Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

19.4.20

Dia 33: por Bernardo Bueno

Do outro lado do espelho

Nos mudamos para um sítio da família por uns dias, eu, minha esposa e meus filhos. Na manhã de páscoa, olhamos para o vale coberto de neblina à nossa frente e um pássaro branco voou silenciosamente lá adiante.

 — Olha, um drone! — exclamou meu filho.

Calma, ele não estava falando sério. Nós rimos e eu pensei como a vida ali era diferente de estar trancado num apartamento pequeno com três crianças. Pensei também que não era tão difícil assim ficar trancado num apartamento com as minhas três crianças. Mas não era como devia ser.

Como devia ser.

Lição número um: não há um “como devia ser”. Nós somos um acidente feliz num planetinha perdido no universo, um golpe de sorte no infinito, e certamente não estamos a salvo de coisas como pandemias ou escolhas ruins para presidente.

Tem dias que eu tenho certeza de que passamos para o outro lado do espelho. Só assim pra explicar como eu me sinto quando lembro de tudo que aconteceu antes de 16 de março de 2020, que foi o meu primeiro dia de distanciamento social – o dia em que as aulas na universidade passaram pra online.

Hoje já se foram 33 dias trabalhando em casa, saindo o mínimo possível, sem ir à pracinha, shopping, cinema; indo ao supermercado com medo, borrifando álcool nos botões do elevador, ouvindo o vizinho tocando sax na frente de cada prédio do condomínio, panelaço contra o Bolsonaro às 20h da terça, palmas pros profissionais da saúde na quinta, yoga no meio da sala, filha andando de patins no corredor.

Uma boa técnica para crises de ansiedade é identificar, à sua volta, cinco coisas para ver, quatro para tocar, três para escutar, dois cheiros e um sabor. Inspire por quatro segundos, segure por sete, expire por oito.

Off-topic: numa palestra sobre recursos humanos, o palestrante disse que, quando perguntam qual o seu maior defeito, as pessoas geralmente falam que é perfeccionismo. De uns tempos para cá, está na moda dizer que é ansioso. Ele disse isso como se fosse um truque barato, uma maneira de driblar uma entrevista de emprego, deu a entender que era mal visto.

Acho que agora ninguém vai duvidar se você disser que tem ataques de pânico.

Não sei se vejo isso (isso: o mundo inteiro em casa) como luto pelo mundo ou como oportunidade; me alterno entre uma paz zen estranha e um desespero existencial profundo; voltei a falar com Deus ou seja lá o que for, pensei no universo, olhei para as estrelas como há muito não conseguia fazer na cidade. Em média, acho que estou com o coronavírus umas três vezes por dia, cada vez que espirro ou me sinto meio estranho, mas tudo é estranho agora. Me sinto culpado por estar bem, com vergonha porque queria fazer mais. Acima de tudo, o que me desespera é não saber quanto tempo isso vai durar.

Eu sei que nosso modo de vida se alterou pra sempre, que o mundo não vai mais ser o mesmo, que as pessoas vão interagir de um jeito diferente, que talvez pensem melhor antes de votar. Eu não espero que as coisas sejam como eram antes, porque isso seria ingenuidade.

Eu estou cansado de ter medo, tão cansado. Onde eu estava com a cabeça quando decidi ter filhos? Seria muito mais simples se fosse só eu. Só eu, lendo e escrevendo num apartamento, trancado, num bunker, no meio do mato, com comida, livros e jogos para três anos. Mas o ser humano é esse bicho social, e a gente se ama e decide ter filhos e se torna responsável por eles e aí todo dia é um dia de preocupação. Às vezes essa preocupação tem a ver com as notas do colégio, e às vezes tem a ver com seres invisíveis.

Mas isso é num dia. No outro, estou fazendo exercício, preparando aulas, lendo, tocando, cantando, fazendo faxina, plantando feijões, revisando como calcular um diâmetro, qual é mesmo o valor de pi, como escrever o T maiúsculo em letra cursiva, assistindo à minha filha de 3 anos ouvindo a professora contar histórias pelo computador.

Marco os dias num diário. Penso na morte. Penso em música. Penso em religião. Tenho vontade de viajar. Penso em quanto não abraçar as pessoas é difícil. Penso sobre um sentido, só pra chegar à conclusão de que não há um sentido, que o tempo é um rio, que somos todos um rio e como é difícil aceitar que certas coisas simplesmente estão além do controle. Abrir mão da ilusão do controle é dolorido.

Num momento eu pensava como seria legal viver mais perto da natureza, trabalhar mais de casa. No outro eu estou cavando um buraco pra enterrar cascas de fruta e pensando que, olha só, é bem isso que eu queria, mas não é bem assim que eu tinha imaginado.

Passamos para o outro lado do espelho, eu tenho certeza, mas temos a chance de, deste lado ou do outro, dar uma boa olhada no nosso reflexo. Eu entendo por que isso pode ser assustador.

Um comentário:

  1. É assim que é. Obrigado Ber por transcrever nossos sentimentos aí para essa partitura.

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