Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

2.7.20

Dia 107: por Reginaldo Pujol Filho

Faz mais ou menos um mês que a Julia me confirmou o dia 2, esse que começa a acabar, como a data em que eu escreveria no diário. Lembro dela me perguntando se eu não conseguiria antes, porque isso dava uma esperança de não planejar mais um mês de isolamento. Lembro de não compartilhar da esperança e também de fazer questão de que fosse uma quinta-feira, porque quintas-feiras são dias mais tranquilos para mim. Um mês se passou e hoje pensei muito sobre ilusão e uma palavra que talvez devêssemos suspender do dicionário momentaneamente ou para sempre: controle. Manter essa palavra no dicionário só, quem sabe, como sinônimo de ficção.

fic·ção
(latim fictio, -onis, .ação de modelar, formação, criação, invenção, suposição, hipótese)
substantivo feminino
1. .Ato ou efeito de fingir. = DISSIMULAÇÃO, FINGIMENTO
2. Invenção fabulosa ou engenhosa.
3. [Cinema, Literatura, Televisão]  Criação de .caráter artístico, baseada na imaginação, mesmo se idealizada a partir de dados reais.
4. Fábula.
5. Interpretação ou relato .subjetivo de um .fato ou de uma .ideia.
6. [Retórica]  Suposição do orador para abrilhantar ou reforçar o discurso.
7. Controlar, ter controle

Essa é das tantas torturas do nosso tempo: esse bicho que cria agendas, bips, post-its, aplicativos de meditação, assistentes virtuais, pilotos automáticos, vê esfregado diariamente na sua fuça o caos, que, na verdade, é e sempre foi rotina. Apenas maquiamos ele bem com nossas parafernálias enquanto o mundo não resolve dar as caras. Um vírus invisível, um ciclone bomba como o de anteontem e acho que ontem também, um presidente desmiolado e desalmado, e pronto: onde está esse bicho superior, as lógicas da macroeconomia? Parece que esse é um pouco o nosso desejo como espécie: controlar, eliminar o acaso. Mas nunca conseguimos. De um mês para cá, a situação não melhorou no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre. Piorou. Curiosamente, porque Marchezan e Leite começaram, lá em maio, a se convencer de que estávamos controlando a curva. Não, essa curva é um touro brabo e vocês são uns vaqueiros iludidos. Acham que só porque se mantiveram oito segundos se sacudindo sem cair na garupa do bicho, vocês estavam no controle e podiam botar o bichinho para dormir. Olha o pinote que tomamos.

E a minha quinta-feira tranquila, na qual observaria o dia, seja lá qual fosse esse dia, e refletiria ao final dele, que desastre. Venho há uns quantos dias me equilibrando sobre prazos, correndo sem sair de casa e hoje não foi diferente. Ao refazer toda a pauta do dia para dar conta de um trabalho, me lembrei de como eu havia planejado essa quinta-feira ideal. Todas as férias, os churrascos, os feriadões planejados e convertidos em chuva na hora H já deveriam ter me ensinado que não adianta escolher a melhor data. Não faz parte das minhas condições.

De positivo hoje, além da situação privilegiada de ter casa e comida na geladeira, talvez o fato de não ter tido tempo para ver uma notícia sequer. Lembro daquele texto da Eliane Brum, a partir de ideias do psiquiatra Fernando Tenório sobre estarmos doentes de Brasil. Eu estou. Se pegar Covid e vier a falecer, podem botar nas comorbidades: doente de Brasil. E o melhor remédio, às vezes, parece ser a alienação. Tenho escolhido alguns dias para não me informar. E alguns dias, como o de hoje, em que passei oito horas lendo ficção de alunos e alunas sem parar, escolhem que eu não vou me informar. E esse vazio de notícias (embora, como uma criança no quarto escuro não deixe de imaginar que monstros estão escondidos nas telas escuras espalhadas pela casa) me faz bem. E depois me faz mal: porque me dou conta desse tratamento ao qual, em 39 anos de vida, nunca tive que me submeter. E agora, aos 40, parece ser uma necessidade.

Dias como esse, de tanta correria mental e nenhuma física, me levam a pensar, às vezes, em contas esdrúxulas: me pego somando as pelo menos três horas que ficava no ônibus indo e voltando duas vezes por semana da PUCRS, mais duas horas e meia das caminhadas de 15 minutos indo e voltando da natação, mais umas três a quatro horas de envolvimento com o jogo do Grêmio na Arena e outras duas do jogo na TV, mais umas três horas de um eventual bar com amigos, mais uma hora de deslocamentos para dar aulas na livraria... isso já dá mais de quatorze horas que não utilizo mais todas as semanas. Como fico acordado em média umas 16 horas por dia é praticamente um dia inteiro que eu teria ganho. Não tenho dormido mais, tenho assistido menos a TV, tenho entrado menos no Twitter e não posso acreditar que passo 14 horas desinfetando as compras semanais do Zaffari. Onde enfiei todas essas horas? Não tenho controle sobre elas. É lógico como não é lógico querer ter controle.

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