Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

3.4.20

Dia 17: por Geysiane Andrade

Acordo com o despertador, mesmo sem compromisso marcado. Me acostumei a fazer os horários para não perder as tarefas, ainda que agora tenha que fazer tudo on-line. Sempre gostei de ficar em casa. Gosto de cozinhar, sentir o cheirinho depois da limpeza, assistir a um filme comendo pipoca, curtir a família e os bichos de estimação. “A casa é o nosso canto no mundo”, disse Bachelard. Aprendi muito com ele sobre isso na minha dissertação de mestrado, na qual tratei do deslocamento do escritor por diversos espaços durante seu processo criativo, entre eles, a casa. Sempre atravessamos e somos atravessados por diversos espaços, e a casa é onde habitamos. Ela nos acolhe, nos protege, abriga nossos devaneios e nossas loucuras, nos permite aquietar as emoções, onde é permitido sonhar e imaginar. Mas quando estar em casa se torna um dever frente à pandemia de um vírus desconhecido, não é um cotidiano comum. Tenho lavado mais as mãos, mantido o distanciamento social, usado álcool gel, estou fazendo aulas, meditação e trabalhos on-line, mas está difícil ficar em casa. Ainda mais sozinha, longe da família, sem emprego e sem perspectivas.

Ligo o rádio do celular para ouvir as últimas notícias. Os idosos vão receber multas se ficarem na rua; os EUA podem ser o próximo epicentro do coronavírus. Passo o café, me sirvo de uma xícara e coloco o leite em pó. Ainda tem torrada e bolachas, mas sem geleia nem manteiga. Vendi minha geladeira. Podia fazer um bolo ou um pão de queijo quentinho, mas estou sem fogão e não tenho micro-ondas. É, a pandemia estourou justo quando eu estava reorganizando a vida e de mudança. Ainda limpava o chão sujo de tinta, os vidros da janela e já não havia quase nada no apartamento. Podia ir para a casa da minha mãe, mas minha família mora bem longe de Porto Alegre e as fronteiras terrestres foram fechadas. Assim, preciso torcer para que não fechem o restaurante da esquina, e vou ao supermercado a cada dois ou três dias (pelo menos tenho comido mais salada, frutas e legumes – tudo que dá para fazer cru ou ser cozido com a ajuda de um ebulidor, vulgo “rabo quente”). Além disso, meu chuveiro estragou, a internet parece sobrecarregada, uma lâmpada queimou e a luz cai de vez em quando (mas tá paga). Daqui a pouco preciso cancelar tudo.

É curioso pensar que um lugar onde demorei tanto para me adaptar de verdade, agora me oprime mais uma vez. Mesmo assim, gostei de ficar aqui. Há dois anos moro sozinha. Quando me mudei, foi muito estranho. O apartamento parecia um não lugar. Não sabia como me comportar naquele novo espaço, sem conversar com ninguém, com poucos recursos, numa cidade desconhecida e sem amigos. Antes mesmo de habitar a cidade, precisei habitar minha própria casa, conhecer cada canto. Mas não sentia que era o meu canto. A casa, quase vazia, dependia que eu a preenchesse com minhas lembranças, histórias e sonhos. Era preciso entender como me relacionar e como me enraizar naquele espaço diariamente, como me tornar pertencente a ele e deixar minhas pegadas. Antes estranha, a casa foi se tornando lugar de conexão, intimidade e aconchego, um grande berço. Aprendi a viver a casa. Agora, com a nova tinta, cobri meus rabiscos nas paredes, as marcas das minhas mãos e os furos dos meus quadros, deixando um novo espaço para que sejam construídas outras histórias. Finalizei um ciclo, mas está difícil cortar os laços.

Estava procurando outro lugar para ficar, enquanto resolvia todas as burocracias, mas as visitas nas imobiliárias também foram canceladas. Até que uma amiga de uma amiga tinha um quarto para alugar. Decidi ficar por lá. Agendei a mudança, enfim. Pelo menos estaria mais segura e poderia então me dedicar às aulas e aos trabalhos on-line, parar em casa. Mal sabia eu que, após tomar o meu café de hoje, antes mesmo de comer minha salada no almoço, receberia a notícia do cancelamento da minha bolsa de doutorado. E os casos do vírus aumentando em Porto Alegre e em todo o Brasil, sem previsão de normalização dos serviços, sem perspectiva de revogação das determinações da Capes. Nada. (Recalcular rota).

Decidi então vender o restante dos móveis. O moço do frete chega. Apenas um cumprimento breve, sem aperto de mãos. Ele entra em casa sem tirar os sapatos ou limpálos no tapete. Não tinha álcool gel. Pega a cama. Ao passar no corredor, ela emperra na parede. Vou ajudar e minha mão esbarra no braço suado do moço, não mantemos a distância ideal. Ele leva o restante das coisas, o apartamento, por fim, está vazio. Finalizo a limpeza, mas ainda preciso despachar algumas coisas no correio. Lá tem álcool gel e fita de isolamento, porém o valor deu mais do que o permitido no cartão de crédito por aproximação. Entrego à atendente. Ela pega. Digito a senha e pego novamente o cartão. Volto para apartamento andando (ao ar livre que é melhor) e pego o restante das coisas. Minha amiga saiu de sua quarentena para me ajudar, mantemos a distância. Olho uma última vez para a minha casa, sei que deixei boas energias para o próximo morador (e tudo limpo com água sanitária). Pegamos um Uber, as janelas abertas, o carro abarrotado de coisas. Alguns minutos e “você chegou ao seu destino”.

Depois de descarregar tudo, tiro os sapatos e vou direto para o banho. Me desinfeto, tiro as impurezas. Agora estou limpa enfim. Em tempos de isolamento social, um encontro na janela para o panelaço diário contra o presidente e sua ignorância sobre à pandemia. Faço um lanche e vou para o quarto. As costas doem. Amanhã ainda preciso devolver as chaves na imobiliária para rescindir o contrato, talvez precise ir de ônibus. Também faltaram algumas caixas para pôr no correio, e tenho que ir ao supermercado comprar comida (agora vou poder cozinhar direito). Ah, preciso ir à farmácia reforçar o álcool gel e comprar uma máscara para a viagem. Decidi voltar para a casa da minha mãe mesmo. Não sei se isso é certo, mas já não tenho certeza de nada. Só quero ficar em casa. Não tem voo direto, só com conexão, e em São Paulo. Bem, o jeito é vestir uma roupa de astronauta e rezar até lá.

Estou aprendendo muito nesse período de quarentena. A minha situação não é nada comparada a de outros que vivem em condição de pobreza, sem saneamento básico, sem água nem para lavar as mãos; ou àqueles que não podem parar suas vidas por medo de serem demitidos, porque é o único sustento que têm para suas famílias ou porque trabalham em serviços essenciais. Tudo está servindo de aprendizado para percebermos a desigualdade que ainda vivemos; é preciso aprender mais sobre as relações humanas, a importância do afeto, da troca de carinho, do toque, do amor; aprender sobre o tempo, aquele que dedicamos ao trabalho, aos que amamos e a nós mesmos; sobre a importância de ter saúde, de se cuidar e cuidar do outro; aprender como viver verdadeiramente a casa. Se puder, por favor, fique em casa. Eu estou fazendo de tudo para ficar também. Tomara que isso passe logo, porque não queria todo esse silêncio, essa distância e essa saudade agora. Hoje eu só queria um abraço e tomar uma no bar.

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