Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

2.5.20

Dia 46: por Leandro Godinho

Percebi logo que os dias não vão parar de nascer. A partir do instante em que se abrem os olhos e me dou conta de que, sim, é um novo dia ali nas paredes, nos lençóis, nos barulhos, na luz que penetra o quarto e na pele da namorada que não acordou, a vida seguiu – e por vida eu quero dizer a vida no planeta, a Terra girando no espaço em torno do sol, a nossa estrela, que um dia, daqui a mais ou menos um bilhão de anos, vai começar a se apagar, derretendo todo o sistema solar antes, mas, vamos com calma: antes, amanheceu e o tempo não para porque há um vírus potencialmente fatal na umidade do ar.

Nos dias bons, eu levanto da cama e espio a louça que sobrou da janta, ou do pós-janta, e assim começo outro dia, qualquer dia, um novo dia, que se parece com os dias passados, assim como os dias antes do vírus também se pareciam uns com os outros. Dentro do espaço da louça, eu encaixo podcasts, músicas, elucubrações. São os dias em que eu tenho vontade de cozinhar também, e durante o expediente do trabalho proponho ideias, ofereço boa vontade e faço até gracejos.

Nos dias não bons, eu me levanto da cama também, e a louça talvez ainda esteja lá, e a consciência de que é justo eu lavar a louça porque Fernanda fez a janta também está lá, e a diferença é que lavar a louça, enxaguar, passar a esponja nos talheres e pratos e bandejas e cumbucas e canecas ganha um peso que não existe fora de mim, porque não quero estar ali, dentro de mim, dentro do homem de quarenta e dois anos que lava a louça enquanto pensa em esquecer que o celular já estaria apitando as demandas do trabalho a partir do whatsapp caso o aplicativo não houvesse sido impedido de apitar na tela, bloqueado numa resolução tomada há anos atrás. São os dias em que ali perto da noite eu vou até a varanda e olho pro céu, preciso olhar para a lua e quando existe a lua, ela esvazia o pensamento e talvez uma parte do peso que saiu da cama junto comigo.

Em todos os dias, eu levanto da cama. E até aí, nada mudou (ou quase, porque me mudei para o apartamento de Fernanda há cerca de um mês e meio e nunca mais dormi na minha cama, nem acordei no meu quarto). Todo o resto, sim, mudou. O corpo ainda é o meu, mas o mundo parece que não. O corpo segue envelhecendo, cabelo e as unhas não param de espichar, a língua não se cala, a vista não cansa de procurar por horizontes. Mas as ruas e as portas estão fechadas, as pessoas podem ser suspeitas e falar demais não convém. Eu estava de passagem marcada para daqui a duas semanas flanar por Roma e Lisboa de férias e cancelei minhas férias. Não tive forças para conseguir cancelar as passagens e remarquei a viagem para um utópico setembro no qual já não deposito tanta fé de que se realize, mas de todo modo está lá, pode acontecer, quem sabe.

Sem o mundo lá fora, só me resta o mundo aqui dentro. A vida é um bicho duro de ser vencido, afinal. Eu aproveito convívio diário com a tela do notebook para retormar o hábito de escrever e essa sensação de que não faz mais sentido ter pressa me tira a angústia que eu tinha ao demorar no texto. Quanto mais tempo me demoro no texto, mais fácil do dia confluir a meu favor. Eu gostaria de poder dizer aqui que, ao escrever, eu, o autor do meu texto, retomo uma pequena e íntima, porém minha como poucas coisas são minhas, sensação de ordem e controle da realidade, ou da ilusão de realidade que me leva a abrir uma garrafa de vinho (ou duas) todas as noites e não me preocupar se é alcoolismo ou desespero, mas apenas uma garrafa de vinho, ou duas. Só que eu estaria driblando o fato de que essa sensação de ordem e controle desaparecem diante do primeiro diálogo fora de tom que meus olhos pescam, e nem preciso de diálogos, basta a metáfora que me enchia de orgulho há dois dias perder sua validade, e daí o texto, que eu jurava ter em mãos, parece escapar delas com uma pulsante vida própria e eu não encontro outra resposta que não desembestar atrás dele – mas, sim, é esse tipo de coisa que me fascina na escrita, a luta que eu travo com meus demônios e fantasias.

O lado bom desses dias, de todos eles, é que ao cabo de cada um, havia Fernanda. Há. Haverá, espero.

(O título desse texto era pra ser “Fazer amor na pandemia” e a ideia original, pensada há nove horas, quando saí da cama e no lugar de lavar a louça, decidi ligar o note, era escrever outro texto. Não esse aqui, outro. Mas é esse aqui mesmo que acabou escrito, e isso já diz bastante sobre a pandemia e este homem que a descreve, a seu modo, em seu mundo. Um homem que deveria ter feito amor mais vezes na vida, mas é o que deu pra ser até aqui.)

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