Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

18.9.20

Dia 185: por Gabriel Brié

Prepara o cavalo!

Minha avó paterna era como estas senhoras centenárias que habitam os desenhos animados e a literatura. Era baixinha, costas arcadas, passos curtos e olhar atento. Cabeça envolta por um lenço de crochê que se avolumava com o coque impecável. Avental quando estava em casa e talco no rosto quando tinha que sair. Era tão parecida com essas personagens imaginárias que certa feita, quando um amigo desavisado se viu sozinho com ela na cozinha de casa, disparou correndo aos berros: - Socorro! Uma bruxa!

Às vezes, em uma manhã ensolarada, lavava o longo cabelo branco e se sentava ao sol para secá-lo e penteá-lo. Era um ritual. Tão longo quanto os fios que encostavam no chão. E guardava cuidadosamente, em uma caixa de sapato, os cabelos que caíam durante o pentear. Dizia que depois de morto a alma voltava para juntar os cabelos e as unhas (que ela também guardava, na mesma caixa, mas em embrulhos de pano separados). Então era melhor já ir guardando. - Imagina ter que juntar tudo e só depois a alma poder descansar! Dizia ela em tom de advertência. 

A idade da Vó Levina não era uma coisa exata. A sensação que tenho é que, com o passar do tempo, foi se construindo um consenso sobre isso. E sempre que se comentava a idade da vó, vinha à tona a história que ela teria feito a certidão de nascimento quando foi se casar. Então no Cartório de Registros, quando perguntada sobre a data do seu nascimento, não sabia ao certo o ano que tinha nascido. Registraram a idade que parecia ter. A única certeza é que quando morreu, em dezembro de 2000, tinha mais de cem anos. E esta certeza vinha do fato de ela ter presenciado, em 1986, já com idade avançada, pela segunda vez, a passagem do Cometa Halley. Era só fazer as contas e constatar que se tratava de uma anciã. Ela contava que quando o cometa passou ela era criança, mas que se lembrava de tudo. E que a passagem do cometa tinha iluminado a noite mais do que a lua cheia. – Dava pra achar agulha no paiol. Dizia ela. Quando o Cometa Halley passou em 1986, não deu pra ver muita coisa lá de casa. Chamamos a vó para presenciar aquele momento histórico. Ela olhou e disse que não era o cometa, e que estávamos enganados. Virou as costas e foi dormir. Foi uma decepção para mim. 

Este imaginário e suas histórias fantásticas era o que mais me encantava na Vó Levina. Histórias fantásticas para mim, porque para ela era tudo parte da realidade. Sacis, lobisomens, bruxas, Caiporas, Boitatás e outros seres fizeram parte da minha realidade enquanto convivi com a minha avó. Sei perfeitamente como é o assovio de um Saci, o que fazer caso apareça um lobisomem, e ainda me pego atento ao Caipora quando visito uma mata mais densa. Na quaresma também costumo ficar mais atento, só por precaução. 

Ela contava muitas histórias sobre o Bairro dos Prestes, que ficava perto do Bairro dos Fria. Lugar onde ela nasceu, viveu, se casou e criou os filhos antes de ir morar na cidade.  Neste bairro, quando ela era criança, havia a necessidade de se buscar o dia. Era um hábito do lugar. Uma prática fundamental na cosmologia e no dia a dia daquela comunidade. Todo dia alguém acordava bem cedo, encilhava o cavalo com os cestos ao lado, e partia em direção ao leste. Ao sinal dos primeiros raios de sol, esta pessoa dava meia volta com o cavalo e retornava para a sua comunidade trazendo o dia. Até hoje me encanto com a possibilidade de uma comunidade inteira acreditar nisso! Me lembro de perguntar: - Mas vó, por que vocês não ficavam esperando o dia chegar? Era só esperar que ele viria. E sua rápida reposta: - E se o dia não viesse e fosse perdido? Como iria ficar? Entendi que não buscar o dia significava correr o risco de cair em uma noite eterna. E ninguém ali queria correr este risco.

Hoje, dia 16 de setembro de 2020, completa seis meses que eu, minha companheira Maura Rodrigues e meu filho Arthur Roque, estamos em isolamento físico devido a pandemia de Covid 19. Morando no centro de Porto Alegre, me identifico com os conterrâneos da Vó Levina, na época da passagem do Cometa Halley, em 1910. Sinto que precisaremos buscar este novo dia, e que se não o buscarmos, corremos o risco de ficarmos nesta longa e mortífera noite brasileira.

3 comentários:

  1. É uma grande alegria participar deste projeto. Valeu Júlia;)

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  2. Delícia de texto!!! E vamos nós em busca de dias melhores, mais belos e inspiradores!!!

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  3. Texto maravilhoso.. Me fez sair um pouco dessa dura realidade q estamos vivendo.

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