Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

23.4.20

Dia 37: por Ángela Cuartas

Sou das manhãs e no entanto estou aqui, escrevendo às 2h20. O corpo da palavra ganhou massa suficiente para tirar meus olhos da tela do celular e me puxar da cama pela ação da graça ou da gravidade. Dizem que piscianos tendem a se dissociar nos momentos de conflito. Tenho lua e mercúrio em peixes, porém tenho o sol e o ascendente em áries. Dissociação é comigo. Então medito. Todo dia, às 8h e às 22h. Meu lado capricorniano veio me salvar da insanidade nessa quarentena. Roberto guia a meditação da sua casa na Colômbia pelo zoom e convida a gente a deixar que a atenção desça pelo corpo todo, como se obedecesse à força da gravidade. A gravidade é a medicina da Terra, lembro e concordo, mais uma vez. Essa semana me peguei repensando isso, não discordando da ideia, mas do raciocínio que levou a pessoa a tirar essa conclusão. Mesmo assim concordo, e me lembro de Louis C. K. dizendo that’s being a person, quando fala da nossa compulsão pelo celular. Ele relata o dia em que estava dirigindo e, sem nenhum aviso, um lamento vindo da música que tocava na rádio o fez entrar em contato com uma dor profunda, mas vazia de conteúdo.  Começou a chorar e teve que encostar o carro para simplesmente ficar assim, quieto, sentindo o que sentia, “chorando como uma criança”. Obedecendo à lei da gravidade, acrescento eu. Isso é ser uma pessoa. Mas já estou racionalizando a ação de meditar, preciso voltar a atenção ao corpo. Sinto a dureza do ombro direito, essa sempre está aí, é a sensação mais fácil de identificar e me lembra o meu pai, que sempre colocava a mão no meu ombro e isso quase sempre se sentia como um peso, mas às vezes como o carinho que pretendia ser. Meu pai, ainda bem que não viveu este momento, no final da vida ele também morava sozinho. Saudades do meu pai.

O que mais eu sinto? Sinto as plantas dos pés em contato com o chão frio e penso em como eles têm me levado em lugares. Saudades da natureza. Essa semana descobri uma paineira no novo condomínio. Dá para vê-la da minha janela, mas não sabia que estava dentro do condomínio. Está escondida atrás de um prédio abandonado, florida e com muitos espinhos. Assim que cheguei em Porto Alegre, dois anos atrás, o que mais me chamou a atenção foram as paineiras. Agradeci por elas, agradeço ainda, da minha janela. O que mais eu sinto? Sinto um buraco no peito, às vezes ele se expande, às vezes vira um buraquinho, outras esquenta ou congela, às vezes dói e outros dias me suga. Hoje ele está na média, mas está ali, posso senti-lo e, se eu escavar, vou achar lutos inconclusos. Lutos por diversas mortes, de pessoas próximas ou distantes, da infância até hoje. Hoje são muitos lutos para poucos corpos dispostos a sentir o que precisa ser sentido. Quando eu era criança tinha muita morte na minha cidade, no meu país. Quando era adolescente, também. E adulta, também. E também teve épocas de confinamento, porque a morte podia estar na próxima esquina, não na forma de um vírus, mas na forma de um carro-bomba. Um carro aleatório podia explodir e matar todo mundo que estivesse por perto a qualquer momento. Não, não pode sair com suas amigas. Porque não, porque pode morrer. E todos esses mortos? Todos esses que apodreceram sequestrados na montanha sem saber nada das suas famílias ou suas famílias deles? Todos esses que foram assassinados no sítio e do sítio do presidente do país? Do sítio, do condomínio, tanto faz, é a mesma história, contada em tempos, cenários e línguas ligeiramente diferentes. Todos esses jovens que foram assassinados nas favelas pela polícia? Favelas ou vilas? Tem favelas na Colômbia? Como se chamam lá? Lá se chamam comunas, em alguns lugares. Em outros não têm nome, como não têm direito a nome seus habitantes, como não têm direito a nome os habitantes das favelas aqui. E Marielle, que excepcionalmente tem direito a nome? Quem mandou matar Marielle? E quem mandou matar as centenas e milhares de lideranças sociais, indígenas e ambientais da Colômbia e da América Latina? E por quê? E esses lutos? Quando e como vamos vivê-los?  Estamos vivendo guerras distintas? O presidente (a sociedade) negacionista do conflito e o presidente (a sociedade) negacionista do vírus e da ciência não são a mesma coisa? Não são formas diferentes da mesma guerra? Divaguei de novo. O que mais eu sinto?

Sinto a barriga, ah, como eu sinto a barriga. O que eu sinto na barriga? Sinto como se meu intestino fosse uma cobra no zoológico, presa num aquário com pedras e troncos falsos e uma luz artificial castigando o dia inteiro. O que acalmaria a cobra seria um abraço. Repasso alguns dos abraços que dei antes de começar a quarentena. Um deles foi à Tai, foi um abraço especialmente forte, completo. Lembro que senti os seus ossos e quase o corpo todo, até a bochecha. Senti que por uns segundos formamos uma unidade, como se pressentíssemos que seria o último em muito tempo. E então me lembro do último abraço que dei na minha mãe, porque teve a mesma qualidade, o mesmo nível de fusão, no aeroporto de Cali. Não costumo abraçar minha mãe, por isso as despedidas e encontros são momentos de abraços intensos que me levam à infância, ao colo, durante poucos segundos. Revejo na minha mente o mapa hidrográfico da América do Sul e me espanta a facilidade com que acreditamos na materialidade das fronteiras. Só que agora as fronteias são mais reais do que nunca. Um psicopata comanda o Brasil e repetir isso já parece vazio, só que não é: a sua forma cruel de conduzir a crise me deixa ainda mais vulnerável no exílio, não sei quando possa voltar à Colômbia, minha mãe está com setenta anos, tem uma infecção nos olhos, precisa ir à emergência, e eu assisto a tudo numa telinha por onde minhas irmãs enviam receitas, minhas amigas stickers, meu professor livros, meu amigo músicas, outros fazem lives e muita gente não tem internet em casa para suportar tanta dissociação coletiva.  De novo fugi do corpo.

A cobra. O que a cobra representa, em muitos contextos, é medo. Em seu avesso, amor, sexualidade, vida. Sinto medo de perder minha mãe, medo de não conseguir fazer o que precisa ser feito, medo da solidão. Tenho muito medo da solidão. E me lembro do pensamento de Pascal que o doctor Calle me mostrou alguns anos atrás, como se estivesse me preparando para este momento. He descubierto que toda la desdicha de los hombres proviene de una sola cosa: no saber quedarse quietos, en su cuarto. Ficar quieta no meu quarto significa sentir o medo da morte que conheci bem em outras épocas da vida e guardei numa caixinha dentro daquele buraco; sentir a acumulação das mortes e da dor de todos os mortos apenas chorados pelas suas mães ou sem ter sequer esse direito, por ter sido eliminados, anulados em osso e nome, por ordem de um capitão, muito antes dos tempos do corona. Mortes e dores e lutos sobrepostos, não reconhecidos, não assumidos, nem sentidos, nem concluídos. Talvez o vírus nos obrigue a assumir nossa infância, que para muitos é a época da descoberta da morte, e é quando aprendemos a oscilar entre o peso e a leveza. Louis C.K. não chorou como uma criança, chorou como um ser humano. E como um ser humano também recuperou a paz depois do choro, e pôde se encher de ar e sentir a vida pulsando em seu corpo de novo. Da mão de Clarice Lispector, rezo: meu Deus, me dê coragem. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Ángela, começo me identificando com o “Sou das manhãs” e vou deslizando pela tua escrita, tropeço nos lutos inconclusos e pelos de hoje, de conhecidos ou desconhecidos, pelos inúmeros sem nome, pelas divagações e racionalizações. Lembro de Herman Hesse quando falas na falsa crença na materialidade das fronteiras, ele disse mais ou menos isto, que nada é mais estúpido que as fronteiras nacionais. Em tempos de paz não lhes damos a mínima, mas quando estoura a guerra são como canhões e os generais, é quando impera a estupidez e se tornam sagradas. Isto me leva a pensar nos refugiados.
    Não sei meditar, embora venha tentando, mas não consigo fugir do corpo por completo. Neste isolamento ele me dói e a pele coça como se prendesse fogo. A tua escrita faz tremer a carne, tamborila sobre os meus nervos e como o vento minuano geme lambendo meus ossos, revolvendo meus lutos e me fala de afetos, assim como da tragédia particular do Brasil governado por quem é.
    Sou feliz por estar numa casa com um jardim, onde posso sentir a natureza, onde enquanto as folhas caem neste outono, as plantinhas teimosas tratam de brotar. Sempre penso quando me apresentam alguma coisa para ler, só tenho um norte, ou me chega a alma ou não. Uma lágrima escorrega pelo ângulo agudo do meu olho. Isto me basta! Um abraço!

    ResponderExcluir
  3. Obrigada pela leitura e pelo afeto, Rosane. De alguma forma estamos vivendo um exílio coletivo, bem numa época em que o mundo fecha os olhos para o sofrimento dos refugiados, que tu traz à tona. Não sei o que podemos concluir disso tudo, mas sei que nossas estruturas estão caindo e que isso abre mais espaço para o novo, pelo menos dentro de cada um. Tomara que estejamos à altura do desafio da nossa pequenez. Abraço.

    ResponderExcluir