Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

16.8.20

Dia 152: por Rodrigo Alfonso Figueira

Hein, tu viu o meu e-mail?

Não, ainda não vi. Está metido em uma pilha de outros e-mails que eu ainda não consegui responder porque fico entrando em reuniões pelo Teams de meia em meia hora e escrevendo relatórios que ninguém vai ler. Mas isso eu só penso e não respondo. O que eu vou digitar na caixa de texto é não, ainda não vi, mas sei da tua urgência e te responderei em instantes. Resposta de um bom colega. Um bom colaborador, mesmo em tempos de pandemia, metido em um escritório improvisado dentro de casa.

Olho para a rua. Cai uma chuva fina. As nuvens já estiveram mais escuras hoje, especialmente pela manhã. Agora uma leve claridade entra pela janela, brigando com o tempo ruim. Um céu chumbado de agosto.

Pai, deixa eu te mostrar uma coisa.

Paro o relatório que estou escrevendo e que preciso entregar até às dezessete de hoje. Sinto uma pressão no peito. Leve, mas uma pressão. Minha filha mais velha me estende um livro e começa a descrever detalhe por detalhe de uma história. Passo a mão no rosto dela. Queria poder sentar no chão e ler a história com ela do começo ao fim. Mas o relatório, o e-mail do colega esperando resposta...

Boa tarde! Tens uns minutos? Preciso da tua ajuda urgente. 

Não precisa da minha ajuda, na verdade quer é me passar o trabalho que não pretende fazer. E com urgência. Também não escrevo isso. Apenas respondo na caixa de texto claro, diga. A pressão no peito de novo, um pouco maior. Minha ansiedade não me permite fazer outra coisa. Paro tudo e fico acompanhando o status da caixa de mensagem: digitando. Olho para o lado e a minha filha continua com o livro na mão. O relatório.

Pai, escuta.

O meu celular toca. Não atendo. Silencio a chamada e olho para a rua de novo. Não chove mais. A claridade cresceu e uma leve sombra se forma em torno do corpo da minha filha, ainda sentada no chão. As nuvens de chuva agora negociam com um sol preguiçoso de final de tarde. Agosto.

Então, consegue me ajudar? É urgente.

Já entendi que é urgente. Tudo nesse lugar é urgente. No corporativo as pessoas têm uma estranha maneira de pedir ajuda. As mensagens seguem piscando, me cobrando uma resposta que eu nem sei se tenho. O telefone voltou a tocar. Penso na minha mãe, mas não é ela. Um alerta pula na tela do computador sinalizando a próxima reunião pelo Teams. Silencio a chamada de novo enquanto ouço a minha filha contando um trecho da história para mim. 

E o relatório me esperando. O cursor parado no mesmo lugar, sendo cutucado pela janela de alerta da reunião. Quase dezessete e ainda me falta escrever uma página e pico. Já antevejo a próxima cena: um novo e-mail entrando na minha caixa perguntando se o relatório está pronto. O peito de novo. 

Pai.

Levo às mãos ao rosto e o esfrego com força. Fico preso por segundos numa bolha escura, fugindo de tudo que envolve este exílio social a que fomos submetidos. Social, não: humano.

Olho para a rua. Lá longe, onde o horizonte sinaliza que estou mirando para o Sul, vejo um clarão. Um traço alaranjado pateia as nuvens de chuva, ganhando terreno. Uma fina linha de incêndio colorindo um pedaço pequeno de céu, banhando o chão deste escritório enjambrado e o corpo da minha filha. 

Respiro fundo. Amanhã terá sol.

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