olhada no nosso reflexo. Eu entendo por que isso pode ser assustador.

18.4.20

Dia 32: por Francisco Luz

Para quem gosta de rotina, e tinha tudo bem esquematizado para cada dia de trabalho, duro mesmo foi encarar a súbita mudança. O que era só uma possibilidade na quinta-feira, e de repente passou a ser programado para algum momento mais à frente na sexta, virou realidade na segunda seguinte. Isso foi há um mês. Pelo menos dá para inventar uma nova rotina em um mês. Mas não é a mesma coisa.

Para quem gosta de dirigir, não poder encarar a estrada todo dia não chega a ser algo ruim. É mais como um incômodo, algo que te faz falta mas tudo bem, deixar o carro parado e economizar gasolina tem lá suas vantagens. Só o que o incômodo está sempre presente. Principalmente quando tu percebe que aqueles oitenta minutos encarando a cento e dezesseis e a quatro quatro oito — quarenta e cinco minutos na ida a Porto Alegre, trinta e cinco na volta a Novo Hamburgo, quase sempre com pouco trânsito pelo privilégio de trabalhar de tarde e de noite — eram o único momento do dia em que tu não precisava pensar em mais nada. Ninguém podia te pedir nada. Era só tu, o carro, o rádio e a tentativa de driblar a barbeiragem alheia. Em casa, todo mundo sabe que pode te pedir qualquer coisa, e tu tá sempre disponível. Sempre.

Para quem gosta de ficar em casa, sem compromisso nenhum, é brutal demais ver aquele espaço em que tu nunca precisou pensar nas xaropices do expediente transformado, de repente, em escritório. Era tão bom abrir a porta e saber que, daquele momento em diante, tu não tinha obrigação profissional nenhuma. Agora, tu tem horário para sair do sofá e sentar na mesa, tirada às pressas do quarto em que servia para guardar roupa de cama. E sem aqueles quarenta e dois quilômetros que separavam os dois mundos.

Para quem estava acostumado a trabalhar em uma redação com duzentas pessoas todo dia, as horas demoram demais a passar. É muito difícil matar tempo quando não tem ninguém com quem conversar, e a distância máxima que tu caminha é da sala para a cozinha. Não leva dez segundos.

É brabo admitir, mas, para quem tinha convicção de que nunca sentiria saudades do trabalho, a coisa que mais te afeta é exatamente isso. E a perspectiva de que ainda não existe a menor previsão para retomar essa normalidade específica, em que tu só serve para fazer o que os outros mandam e perde tempo útil do que deveriam ser os melhores anos da tua vida, torna cada dia um pouquinho pior do que o seguinte.

17.4.20

Dia 31: por Patrick Bezerra da Silva

Em cômodos

Nestes tempos, coloquei um cacarejo no despertador, e o galo urbano acorda pelas nove da manhã, depois do cachorro fanho da vizinha.

Gosto de pensar que estou isolado muito antes das máscaras, das notícias e da falta de papel higiênico e álcool gel, antes mesmo de todo mundo se fechar em casa e de acabar a comida das prateleiras, do armário, da geladeira, do vizinho. Quando se parecia contar com aquela sorte calculada e uma virtude transitória.

Permanecer em casa, além do hábito, agora se faz necessário, como sair para trabalhar também já foi.

É um momento de provações, em que se podem despertar ou descobrir habilidades adormecidas ou novas, como prever a chuva apenas olhando para as nuvens; alongar as chamadas com os parentes, inventando olás e prolongando as despedidas à medida que o volume da voz vai diminuindo; e, ainda, cozinhar o dia pela receita do cardápio da semana, com pitadas de esperança cuidando para que a realidade não amargue o gosto pela vida.

Nesse período, aprendi também a valorizar mais a luz do sol. Apesar de que tenho trocado o dia pela noite, em razão da sensação de que o isolamento parece se amenizar quando todos estão silenciosos, recolhidos em seus sonhos, como uma grande reunião onírica flutuando pela madrugada. Algum vizinho também aderiu à prática, e, ao vermos ambas as janelas acesas, sei que compartilhamos, em silêncio, uma cumplicidade ansiosa, como se um dissesse vai começar, daqui a pouco, o filme às 2h, e o outro respondesse vou fazer uma pipoca, mas antes vou ao banheiro.

Então vou ao banheiro, depois de notar a falta da pipoca, sair da cozinha, ter feito baldeação no sofá e uma parada na janela.

Mercado marcado pra hoje.

Revejo mentalmente a lista, pensando nos preparativos da viagem. Máscara no rosto, cara de preocupação em face da situação, a moeda da sorte do cara ou coroa no bolso, e a ida ao mercado é o evento da semana, com direito a fila, segurança na entrada e, às vezes, até som ambiente, enquanto se troca um sorriso mascarado aqui e ali. E sorrir é um ato de resistência quando abraçar parece uma lembrança antiga, talvez um conceito abstrato a ser ensinado futuramente.

Volto pra casa, e tudo parece estar em ordem, apesar de o tempo estar meio esquisito mesmo. Às vezes, em sequências de repetição, quando surge um desconforto, como num serviço enfadonho, de novo e de novo, repetindo, sem perceber, essa repetição, e de novo, e mais uma vez.  De repente, por um prisma, me é revelado um lado diarista, limpando aqui, arrumando ali, uma música no fundo; um lado que quer sair, e outro que não pode; um lado meio por fora, esvaziado, e outro por dentro, de saco cheio; e, além de tudo, um lado cozinheiro, com o corpo cru e os dias cozidos.

Ao final disso, é de se esperar um novo começo, aprender com os erros, agarrar, com polegares opositores, a lembrança do que fomos; valorizar uma boa conversa como moeda de troca, assim mesmo; treinar os ouvidos para o amanhã, para quando dissermos coisas como lembra quando..., foi assim, foi assado, cozido, vou estar lá e não vou me atrasar, como senti saudades e como é bom te abraçar (que é quando os braços das pessoas se cruzam e as envolvem, podendo ser rápido, demorado, sem jeito, nostálgico, bom, repetido, demorado, apertado, bom).

16.4.20

Dia 30: por Kelli Lorenz

Preciso olhar a data para ver em que dia da quarentena estamos.

Hoje acordei com o alarido dos papagaios que sobrevoavam o terreno do estacionamento que fica na rua da República, em frente à janela do meu quarto. Dizem que os papagaios gritam para se localizar entre o bando. Penso que nunca entendi a sutil diferença entre o grito e o canto dessa aves.

Levantamos por volta das 9h. Preparamos o café da manhã: Ana gosta de batida de banana, enquanto eu não passo sem o meu café; coloco água no fogo, preparo o filtro sobre uma generosa caneca, adiciono duas colheres de café e, quando a água começa a ferver, derramo sobre o pó marrom, que reluz à medida que vai sendo absorvido. Seu aroma invade a cozinha e desperta os últimos sentidos que ainda restavam adormecidos. Aquecemos pães na tostadeira e comemos com manteiga.

Em seguida, Ana lava a varanda com mangueira e trata Fidel, João e Francis, nossos gatos, e Pequena, nossa cachorra, enquanto eu cuido da louça. Recolho, dobro e guardo a roupa que estava no varal. Dou uma rápida passada nas redes sociais só para ver mais do mesmo. Demoro-me pegando sol na varanda por 20, 30 minutos, enquanto termino o último capítulo do livro que andei lendo. E são recém 11h31min.

Francis me aguarda na porta do quarto enquanto me preparo para trabalhar. Ele já entendeu a nova rotina e me espera para dormir o dia todo no sofá ao meu lado enquanto trabalho. Da janela do improvisado gabinete onde instalei meu home office ouço pássaros cantando durante toda a tarde. Hoje foram os Sabiás que iniciaram a cantoria. Depois, vieram os Bem-te-vis. Parece que se organizam por espécie e vêm em bandos, livres, altos e fortes. Mais pro final da tarde os Bem-te-vis deram lugar aos Quero-queros, que fizeram coro com o panelaço que aconteceu durante o pronunciamento do presidente da república lavando as mãos com a demissão do ministro da saúde.

O fim do expediente é marcado pela presença da Pequena dando voltas ao meu redor choramingando: está na hora do passeio. Troco minhas roupas de casa pelas de sair, visto máscara, ponho a coleira na cusca, pego saquinhos plásticos, calço as alpargatas que estão do lado de fora da porta e vamos. Ela, faceira; eu, assustada. Nossos passeios consistem em desviar das poucas pessoas que estão na calçada até chegarmos a uma rua mais tranquila onde ela possa passear, soberana. Corremos um pouco, ela cheira os postes que encontra no caminho de volta. A Ana nos espera com um paninho com sabão, lava patinhas, corpo e carinha da Pequena e desinfeta o chão por onde passamos enquanto vou pro banho.

O entardecer vem acompanhado do canto das cigarras, o que me alegra ao mesmo tempo em que me deixa triste. Alegra porque é a vida, a natureza sendo cantada. Entristece porque só temos a oportunidade de ouvir o canto dos pássaros quando não há vida humana circulando, quando não há máquinas rodando. As pessoas, engaioladas; as aves, faceiras. A humanidade precisa pausar para que possamos escutar a natureza.

15.4.20

Dia 29: por Dani Langer

Sei que amanheceu porque Yoshi morde meus dedos. Primeiro, de leve. Em seguida, ao perceber que já acordei e me faço de morta, aperta os dentes com força. Empurro o gato para fora da cama, aliso os dedos doloridos, vejo a sombra voltando, agora para cima de mim. “Eu já vou levantar, calma”. Taís murmura alguma coisa, enrolada com a coberta até o queixo, respondo que não é nada, vou levantar. Ainda de dentro do sono ela pergunta “levantar pra quê?”.

Já é de tarde, o que não faz diferença pois desde que nos enfurnamos na rotina da quarentena, o tempo tem sido subvertido. Segunda-feira, dormi o dia inteiro como se estivesse dopada. Na noite anterior, tinha sentido um pouco de falta de ar e qualquer sintoma é gatilho para ansiedade. Eu sei que sou alérgica, que existe uma coisa chamada rinite, contudo o que vejo são milhares de vírus vermelhos, iguais aos da chamada da Globo, grudados nos meus pulmões. Acordei com o som do noticiário local atualizando os números da pandemia. Desejo de voltar para cama, porém me obriguei a ficar pela sala até o que antes seria “a hora de dormir”. Tento manter pequenos rituais para não enlouquecer.

Estamos, eu e o gato, no banheiro. Ele me olha de cima da pia, o rabo em pé, concentrado. “Tá com sede, Yoshi?”, os olhos azuis cada vez mais estrábicos. Dividimos a torneira, escovo os dentes, Yoshi bebe água e encharca pescoço e patas.

O que você fez da sua quarentena? Uns terão feito cursos, aprendido línguas, aperfeiçoado as habilidades em um instrumento. Alguns terão zerado as pendências de leitura, pintado as paredes da sala com a cor no ano, dado um jeito no guarda-roupa. Eu durmo, como, passo aspirador, cozinho e lavo louça. De repente, as tarefas que hoje são consideradas comezinhas e elementares voltaram à carga emocional soterrada por anos de modernidade. Fazer o próprio pão nunca mais será fazer o próprio pão.

Quando não estou assistindo qualquer porcaria na TV (ou Avenida Brasil), me deprimindo com as notícias, ou trocando figurinhas no whatsapp, procuro pelo apartamento qualquer coisa para fazer. Hoje dobrei os lençóis, li uma frase aleatória em um livro. Pode ser o aperto no plexo solar, desejar apenas a posição fetal e chorar. Tento deixar Taís em paz porque ela está em home office e passa as tardes em meio a processos administrativos. Nos dias mais difíceis não consigo, choro ao seu lado. Nos abraçamos e agradeço à vida que tenho uma pessoa a quem abraçar. Então, choro mais um pouco pois lembro das pessoas que amo e preciso manter a distância protocolar de dois metros. Choro por mim, pelos que amo. Também pelo desamparo geral que é ver o país nas mãos de um grupo que pior que horroroso é incompetente. Yoshi sobe no meu peito e se aninha sem ronronar, ele não é um gato motorizado. É quando agradeço mais uma vez por ter, além de uma mulher que me ama, um gato que me acalma.

O sol vai descendo para os lados do Guaíba, e para além das redes de proteção da janela observo o telhado do colégio mudar de cor. Uma paleta de laranjas, cobres e vermelhos até o marrom telha. Moro ao lado de uma escola e nunca acostumei com a gritaria dos alunos, os gritos ansiosos e as vezes desesperançados dos professores em meio à turba de crianças. Ainda a tortura das aulas de flauta duas vezes por semana.

Fosse o tempo de antes, diria que é noite. Agora, apenas digo que escureceu e é na falta de luz que observo as janelas fechadas há semanas. Entre as cortinas, procuro por uma sombra dos dias passados, quem sabe uma criança dizendo palavrões, quem sabe um grupo de flautistas sem nenhum talento, mas entusiasmado, tocando o tema de Titanic, revelando entres os acordes desafinados um pouco de normalidade e esperança.

14.4.20

Dia 28: por Tatieli Bertotti

O sol vai e vem enquanto passo a maior parte do meu tempo atrás das grades em frente à minha casa. Gosto da sensação do sol quente esquentando os meus pés, durante a minha profunda leitura no meu livro. Do meu lado, a minha fiel escudeira, a Chuchu. É impressionante como é idêntica ao Ajudante do Papai Noel dos Simpsons; até mesmo deitada na cama improvisada que fizemos. Para ela tanto faz se o mundo está um caos por causa de uma pandemia, o assustador número de mortos ou se um vulcão entrou em erupção na Indonésia. Tanto faz. Está aí uma calma que eu não tenho. Depois disso tudo, sou mais ansiedade do que gente.

Eu tinha os meus planos detalhadamente idealizados, as minhas aulas, os meus amigos... Quando foi a última vez que saí de casa? 19 de março? 19?! Parece que faz meses, anos! Quero poder sair! E os meus direitos de ir e vir, Coronavírus? Essa regra não se aplica a mim, mas pelo jeito, funciona com os meninos que moram aqui perto. O dia todo circulam pela rua em suas bicicletas, uniformizados com suas máscaras hospitalares; já um pouco encardidas pelo uso frequente. Não temem o perigo que é impossível de ver ao olho nu. Será que é só eu que está morrendo de medo? Vão pra casa, gurizada!

Minha irmã mais velha e eu seguimos os nossos dias na frente de casa, trabalhando. O mini mercado de bairro dos meus pais já não pode mais funcionar com os portões abertos – ordem do prefeito – e meus pais não devem nem sequer atender a nenhum cliente; agora ficam agoniados com outros afazeres. Durante esse tempo, eu e minha irmã revisamos entre turnos quem ficará trabalhando. Somos como uma vanguarda no campo de batalha.

O movimento dos clientes é escasso, o que para mim não é tão ruim: leio os meus livros, estudo, cuido as minhas plantas, faço as palavras cruzadas do jornal. Tudo para manter a minha mente ocupada; fingindo que não estou em uma quarentena. Engano que não tenho medo, que não estou preocupada. Nisso vem um cliente ou outro. Impressionante como cada um diz uma coisa em relação a pandemia: um viu na televisão que estão criando uma vacina, outros dizem que tudo é puro exagero; há também quem está procurando o precisado álcool gel. Mas para todos tenho o mesmo cuidado: lavo as minhas mãos desesperadamente. Entrego o produto e o troco, saiu em passos largos até a pia, esfrego com tanta força as minhas mãos com o sabonete (que já não suporto mais o seu perfume enjoativo de rosas) e parece que consigo sentir o vírus escorrendo pelos meus dedos até o ralo. E aí vem o alivio. Estou salva.

No fim da tarde, uma das minhas últimas clientes, a Maria. Ou como costumo chamá-la, Mariazinha, por ser uma senhora tão baixinha e delicada. Fico incrédula que uma senhora de sua idade – de chinelo e saia longa neste vento frio – esteja andando na rua. Mas com toda firmeza, ela me diz: “Eu estou protegida por aquele lá de cima”, apontando o dedo para o céu, para alguém que não precisa fugir do Coronavírus. Tento explicar os fatos, as notícias, as recomendações; tudo que está ao meu alcance. Ela segue dizendo “isso é castigo de Deus com aqueles que não o respeitam, que fazem maldades”, e prosseguiu, “Eu estou rezando! Ele me protege!”. Sabia que não havia nada que eu pudesse dizer que a faria mudar de opinião, mas, naquele instante, queria tanto que ela tivesse razão. Não sou uma pessoa religiosa, mas ela é. Por acaso, se ela dissesse que talvez esse castigo já durou o tempo suficiente, isso acabaria, não é? Se foi um castigo mesmo, estamos arrependidos! Queria que isso acabasse, que eu não precisasse mais temer esse vírus ou me preocupar com as crianças na rua. Quero ler os meus livros no D43, sentindo o sol que vem da janela do ônibus, em direção a aula. Acreditar que tudo o que planejei será possível e realizado. Pois é cansativo temer pelos meus pais e por aquele número de mortos que não para de crescer. Esses dias parecem eternos e talvez serão.

Enquanto isso, o que me resta é aguardar no lado da Chuchu. Talvez ela me passe um pouco dessa segurança dela até o fim dessa quarentena.

13.4.20

Dia 27: por Davi Koteck

Mas como abrir os olhos, se o barulho do despertador toca arrastado, em um horário que já não existe mais, numa manhã nem tão útil assim, flutuando por uma semana de dias sem nome? Mas como abrir os olhos se afinal eles já estavam abertos, antes do instrumento monocórdio ressoar pela caixa de som metálica e estourada do meu telefone, e aí eu desligar o alarme, dar dois giros na cama, voltar a dormir, mesmo que antes estivesse acordado.

Acordar. 

Tomar café da manhã. 

Ver as notícias de hoje. 

Fazer exercício físico. 

Tomar banho. 

Ler. Ler. Ler.

Escrever. Escrever. Escrever. 

Preparar o almoço orgânico. 

Ler. Escrever. 

O grande paradoxo de, pela primeira vez na vida útil, encontrar tempo, espaço e conforto para organizar uma rotina equilibrada e supostamente saudável. Isso, é claro, se você não estivesse paralisado. Se cada minuto não se tornasse o equivalente à soma de todos os minutos. Se esvaziar a cabeça não resultasse no resultado contrário do que você espera. Como se fosse possível fechar os olhos em um momento assim.


Há uma semana joguei todos os livros no chão. Pensei em organizar a biblioteca, mudar a ordem por afinidade, editora, autor e cor de capa. Joguei os livros no chão, e saí. É recente isso em mim: saber que preciso fazer algo, e não me mover. Agora, no escritório, os livros se somaram ao infinito do carpete. 


Nos dias menos vertiginosos, a Ju vem pra cá. Ela usa o escritório para atender pelo Skype. Gosto que ele seja usado, mesmo com o labirinto de títulos no piso. É bom também ver ela aqui. A casa mergulha em ternura e utilidade, de modo que, nesses momentos, não a sinto como esconderijo.

Não sei a contagem dos dias, e hoje durmo de novo com as luzes acesas, os livros por aí. 

12.4.20

Dia 26: mariam pessah

Quando começou a quarentena, bem no início ainda, lembrei da festa de Pessah. Como limpávamos naquela época! Muita gente deve de continuar a limpar ainda hoje. Limpar, garimpar até a última migalha de pão abandonar a casa. Assim me sinto nestes dias. Desde o início limpo loucamente até sentir que tiro a coro(n)a do vírus. Vou pra rua muito eventualmente. Se não fosse tal a função da limpeza, será que eu iria mais seguido? Onde começará o real Covid e onde continuará nossa neura 19?

Teve um dia que quase surtei. Clarisse tinha descido na casa da vizinha, no 1º andar. Ao voltar, continuou caminhando pela casa com os mesmos sapatos com que tinha subido e descido as escadas do prédio. Ao ver, gritei: os sapatos! Tira os sapatos! Enquanto gritava, e ela me descia que eu estava muito nervosa, passava pela minha mente um vírus invisível e ao mesmo tempo tão omnipresente. Ele podia estar ou não. Ela podia estar levando o vírus ao banheiro, ao quarto, à sala. Ou não. Como saber? Essa falta de resposta me mata. Como saber se eu mesma tive coronavírus num país que não faz o teste, exceto para quem estiver morrendo.

Dias atrás, num daqueles momentos deprê, cheio de perguntas, peguei o livro Vozes de Tchernobil. Tem horas que penso que estamos vivendo a pior época, depois, penso que o mundo já passou por tantas... Holocausto, Tchernobil, escravidão de pessoas negras, assassinato dos povos originários. Plano Cóndor. Feminicídios… Não. Definitivamente, não estamos no pior momento, estamos em mais uma volta cíclica da humanidade passando por um daqueles momentos. Só que uma coisa é ler nos livros de história, nos jornais, ouvir nossxs antepassadxs contando; outra, estar protagonizando o momento histórico. Por isso fui buscar o livro de Svetlana. Ela, já no início, fala de um signo chamado Tchernobil ainda não compreendido. Fala também do mistério. Bueno, quis dizer a ela, você não está me ajudando muito. Mas é isso. O mundo, a vida se compõe de perguntas.

Qual a compreensão desse signo que deverá um dia ser compreendido do coronavírus, assim como o Brasil ter elegido um genocida para presidente que vai tomar refri na padaria e alega que pode fazê-lo porque ele é livre, enquanto que o mundo inteiro está confinado dentro das suas casas. 

Eu passo de estar bem, até super bem, mas rapidamente posso chegar ao ponto de nada fazer sentido. Fico limpando, me mexendo. Nestes dias especialmente, devo de ter recebido a “minha festa” de Pessah e por isso passei 3 dias virando a casa, estantes, gavetas. Mas quando paro, às vezes sinto uma dor tão intensa… Essa dor foi a que me levou às Vozes de Svetlana Alexievich. Preciso entender, ouVIR o signo da nossa época.

11.4.20

Dia 25: por Gisela Rodriguez

Mudança 

Tenho vontades estranhas
Desde que chegou 
Pelo ar
Um vírus mortal, pandêmico 
Sorrateiro pelas beiradas 
Das fronteiras 
Dos corpos

Desejo muito sempre
Beber algo
Preciso desde então
Me embriagar
Somente palavras não me contêm mais

Tenho pesadelos
Idade média, nas sombras
Da perseguição
Nós sendo queimadas
Pesadelos com o holocausto
Atrás de arames farpados
De violinos que nos guiam para a morte

Lavo as mãos 
Lavo outra vez
E mais uma
Lavo novamente
Lavo
Esfrego
Machuco 

Pelas ondas virtuais vejo
Escuto
Noticias de governos
Quem são afinal esses monstros?
O que é o ecossistema para eles?
Para que matamos tantos animais
Sacrificamos nossos amores
Pelo poder
Moeda corrente
Batalhas diárias
Com armas violentas
De políticas tirânicas 
Capitalismo selvagem
Já no meu café da manhã


Mesmo cansada não consigo
Nem dormir
Nem descansar
Sinto toda a minha pele
O ritmo do coração, o sangue
Que percorre meu corpo
Ossos que me sustentam
Fico dentro de um pânico louco
Sem saída 
Sem porta 

Meu corpo e minha alma
Brigam


Saio disso um pouco
Passaram alguns dias
Dez, talvez mais


Depois me informo sobre os rios
Vejo que estão mais limpos
Abro a janela de meu quarto
O cheiro das árvores mais forte
Lascas de galhos caem 
Os pássaros estão festejando
Voam com liberdade
Aqui bem perto
A laranjeira dá frutos nessa época
E esse perfume... é do jasmim
Lançando meu imaginário
Para terras desconhecidas
De danças do ventre
De fogo noturno
Cantos xamânicos

Entro no ritmo
Aceito o mundo

Depois que terminar a quarentena
Sairei de casa sem roupas
Sem armas
Sem dinheiro
Vou cavalgar estradas sem automóveis 
E sob a luz da mãe-lua
Entrarei para o bando das guerreiras amazonas 

10.4.20

Dia 24: por Rafaella Fraga

Hoje é feriado. Mas todos os últimos dias vistos daqui, de dentro pra fora, parecem feriados. Não tem mais trânsito na Lima e Silva. Os bares da República estão fechados. Quase ninguém anda na rua.

Quando tudo isso começou, há mais de três semanas, eu estava de férias. Sem planos engenhosos, passaria uns dias em Torres, no Litoral Norte gaúcho. Ao pisar lá, a cidade emitiu um decreto fechando tudo pois um jovem de 18 anos havia voltado da Irlanda e, ignorando as recomendações para ficar em casa, foi a festas e bateu uma bola com amigos, colocando várias pessoas em risco, diga-se de passagem.

Foram 12 dias na praia, sem ir à praia. As redes sociais faziam questão de me avisar: "Quarentena não é férias", lia em dezenas de posts. Na verdade, eu estava de férias. Tinha assinado aviso de férias e tudo, privilegiada que sou por ter um emprego com carteira assinada. Mas, sim, quarentena não é férias. Não tinha como relaxar. Tinha ansiedade por voltar, mas desejava ficar. Sentia medo, angústia, insegurança. E culpa.

Abril chegou e eu voltei para minha casa, em Porto Alegre. Hoje é meu dia 10º dia de home office. Os colegas estão no ritmo há mais tempo. Eu ainda tenho muito o que aprender sobre isso. Não dá mais pra passar o dia inteiro de meia e chinelo de dedo. Pelo menos hoje coloquei brincos e passei filtro solar com cor (sabia que a luz dos eletrônicos é prejudicial?).

Percebo que não tenho estrutura para trabalhar aqui. Escolho um canto perto da janela, para pegar um pouco de sol. E perto da TV, pela necessidade de acompanhar o noticiário.

A cadeira é bonita, mas não é do tipo para passar horas a fio, sentada. A mesa, charmosa, é baixa, de modo que deixa o notebook longe demais para eu enxergar a tela e as teclas. E conforme eu me aproximo, mais dói a cervical. A conta disso vem à noite, na hora de dormir.

São oito horas sentada diante do computador lendo e ouvindo sobre coronavírus, covid-19, Sars-CoV 2. Não é porque quero, é porque preciso.

Brasil supera a marca de mil mortos.
Canoas, aqui do lado de Porto Alegre, e onde mora boa parte da minha família, tem o primeiro óbito.
Em Nova York, corpos das vítimas são enterrados em valas.
Reino Unido tem recorde diário de mortes. NOVECENTOS E OITENTA em 24 horas.
A Itália, que já foi o epicentro da doença, decide prorrogar o isolamento até maio - e começou antes de nós, embora tarde em relação a outros países.

Enquanto isso, por aqui, noto que alguns não percebem a gravidade. Ainda há um longo abril de isolamento social pela frente, e ainda assim a situação não deve se normalizar tão cedo. Segundo o Ministério da Saúde, junho e julho devem ter o pico de infecções aqui na Região Sul. E mais: o frio já está dando as caras. Acho que é só começo.

Do meu lado, no sofá, está Humberto, meu cachorro de pouco mais de um ano. Ele cochila com a cabeça acomodada na almofada, mas cada movimento que faço para servir o chimarrão, ele salta, na expectativa por um passeio. Quando percebe que é alarme falso, claramente se chateia. Em seguida, se mostra irritadiço: corre pela sala, late e cheira a porta da saída quando algum vizinho passa pelo corredor. Até ele já sente os sintomas do confinamento.

Fim da tarde, encerro o expediente. Coloco a máscara de pano e saio com ele, como faço diariamente, há 10 dias. Ele (e até eu) precisamos sair um pouco deste apartamento, penso, tentando me sentir menos culpada por sair de casa por 30 minutos.

Desta vez, vamos dar uma volta na Redenção. Embora preso na guia, ele corre, salta e interage com outros cães. Fico feliz por ele estar feliz, na rua. É um cachorro de um ano, tem energia de sobra ainda. Mas logo me entristeço observando a quantidade de gente que chega no parque. E me sinto mal de também fazer parte daquilo. Chamo o Beto de volta pra casa.

18h de uma sexta-feira. SEXTOU.

A louça do almoço ainda está na pia. O tapetinho de yoga ainda está enrolado, na área de serviço. Tem roupa pra lavar. Sapatos pra organizar. Preciso passar aspirador nessa sala.

Tanto tempo livre e eu ainda não me organizei para usá-lo. Aprende a cozinhar, se matricula em um curso online, medita, eles dizem. Difícil ser produtiva nesses tempos. Parece que quanto mais tempo eu tenho, menos sei o que fazer com ele.

Quantas vezes desejei ficar em casa. Hoje só queria poder sair. Ir tomar um café com a minha mãe. Dar uma volta com meu irmão. Encontrar as minhas amigas. Sair para jantar com meu namorado. Abraçar forte todos eles.

Pego um livro e não consigo me concentrar para ler mais de 10 páginas. Só penso no depois: qual a primeira coisa que vou fazer quando tudo isso passar? Como vamos viver depois que tudo isso passar? Quando isso vai passar? Isso vai passar?

Vai passar.