Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

28.4.20

Dia 42: por Irka Barrios

Eu ouço o Átila Iamarino. E ouço o πrula. E, mesmo sem compreender totalmente o inglês apressado do Jacob Glanville, minha nova esperança, também o ouço. Dias atrás descobri sua conta no Instagram: @curlyjunglejake. Passei a segui-lo. Além da @ espirituosa, ele é pai de um bebê muito branco, careca e bem gordinho. Volto ao Instagram para rever as postagens. No dia 12 de abril (domingo de Páscoa), a bebê usava um laço rosa. Leio a legenda, seu nome é Seraphine. A bebê aparece brincando na grama, talvez o jardim da casa de Jacob. Ela não foca muito o olhar na câmera, o mundo inteiro ao redor clama por seu interesse. No instante fugaz em que Seraphine responde aos chamados do pai, percebo o olhar, aquele que oscila entre a inocência e o espanto, e que todos nós tivemos um dia. A placidez também é nítida. A segurança de estar num mundo que (até então) se mostra gentil. Chego na foto em que Jacob se desculpa pelo overposting da bebê. Não se desculpe, Jacob, isso é o que te traz para perto de nós. E nós, no momento, somos um número bastante grande de pessoas que estão, tal como Seraphine, inocentes e espantadas, depositando tudo o que nos resta de confiança na área em que você atua.

Procuro outras fontes sobre Jacob e percebo que ele fala um espanhol perfeito, o que me faz desconfiar e (bingo) ele tem raízes na Guatemala. Só podia ser latino, digo a mim mesma e sinto o coração pulsar mais forte. Assisto-o cruzar as ruas de uma cidade (acho que São Francisco) de skate e chegar ao seu laboratório para mais um dia de trabalho. Descubro mais, ele largou uma colocação elevada na poderosa Pfizer, cerca de dez anos atrás. Ouço vozes perguntando por que alguém faria uma idiotice dessas. A resposta faz com que meu coração bombeie mais um volume grande de sangue para o resto do corpo: idealismo. O povo que sai às ruas gritando que não existe almoço grátis jamais compreenderá o barato de Jacob. Em entrevistas ele defende vacinas e medicamentos acessíveis para toda a população mundial. Embora eu goste de pensar que eles, o povo que não acredita em almoço grátis, sejam a minoria, lamento o estrago que essa minoria causou ao meu país. Eles são barulhentos e estão entre nós.

Depois de stalkear Jacob, parto para minha segunda obsessão: analisar gráficos, projeções, tabelas, crescimentos em escala exponencial e outras palavras que nunca fizeram parte de meu vocabulário cotidiano. Acesso pelo menos duas vezes ao dia a página disponibilizada pela Secretaria da Saúde do RS. Foco num gráfico que mostra o número de contaminados ao longo do tempo. Apoio o lápis na tela: um, dois, três, vou contando os retângulos azuis que se sucedem conforme as alturas crescem. Calculo quantos dias levamos para dobrar o número de casos. Certifico-me do cálculo por duas ou três vezes. Fecho o link sabendo que vou reabri-lo em duas ou três horas. Hoje estamos dobrando a cada quinze dias o que, segundo o Átila, é muito bom. Reabro a página, esqueci de comparar o crescimento da contaminação entre os estados do sul. Não é para ser uma competição, óbvio, mas não consigo controlar a torcida para que nossa curva seja menos sinuosa que a de nossos vizinhos. É uma espécie de desforra, é como dizer “viu no que dá ouvir lunáticos como o Véio da Havan?”. Também vale para eu me gabar, nosso governador é menos irresponsável que os deles.

Todos os dias, antes de sair para o trabalho, sinto medo. A segunda sensação é a de coragem e a terceira é um excesso da autoconfiança típica das pessoas que fazem idiotices. Consegui reduzir muito, mas não há como parar, outras dores não respeitam tempos de pandemia. Também recebi uma convocação do governo. Devemos estar prontos para substituir outros profissionais da saúde afastados caso tudo dê muito errado e a epidemia avance mais que o previsto. Minha rotina de paramentação segue cuidados que beiram a paranoia. Antes de sair de casa, coloco as máscaras, uma cirúrgica e uma de pano. Ao chegar no consultório, calço os propés, corro até a torneira e lavo as mãos. Em seguida visto o jaleco e o gorro. Lavo as mãos. Ajeito os óculos e coloco a viseira de acrílico. Lavo as mãos e, por fim, calço as luvas. Não cheguei ao ponto de comprar o macacão de apicultor, mas confesso que a página ficou aberta no meu note por uns três dias. Desfazer-me das EPIs é tão trabalhoso quanto me paramentar e sempre gera um medinho. Li em algum lugar que a maioria das pessoas se contamina neste momento crítico. Ao chegar em casa, lavo todas as roupas utilizadas no dia. Minha máquina nunca trabalhou tanto.
   
Separei Guerra e paz para ler durante a quarentena. Fiz os cálculos, se eu lesse cem páginas por dia em menos de um mês eu terminava o livro inteiro. O planejamento não tem funcionado. Gasto boa parte de meu tempo livre lendo outras coisas, como fábulas. As mais antigas tinham uma moral duvidosa e eram contadas para educar crianças na base do terrorismo. Descobri que a história original de João (o do pé de feijão) não é tão virtuosa. João subiu até o castelo do gigante pela primeira vez porque tinha fome. Nas vezes seguintes, entretanto, João deixou-se contaminar pela ambição. Roubou a harpa mágica e (não contente) uma galinha que chocava ovos de ouro. João é silencioso e também está entre nós.

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