Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

20.8.20

Dia 156: por Edgar Aristimunho

Dentro do supermercado, peço ajuda a quatro pessoas para encontrar o que buscava. Entrar numa loja que você não conhece normalmente dá nisso: ondas sucessivas de erros, caminhos cruzados, corredores  ocasionalmente pegando fogo, duas, três, quatro vezes de volta no mesmo lugar, como se eu estivesse dentro de um filme de Andrei Tarkovski, a cena caminhando dentro do quadro, um desenvolvimento interno lento, o plano avançando pelo tempo e não pela montagem, mas peraí, cadê a goiabada do Vô? Giro, rodo o carrinho, dou meia-volta, entro neste e naquele corredor, saio no mesmo caminho, a montagem não respeitando cortes, o filme vai se transformando em espelho, sobreposição de imagens, o registro daquele lugar se confunde com sua memória, unidade temporal episódica, cinema-poesia, Tarkovski era um gênio, mas espera aí um pouquinho o que estou fazendo com o tubo de mostarda na mão, o Vô não come essas pastas artificiais, a memória de nosso último almoço, ele me falando do azeite 0,2 % de acidez, recuamos no tempo, estamos em outros lugares, outra ceia, agora é Natal ele elogia o peru, a cereja, as frutas e essa imagem-pensamento me joga dentro do filme mais memorialístico do diretor russo. Os movimentos lentos de “O espelho”, o cromático, a frieza da memória, a cena como contemplação e então, resoluto, empurro o carrinho em direção à caixa registradora, como se diante de mim a atriz Margarita Terekhova levitasse na cena imortal criada, marca registrada daquela obra única no cinema. E enquanto relembro esse filme que assisti no final da noite passada, lembro que não encontrei a pomada de brilho para alumínio chamada alguma coisa prata, mas se é para limpar alumínio, como pode ter nome de prata? Alguém atrás de mim pergunta: vai passar ou ficar aqui? Empurro o carrinho nesse processo onírico de puta que pariu de supermercado.

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