Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

27.4.20

Dia 41: por Iuri Müller

Seria preciso procurar mais nas margens dos livros do que exatamente nos cadernos (no verde, de capa fosca e marcador vermelho, só há transcrições à mão de excertos alheios) para recuperar, com impreciso sucesso, os fragmentos dos dias atravessados, sobrepostos, confundidos num bloco de nuvens, embora nesta cidade não chova há meses. Tampouco será o caso de achar ali, na marginália estreita entre os versos de Ida Vitale (Poesía reunida, Tusquets, Montevidéu) ou os parágrafos concisos de Álvaro Mutis (A neve do almirante, Record, Rio de Janeiro), algo de muito revelador sobre o tempo que passa; talvez o jeito seja se inclinar nas lixeiras, no lixo seco e no cesto de papéis, já que as cascas e restos orgânicos descem diretamente para as engrenagens da rua, todas as noites.

Não está escrito em nenhum lugar, pois não escrevi e isso ninguém poderia escrever por mim, que pode ser um mau momento machucar o olho direito em tempos de reclusão forçada (mais, ainda, em um estúpido exercício autoinventado no chão quase gelado da sala de casa), ver o olho inchar, doer, e tornar proibidas mais algumas atividades, para além de todo o resto que está inacessível há umas quantas semanas. Horas sem ler, sem fixar o olhar nas telas, sem voltar a exercitar o corpo, horas para se evitar a luz, o movimento, a exaustão; pior, talvez, se o caso é de alguém que via de regra enxerga mal, confunde as cores, não distingue as letras, as fachadas e os rostos de longe (um perigo, sem dúvida) e precisa de óculos para assinar pequenos recados. Isso (a lesão no olho) foi há poucos dias, mas não saberia apontar a data; felizmente, penso, porque durou pouco, porque no outro dia, ou dois dias depois, já enxergava bem, podia voltar a me mover entre as páginas de sempre, as luzes amarelas da sala e do quarto, as minúsculas obrigações domésticas.

Sem separação entre o tempo sagrado e o tempo profano, como me escreveu um amigo por e-mail há poucos dias, se parecem os dias de semana, os sábados e os feriados, e assim não será simples estruturar as memórias desse tempo permanentemente nublado. Escolho, agora posso perceber, não me debater contra a revoada; quando escrevo, todos os dias, como hoje, não cito que estou isolado, nem que a cidade está ausente, que as fronteiras estão fechadas e que sequer posso imaginar com nitidez como devem estar os outros lugares que, para mim, seguem sendo espaços familiares. Quando escrevo, transcrevo algum parágrafo das leituras do dia ou rabisco nas margens, à esquerda ou à direita, às vezes nos rodapés, nunca no espaço superior aberto, alguma impressão sobre o que leio ou a ideia que me ocorre, avulsa, paralelamente; me restam, agora, duas canetas de ponta fina e tinta preta que servem bem para a anotação nos livros. “O brilho das madeireiras, alucinado e amarelo, como o das cúpulas das pequenas igrejas ortodoxas”, escrevo no canto inferior esquerdo da página 148 de A neve do almirante, e custo a decifrar a minha própria letra. (Junto aos poemas de Ida Vitale, por pudor ou reverência, me limito a um código lacônico: um ponto fino ao lado do poema a ser relido, dois para o que deve ser transcrito em sequência; e a orelha da página dobrada em casos excepcionais que até o momento foram seis.)

Escreveu um escritor argentino, se lembro com alguma precisão, que a crítica literária pode ser o caminho possível para se reconstruir uma biografia, de si e do outro; os rastros de leitura, as escolhas do que ler, os trechos destacados e os instantes de abandono, as relações de parentesco e de rechaço, as séries literárias e os novos mapas desenhados, as aproximações até então inusitadas entre dois ou mais textos, entre outras formas de articulação, poderiam desvelar uma vida, pois todos esses gestos deixarão inevitáveis pegadas de alguém. Rastros, impressões digitais, guardanapos esparramados, números de telefone, manchas de café e saliva num canto de página, entre variações mais ou menos criminosas. Anoto para lembrar, depois, caso se trate de recordar esses dias, de buscar não só nas abertamente legíveis páginas dos diários e dos cadernos, mas no emaranhado que se deixa apenas entrever entre páginas alheias e outras manifestações do desvio e da dispersão.

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