Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

18.8.20

Dia 154: por Merli Leal Silva

Vivendo de lembranças. Revendo as caixas de fotos dos últimos 30 anos. Sobrevivendo de coisas acumuladas na minha mente e no meu coração. Estou em slow motion, dia bom, dia ruim, dia ruim. O governo não cai, não tem nem ministro da saúde e o abandono é notório e vergonhoso. Desde 15 de março de 2020 que meus pés não saem do portão de casa. Tudo chega pela rede digital! Consulta médica, terapia, comida, roupa, livro, legumes e verduras orgânicos, papel de fazer cigarro, caneta, remédio... Tudo. Somos três, eu, minha mulher e nosso filho. Uma família homoafetiva que partilha a vida de forma intensa e verdadeira. Uma ilha de sinceridade e afeto. Nosso filho está terminando uma tese em ciência política, e, muitas vezes ao dia, fazemos debate de um capitulo. Afinal, o neoliberalismo e a financeirização no Brasil matam todas as nossas esperanças. Ricos cada vez mais ricos. Pobres cada vez mais pobres e sem esperança. A pandemia nos fez escrever mais, dormir mais, fazer taichi, yoga e pão. Na janela, ao sol, o mundo passa pela nossa cabeça. Olhamos quem está de mascara e quem não tá nem ai. Estamos exaustos pelo isolamento e pela falta de perspectiva da pandemia acabar. Sinto um aperto no peito e uma vontade louca de ter a minha vida de volta. Estamos ocupados por tarefas remotas que imitam “estar trabalhando”. Chega a cansar! Contudo, sem as tarefas, já teríamos saído pelas ruas de Petrópolis que nem negacionistas malucos! Quem explica tanta negação e falta de medo da morte? Sempre fui anti social, seletiva nas amizades, mas ficar longe dos amigos, familiares legais, dos alunos e da universidade tá sendo mais do que estou podendo suportar. Dos minions nenhuma falta. Nem raiva mais eu sinto. As crises de ansiedade se tornam crises de pânico assustadoras: o corpo dói cada dia num lugar diferente. Encho-me de florais, óleos essenciais, zoloft e donaren. Na crise intensa, lasco um rivotril. Não bebo. Já é um alivio. Canabis todo dia, na dose certa para não dar nóia. Nunca mais transei. Tem desejo, mas não tem clima. O dia de hoje é igual ao de ontem que vai ser igual ao de amanha. Nenhum veneno antimonotonia. Show do Nei Lisboa, ao vivo e em casa, toda a quinta, é outro alento. A música do Nei tem sido a trilha da minha vida desde 1985. Durante uma hora de programa canto, danço e dou risada com “todas as bobagens que eu já disse- que dariam para encher um caminhão”. A pandemia me deu coragem para projetos engavetados: escrevendo a biografia do Nei - criador e criatura, uma pesquisa acadêmica em parceria com uma historiadora paulista. Talvez seja o produto inovador da pandemia: biografar pessoas amadas. Queria botar o pé na terra, na jaca, na rua. Mas tenho medo. Tem um vírus mortal e não tem vacina. Como tem gente que acha que tá tudo bem? O sol se pondo na janela ganhou status de espetáculo! Durante o dia cada um de nós em seu computador - mas quando o dia termina - o reencontro é na janela para ver o sol se pôr. Hoje é aniversário do pai, nunca esqueço. Ele se foi em 2006 e não tem um dia que eu não sinta falta dele. Sonhos na pandemia são mais intensos e ele tá sempre nos meus. Dr. Ronaldo Moreira Brum, psiquiatra, estaria recebendo homenagens dos filhos e netos e curtindo a vida. Enquanto eu aqui pirando, ele estaria calmo e tranquilo terminando mais um livro, atendendo os pacientes on line e bebendo um bom vinho. Meu pai era tudo de melhor e corajoso na vida. Acolhia-me, acalmava, reluzia! Tudo que eu queria era poder te abraçar e te dizer que tu segues vivo nas minhas lembranças- em um momento em que lembrar é tudo que me resta.

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