Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

6.4.20

Dia 20: por Igor Natusch

Na cidade de Kirkirut, as pessoas nunca mais saíram de suas casas.

Tudo aconteceu durante o Longo Ano Perdido, é claro. A Doença veio, e todos foram pegos de surpresa: algumas cidades estavam mais preparadas, outras menos, mas nenhuma estava realmente pronta, nenhuma tinha tudo que era necessário. Algumas não tinham casas para todos: precisaram erguer grandes edifícios em poucos dias, do chão para o céu, para que todos tivessem paredes e um teto quando a Doença chegasse. Outras cidades preferiram deixar alguns de seus filhos do lado de fora, para proteger os mais poderosos dentro das poucas casas que então existiam. Alguns lugares inventaram rebuscados ritos, outros fizeram uso de estranhas poções. Alguns usaram suas melhores rezas, torcendo para que a Doença ouvisse e fosse embora. Outras cidades, surpreendidas além de qualquer esperança, apenas sentaram em suas calçadas, as mãos no rosto, chorando de medo e impotência.

Mais cedo ou mais tarde, a Doença chegou a todas elas. Algumas viveram longos meses de horror; outras, passaram por tudo com inesperada facilidade. Todas choraram mortos, de qualquer forma. Todas se esconderam dentro de seus edifícios – e todas, depois de pouco ou muito tempo, saíram de volta.

Menos em Kirkirut. Lá, as pessoas nunca mais voltaram a sair.

De início, contam os sábios, Kirkirut achou que poderia vencer a Doença rindo dela. Rir da vida, e da morte, era um esporte comum na orgulhosa cidade, uma das mais prósperas daqueles dias já tão distantes. Nem nossos sábios chegaram a testemunhar Kirkirut em seu esplendor: sábios que são, porém, guardam na memória os relatos de outros sábios, já falecidos, e garantem que foi outrora lugar de grandes riquezas, de música e prazeres, de festas intermináveis no alto de majestosos edifícios. Mas acrescentam que Kirkirut foi também terra de pobrezas atrozes, de mãos magras e bocas famintas, de dores e melancolias que ninguém se importava em registrar.

 Não teremos nenhum Ano Perdido, diziam uns aos outros os membros da nobreza kirkirutiana. Os estômagos dos nobres pedem comida, os braços dos de baixo precisam de trabalho, os cofres dos mercantes não podem parar de tilintar. Kirkirut não se esconde, quase gritavam, a voz erguida em um tom estridente de bravata. A Doença não virá: nós a proibimos de desembarcar!

Vindos de cidades mais ou menos distantes, andarilhos tentavam alertar os moradores de Kirkirut de sua insensatez. A Doença chegava a todos os lugares; o Longo Ano Perdido não acontecia apenas com os fracos, não era algo que se pudesse contrariar com uma tábua de lei. Ainda há tempo, diziam: façam as últimas colheitas, preparem suas conservas, lacrem suas casas pois o inverno virá! E os moradores de Kirkirut se riam às gargalhadas, em um escárnio que era ao mesmo tempo triste e mau. Se a Doença vier no inverno, tanto melhor: a usaremos como lenha em nossas lareiras!

Não mudaram sua postura nem mesmo quando os primeiros dentre eles caíram ao chão. Eram pobres e serviçais, diziam os kirkirutianos mais abastados. Kirkirut não se esconde, afinal. Uma cidade grande, único caminho em comum entre todas as suas vizinhas, não poderia se dar ao luxo de perder um Ano sequer. Para levantar a moral dos seus, o governo de Kirkirut promoveu grandes festas, distribuiu saborosas guloseimas, incentivou todos a andarem pelas belas calçadas, contemplando os frondosos baobás.

Depois de alguns poucos dias, os mortos já caíam às centenas.

Os risos rapidamente viraram uivos de dor. Tomada pelo medo, Kirkirut construiu portas e selou janelas em questão de dias. Dizem os sábios que, em uma coincidência de mau agouro, caiu sobre a cidade grande nuvem de chuva, que não a abandonou durante oito dias e sete noites; os moradores carregavam as caixas de comida nas costas, tentando desviar dos cadáveres, afundando até os joelhos na lama infecta.

Quando o mau tempo finalmente se desfez, as pálidas estrelas surgiram no céu de uma Kirkirut que já havia se escondido para sempre.

* * *

Demorou um pouco para que as cidades próximas entendessem o que tinha se passado. Afinal, elas tinham seus próprios horrores, suas janelas lacradas, seus mortos para chorar. Como se não bastasse, Kirkirut era uma cidade afastada, embora importante: mesmo com as estradas reabertas, levou um tempo até que os primeiros viajantes de fato se animassem a buscar aquelas trilhas. Seja como for, o Longo Ano Perdido finalmente tinha chegado ao fim. Havia chegado a hora de irmão cumprimentar irmão, de um levar ao outro as boas novas, ouvir as memórias e bons desejos de quem também sobreviveu ao doloroso inverno.

Não para Kirkirut. Os primeiros que para lá rumaram, ansiosos pelas ricas especiarias e pelas tavernas movimentadas da grande cidade, encontraram apenas uma mesma placa, fixada em todas as vias de entrada:

VISITANTES NÃO SÃO BEM-VINDOS. VÁ EMBORA. ADEUS.

Imaginando que fosse uma hostilidade temporária, causada pela precaução diante de uma chegada tardia da Doença, esses viajantes deram meia volta, respeitosos, decididos a retornar quando Kirkirut acreditasse estar pronta para recebê-los. Mas a verdade é que Kirkirut nunca mais reabriu as portas.

As placas permanecem lá, incontáveis anos depois. Você ainda pode vê-las, caso se disponha a fazer o longo trajeto.

Ninguém sabe onde estão, hoje, os que outrora habitaram a cidade perdida. Os mais corajosos, que desafiaram os avisos ameaçadores e entraram em Kirkirut, trouxeram relatos de ruas vazias, ervas daninhas cobrindo as pedras das ruas abandonadas. Não há movimento algum, dizem eles; mesmo os pássaros cantam mais baixo do que em outros lugares, como quem não deseje acordar o sono dos que já se foram.

Alguns moradores talvez tenham rumado para cidades ainda mais distantes, ponderam os que se intrigam com o estranho destino de Kirkirut. É razoável imaginar que muitos morreram, e há quem suspeite que sucumbiram todos à Doença – talvez mais sensíveis que os de outros lugares, de todo modo fulminados pelo mal-estar fatal. No entanto, você não verá nenhum dos recentes visitantes da deserta Kirkirut dizendo tais coisas. Não: embora evitem falar no assunto, todos eles concordarão que a breve visita lhes causou outra impressão, muito mais sombria.

A cidade está vazia, dizem, mas a população de Kirkirut ainda está lá. As janelas nunca se abrem, mas os que ousaram andar diante delas não tiveram dúvida de estarem sendo observados. As casas aos poucos se desfazem, vítimas do longo abandono, mas algo ainda se protege dentro delas. Algo que sente medo, e nojo. Algo hostil. Que se recusa a sair, mas deixa bem claro que ninguém jamais poderá entrar.

Dos poucos que visitaram Kirkirut após sua queda, todos entraram e saíram da cidade em segurança. Nenhum deles, contudo, ousou bater à porta de alguma das casas. E, como todos que de lá retornam garantem que nunca mais ousarão colocar os pés naquele lugar, o incômodo segredo de Kirkirut segue de pé, em um Grande Ano Perdido que existe sem nunca chegar ao fim.

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