Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

21.4.20

Dia 35: por Lê Mayer

Hoje eu acordei com medo
mas não chorei nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito sem presente,
passado ou futuro
─ trecho da música Poema.

Abro os olhos para alcançar o celular que desperta próximo da cama. Disseram ser importante manter certa rotina, então, não desativei os alarmes. O dia começa com uma
varredura no corpo. Temperatura, analiso tocando a testa com o dorso da mão, parece normal. Garganta, arranha um pouco. Deve ser pelas noites que têm sido mais frias, o outono está começando, nem sempre lembro de puxar o edredom. Nariz, sem obstruções. A cabeça dói, mas não muito, atribuo isso à redução da cafeína que comecei há alguns dias, junto com outros hábitos para ajudar num reforço à imunidade, ou à saúde geral. Tenho insistido em comidas mais saudáveis, as que ainda restam na geladeira depois da última feira. Passei a utilizar própolis nas limpezas nasais e a tomar banho de sol no chão do quarto. Ficamos esparramados, os gatos
e eu ouvindo música, no espaço entre a cama e a escrivaninha.

De manhã arrumo a cama e abro as janelas. O mundo lá fora anda emudecido, posso ouvir o barulho da chaleira. A água está pronta e começo a preparar o único café do dia. No celular, o álbum com olhos de farol de Ney Matogrosso. No ar, a música se mistura com o aroma que sai da caneca e do bule de cerâmica. No sofá, os acordes de Frejat percebem o medo e Cazuza lembra de um tempo ou perde alguma coisa. No café, o escuro é bonito e eu não reclamo abrigo. O infinito do caminho é como um abraço ingênuo, uma desculpa para um consolo.

Depois pego a garrafa de água e me posiciono no que tenho chamado de local de trabalho: uma mesa, uma cadeira, um notebook, alguns livros e blocos de anotações. Resisto o quanto posso para não desativar o modo avião do celular. Quando o faço, aviso família e amigos de que está tudo bem e justifico minha ausência: as notícias, mensagens e e-mails me deixam ansiosa demais. Também deletei do celular, pelo menos por hora, vários aplicativos. Escrever, muitas vezes alivia. Ler, nem sempre é possível. Quando percebo, estou olhando para o pássaro mordendo as frutinhas da árvore que enxergo da janela.

‘Amadurecência’ do Teatro Mágico diz: “O primeiro senso é a fuga. Bom, na verdade é o medo. Daí então, a fuga. Evoca-se uma sombra na inquietude. Uma alteridade disfarçada. Inquilina de todos os nossos riscos.” Medo. Fuga. Sombra. Riscos. No princípio, só fiz foi ignorar o medo. Abracei e dancei com a fuga. Servi uma taça de vinho depois da outra. Usei um par de drogas que tinha à disposição. Me entorpeci por completo. Volátil, a percepção do mundo modificou. Insisti no esquecimento, ainda assim, ele não me impediu de sentir a culpa. Depois disso, estagnei na leitura do capítulo ‘shadow’ de Integral Life Practice, leitura conveniente para esses dias, aliás. A dificuldade, porém, tem sido a convivência com a sombra. Tenho brigado comigo mesma. Eu, que sempre me considerei boa companhia, estou me sentindo insuportável. Mas não no sentido rabugenta. No sentido de doída mesmo. E não me sinto, de forma alguma, especial. Estou doída como todo os outros.

Faz alguns anos que ouvi a frase “quem tem a liberdade na alma se sente em casa em qualquer lugar”. Encarei como um direcionamento para me libertar do apego às coisas. Escolha de conduta, que se constrói, não se muda do dia para a noite. O lugar em que mais me sinto em casa é a minha casa. Exatamente onde tenho estado nos últimos dias. Trinta e cinco para ser precisa. Mais de oitocentas horas, mesmo descontando as quatro saídas, duas para a feira e duas para o supermercado. Neste apartamento tenho vivido desde novembro de 2011. O cheiro da tinta ainda ardia o nariz quando a cama foi entregue e eu quis dormir aqui mesmo. O lugar que tenho transformado em meu canto, com carinho. Ao mesmo tempo, não posso fazer disso o mais importante. O apartamento, as coisas, continuam a ser sempre mais do mesmo. O que muda, de verdade, é o que muda dentro da gente. Tenho pensado muito nisso. Na casa do eu. E o que tem doído é a casa que me habita nem sempre me abraçar. Por vezes, me sinto uma criança, de castigo no porão, obrigada a ver a bagunça toda lá embaixo. Nesses dias, falta o ar. O ato de unir as mãos em frente ao peito, como um gesto de honrar a si mesmo, fica ofuscado pela raiva, ou pelo vazio, que sinto queimar ali.

Dessas horas sem sair de casa, não contabilizo os momentos em que coloco luvas para levar os sacos de lixo. O contêiner fica a cerca de vinte metros da entrada do edifício. Escolho sair cedo para não encontrar o seu Luiz, zelador idoso do prédio vizinho. Nossa amizade é recheada de abraços. No dia do meu aniversário, me esperou na calçada, ele disse que queria ser o primeiro a me dar os parabéns. Assim que jogo o lixo, os cuidados da volta: álcool gel, portas, maçanetas e os chinelos que lavo no tanque e deixo secar dependurados no varal. A limpeza, que já era minuciosa, passou a ser impecável. Talvez até tenha resgatado alguns protocolos da época em que pesquisava as bactérias e gostava do odor doce e dos pigmentos coloridos. No entanto, isso foi num outro tempo.

Há dias não sei de onde encontro forças para fazer exercícios no tapete de yoga que estico no centro da sala. A liberação de endorfinas até acontece, há um relaxamento corporal. Mas faltam os abraços que se fazem casa e sobram espaços desocupados. Nessa caverna, a mente se extravia. Fica difícil controlar o choro. Debaixo do chuveiro, as lágrimas se diluem, escorrem pelo ralo. Assim como escorrem, entre os dedos, os dias e as horas.

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