Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

7.7.20

Dia 112: por Douglas Ceconello

Algo que me ocorre nas últimas semanas é que talvez uma das lembranças marcantes da Ana sobre a sua infância seja o pai esfregando um pacote de massa com uma esponja cheia de detergente. Exige esforço pensar na quarentena de uma criança de dois anos. Ela estava começando um processo de socialização, então sente falta da escolinha e dos colegas. Ao mesmo tempo, passa os dias com a mãe e o pai em tempo integral, o que tem um aspecto positivo. Conseguimos acompanhar bem de perto as coisas que ela aprende. Está começando a contar histórias. Esses dias, nos disse que "o bebê, a mamãe e o papai foram passear de máscara de noite, sem guarda-chuva". É, de certa forma, o resumo dos nossos tempos. O Brasil da pandemia somos nós andando em noite de chuva sem guarda-chuva.

Somos privilegiados, essa é uma certeza. Estamos trabalhando em casa, protegidos. E aproveitamos esse momento em que a Ana se desenvolve e está totalmente em chamas. Nada detém essa guria: estamos exaustos e, ao mesmo tempo, maravilhados. Os dias dela são cheios de atividades, espontâneas ou enviadas pela escolinha. Tenho feito um esforço extremo separar uma coisa da outra. Existe a pandemia, com seu caráter desolador, mas também uma manifestação extrema de vivacidade, que é a Ana transformando a casa em um universo particular onde sucedem eventos impressionantes, como viajar de avião sentada em um pufe que é pilotado por um cavalo com a camisa do Inter.

Talvez por uma questão de autoproteção, não usamos os termos exatos para definir o que acontece. Quando me permito, a definição que me ocorre para o momento é "aterrador". Não apenas a pandemia, mas um processo que vem de algum tempo, que enveredou de vez quando o país escolheu arremessar-se no abismo do obscurantismo e da indigência mental. Desde então, a impressão é que o "tecido social" não foi apenas comprometido: virou farelo. E eu decidi mandar bastante coisa para o lugar em que habitam as coisas desprezíveis. Primeiro, a ruptura devido à bifurcação moral; depois, o distanciamento social pela pandemia. Como no conto de Julio Cortázar, somos empurrados cada vez mais para um canto da casa. E os cômodos disponíveis vão rareando.

Há algumas semanas, respondi um questionário de uma entidade sanitária que pretendia monitorar o comportamento das pessoas em meio à pandemia. O resultado apontou que estou muito abaixo da média em termos de "bem-estar". A rotina é exaustiva, a sensação de prazer está adormecida, as garrafas estão com problema de vedação. Mas não é de hoje, esse questionário maldito (e bem formulado) talvez não tenha notado. Os últimos anos foram exigentes, os meses antes da pandemia já estavam duros. Ana andava ficando doente com frequência e nossa gata estava morrendo. No momento em que decidimos pela quarentena, Maya chegava em casa bastante debilitada após duas cirurgias no intestino. Hoje, está roliça e recuperou a sagacidade de sua tenra juventude felina. O tumor pode voltar, então evitamos o otimismo, mas o fato é que Maya vive sua primavera particular em meio à pandemia.

"Em comparação a antes da pandemia, você acredita que está como?" Mais temeroso, é certo, mas o desalento não é de hoje. Antes disso tudo, tive fortes crises de ansiedade. Então, duas semanas antes do isolamento, comecei a fazer análise. Foram apenas duas sessões no consultório. Ao que parece, um Deus "onibobalhão" fazia lobby pela manutenção das minhas neuroses. Resolvi continuar pelo Whatsapp. Como o coronavírus não respeita sequer refúgios oníricos, passei a usar máscara também nos sonhos. Para quem vive no Brasil, acabaram as metáforas, então nas sessões os assuntos são diretos demais. Meus sonhos, aliás, se passam sempre à noite, às vezes estou numa plataforma cercado de água. A única saída: esperar a água baixar. Correr para o esgoto, que seja. Com tanta apologia à morte e falta de senso coletivo, acredito que o maior desafio pós-pandemia será continuar tendo algum apreço pela sociedade como um todo. E a misantropia não é exatamente uma postura que eu gostaria de repassar à minha filha. A motivação é egoísta, mas o eco talvez seja coletivo: o futuro dela é o que me obriga a acreditar que não estamos, caros amigos, irremediavelmente fodidos.

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