É como se me dissessem que não preciso ir ao colégio porque algo horrível se passou. É, também, como se aninhada e em suspenso, atravessada na garagem da casa de praia dos meus avós, o tempo apenas marcado pelo ir e vir dos adultos, alguém me perguntasse:
- Vai ficar o dia todo nessa rede?
De algum modo, muito cedo comecei a sentir que fui criada introvertida em meio a pessoas que vão lá e fazem, e acabei assimilando que a inação física, a solidão e o silêncio eram o equivalente a não fazer nada. Então saía – pelo menos saía –, cortando o vento em uma bicicleta em direção ao rio, para ficar sozinha e em silêncio. Só agora, quando sair é objeto de considerável culpa, é que estou conseguindo me desvencilhar dessa ideia de que pensar, inanimada, por horas a fio no sofá, sem falar com ninguém, não precisa significar que nossa, já são três da tarde e eu não fiz nada, isto é, o tempo, que era de sobra, de repente irremediavelmente perdido.
Talvez o que mais me desconforte durante a pandemia seja justamente a dissonância (junto a outras tantas), particular aos privilegiados e solitários como eu, entre aparentemente ter estoques de tempo (pois não estou no ônibus, caminhando na rua, ou mesmo dando aulas), e simultaneamente ter esse tempo que se foi, esse ano que veio como uma vez um historiador famoso definiu a categoria de presente: “um instante que mal nasce morre”.
Os dias não se confundem para mim porque ao lado da minha casa há um depósito de supermercado que, nos dias úteis, ruge com caminhões, todas as manhãs despertando com algumas interjeições e indo dormir às 21 horas com os sons típicos do alívio do fim do expediente. Para essas pessoas que escuto de longe, algumas das quais cumprimento abafada pela máscara ao alimentar meu vício em abóboras cabotiá, não há tempo de sobra. Para além de saírem e fazerem, muito mais do que eu, elas podem ter seu tempo cortado, subitamente, por estarem mais expostas ao vírus. Essa é talvez minha principal aflição: isso tudo estar acontecendo e eu não ter tido tempo (ter me demorado na vida, como alguém que lê um romance indolentemente) e ele ser assim, brutalmente fraturado. Esse medo ganha fatalmente contornos de pavor quando penso no fato de que enquanto esse tempo não se esgota, nesse momento em suspenso, não posso correr atrás dele.
(Às vezes corro para trás, tentando lembrar dos últimos meses, aqueles “antes”, em que tive as condições e o bom senso de entrar e sair de aviões e trens e barcos e ônibus; lembro da última vez que comi pizza – exatos quatro meses, hoje – e daí me aninho um pouco em um livro ou outro que me remeta aos idiomas e talvez a algumas ruas daqueles dias.)
Meses atrás não conseguia entender direito uma determinada situação e fui confortada por um amigo com o lembrete que está justamente tudo em suspenso. Grande parte das pessoas não fez o que ia fazer, o que queria fazer, o que pensou em fazer, e muito menos fará, tão cedo, coisas que inventou nesse meio tempo e que sejam drásticas demais, a não ser por extrema necessidade. Não precisava, ou melhor, não podia ter pressa, algo do qual ainda tenho de me lembrar, quando corro para remover o quadro da parede, afastar as cadeiras e esticar o tapete no chão para chegar, sempre cedo demais, na aula de yoga pelo zoom. Na época desses meus anseios os dias se emendavam, límpidos, azuis, agradáveis e um dos meus maiores desesperos – totalmente irracional – é que estivessem também suspensas a chuva e a troca das estações. Uma massa de ar polar entre dois ciclones, um dos quais me deixou um dia perdido, angustiante e sem energia, deixou claro que não.
Uma das primeiras coisas que me disseram quando entrei em isolamento, tonta de muitas horas viajando (literal e figurativamente), foi que deveria administrá-las para não deixá-las correr soltas, nem se alargarem em demasia. Portanto não fiquei, como ficava, quando jovem, totalmente em suspenso. Preenchi a semana de compromissos virtuais cada vez mais abundantes, a maioria deles voltados a não me deixar imóvel no sofá ou solitária e torta em uma cadeira, mas não menos contemplativa. Entre as muitas suspensões está também agora, diariamente, o ato de aninhar minha cabeça entre os cotovelos e deixar minhas pernas subirem em direção ao teto até sentir ou os quadris cansarem ou os dedos dos pés gelarem, na vã esperança de que o mundo fique – pelo menos enquanto eu estiver assim invertida – um pouco menos triste e absurdo. Se um dia esteve, jamais me contaram.
Que lindo!
ResponderExcluirRetrato do cotidiano muito bem narrado, condizentemente às tuas capacidades. Parabéns!
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