Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

7.4.20

Dia 21: por Pietro Pacheco

As pessoas parecem tão distantes. Cada uma parece ocupar um espaço invisível e inquebrável, uma armadura necessária para conter o vírus de alguma forma. O número de mascarados aumenta na mesma medida que as aglomerações diminuem. Os beijos e abraços característicos da brasilidade foram trocados por acenos e cumprimentos mais formais. A distância é amenizada por aplicativos. E uma vez inseridos profundamente neles, percebemos que a tecnologia não é capaz de ocupar o espaço destinado para o convívio social.

Habitantes de seus planetas particulares, todos estavam alinhados em um mesmo sistema marcado por números. O que eu estava era o quatorze e desejava ir até o dezesseis. Entre os corredores dos materiais de limpeza, com o tão cobiçado papel higiênico, mais à frente estava o de temperos. Chimichurri era o tesouro a ser procurado. Enquanto cruzava pelo primeiro espaço citado, vejo duas mulheres se aproximando, ambas com suas máscaras e olhares acuados. O que poderia ser um reencontro de antigas amigas, ou de colegas que não se viam há anos, se mostrou o contrário: um álcool de cozinha, aquele com a tampa vermelhinha. Ao tocarem o objeto, se encaram estranhamente e logo afastam as mãos. Os gestos são marcados por diálogos como “eu vi primeiro”, ou “eu estou com pressa”.

Apesar de outros produtos iguais, aquele foi o escolhido, e uma situação que poderia ser simples acabou criando um ambiente pesado. A culpa não era delas, mas sim, da incerteza do amanhã que transparecia na situação presente. Enquanto a cena acontecia, um homem, portando sua máscara, de terno e gravata, passa, bem alinhado e horrorizado com aquilo que também observava. Quatro planetas convergindo, cada um com seus pensamentos, mas compartilhando um sentimento semelhante. Tanto ele quanto eu seguimos nossos caminhos, somente as duas mulheres permaneceram. O corredor era somente delas.

Já no caixa, o ocorrido permanecia na minha cabeça e se resumia a uma breve reflexão sobre a perda da humanidade em momentos de conflito. Justificável pela natureza e irrepreensível pela moral social, o fato é que somos egoístas e mais transparecemos quando somos confrontados. Não descobri qual a conclusão da disputa, qual delas recuou e cedeu, pegando o produto ao lado daquele que foi tocado primeiro. A ida ao mercado se tornou uma experiência antropológica.

Se posso tirar uma conclusão primária da situação e desses dias de isolamento é que estamos a ser testados pelo tempo, presos em liberdade condicional e almejando voltar à liberdade. Batalhamos diariamente com o silêncio que cessou as conversas e nos isolou. Nosso círculo se restringiu aos poucos familiares e é nesse meio que as diferenças gritam tanto. Quem sabe, num otimismo utópico, ao fim de tudo isso, recuperar a humanidade perdida, lembrar de situações embaraçosas como a das senhoras do corredor quatorze, respirar fundo e dizer: Nascemos de novo!

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