Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

27.3.20

Dia 10: por Fred Linardi

8h
Acordo no horário programado no meu celular, com uma música aleatória da playlist Have a great day, feita por algo ou alguém do Spotfy. A música escolhida pelo acaso é Good Vibrations, dos Beach Boys. A canção, que não começa com arranjos instrumentais, mas sim com a própria voz acho que de Brian Wilson, e me tira do sono com um susto: Aiiii (I - I love the colorful clothes she wears). Parece alguém querendo me pregar uma peça, mas dou um só suspiro, pois o imaginário da música é mais forte e me leva às praias que conheço e à liberdade de uma Califórnia em que nunca estive. Nunca estive em nenhuma, aliás. Será Brian Wilson, ou Dennis, ou Carl? Nunca sei quem é quem nos Beach Boys. Não importa, nenhum deles está aqui tentando me pregar um susto e agora todos já cantam juntos as boas vibrações. Me lembro do que está acontecendo e fico satisfeito por ao menos podermos ouvir música e ler livros. 

9h25
Sento para escrever esta entrada de diário. Escrevo o primeiro parágrafo com a música dos Beach Boys na cabeça, enquanto o bolo que eu e Dé fizemos ontem à noite digere junto ao café quente que tomamos há pouco. A temperatura dos dias já está mais amena neste começo de outono, o momento que eu esperava para voltar a pedalar pela cidade. Hoje não posso – ou escolho não sair – nem andar até a praça aqui da rua, para levar a Aurélia passear. Ela olha para mim e, surpreendentemente, seu olhar me passa uma compreensão quase humana: estamos todos presos e não há nada a ser feito a não ser esperar. Não estamos presos, estamos protegidos – ela me corrige.

10h08
A diferença entre a popularidade dos Beach Boys e dos Beatles é que sabemos quem são John Lennon e Paul McCartney. Diferença é um ingrediente da identidade.

10h40 
Sei que não estamos vivendo um grande extremo aqui na América do Sul. Temo que isso seja uma questão de tempo. Os cientistas indicam isso. Os jornais replicam. No entanto a minha vida e a vida daqueles que conheço parecem seguir quase iguais, não fosse o confinamento. Enquanto nossos nervos são abrandados por músicas, livros, filmes, culinária e memes, imagino quais seriam os memes dos miseráveis rindo de nós, que estamos preocupados até quando vai ter gasolina, ou por não podermos sair de bicicleta pela cidade neste ameno clima outonal.

De qualquer modo, cada um vive o extremo a partir do que tem como referência. Deparar-se com isso traz uma porção de ideias, que nos levam à aproximação de um fim da vida. A finitude próxima nos invade com uma culpa gigante. Aquela impressão de que vamos morrer antes de termos feito o que importava. Por que não larguei o emprego e fui embora viver no campo antes? Por que não investi naquilo que sei ser o meu verdadeiro talento? Por que não virei a mesa antes que a conta chegasse? Agora parece que a conta chegou com preço alto.

A culpa é uma neurose de cura muito mais complicada do que qualquer virose. Ela nos impede de sermos diferentes. Ela nos iguala na mediocridade. Os cães não sabem, pois não a sentem. Eles e os Beatles. A culpa é a virose da alma. 

15h08
Esperar não é fácil. Ao longo do dia vejo fotos de diversas cidades, inclusive Porto Alegre, com carreatas a favor da volta ao trabalho. Não é complicado perceber que essas pessoas não estão a favor da economia. Fossem a favor dela, estariam exigindo medidas de uma das maiores economias do mundo. Ainda seria uma atitude estúpida sair às ruas, mas se fosse pela economia, que fosse para exigir a destinação do fundo partidário às soluções econômicas, por exemplo. Na minha mente inventiva e nada especialista em política ou economia, crio hipóteses:

- Não aguentam ficar em casa, pois estar em casa é estar com os seus e, acima de tudo, consigo mesmo. É o momento de olhar para dentro, e isso inclui ver diante do nariz os fracassos da sua luta por glória. Isso não é fácil. 

- São idiotas produtivos. Me lembro da máxima “tem gente que é tão pobre que só tem dinheiro”. Vendo as imagens do buzinaço (sim, ninguém se valeu a sair a pé em prol do trabalho de gente que não usa carro para trabalhar), adapto a máxima: tem gente tão vazia que, para elas, não existe hora digna que não sejam laborais. Não param o suficiente para saber que não é preciso fazer para existir. Neste momento, em especial, a existência de muitos depende dessa baixa de circulação e produção. Quarentena não é uma palavra inventada em 2020. A existência é mais plena do que a subsistência.
Da minha parte, não ouço o buzinaço. Meu bairro não é central. Eu estava em casa, vivendo a minha realidade, que não é mais suportável do que as outras. De qualquer modo, tenho tentado viver melhor a cada dia. Além do trabalho, dos livros, das músicas e dos filmes, tenho resgatado a minha identidade. Celebro na minha casa o que há de diferente – aquilo tudo que os negacionistas lá de fora temem. Como é bom poder tocar um instrumento de acordes originais. Como é bom poder tocar.
*
Comecei o ano desejando Feliz Vinte-vinte. Achava mais simpático do que dois-mil-e-vinte. Feliz 20-20! Twenty-twenty. Twenty-twenty-twenty four hours ago I wanna be sedated.

19h
Deu cinco da tarde e resolvemos sair, descumprindo os planos. Desde sábado em casa, a saída acabou acontecendo nesse dia estranho para isso. A minha culpa foi maior que a resignação da Aurélia. Já fazia quase uma semana que ela não botava o focinho para fora. Além do estresse que ainda temo que ela desenvolva, a quantidade de jornal usado para suas necessidades tem sido quase o triplo. Tenho um bom estoque, que vem pelas mãos da gentil faxineira do prédio, que divide entre ela e mim a pilha vinda dos velhos moradores que ainda leem jornal impresso. Nos últimos dias passei a temer se há algum covid19 no meio desses cadernos. Prefiro não pensar.

Somado ao confinamento da Aurélia, acabou o sal, o açúcar e outras coisinhas que estavam perto do fim. Usamos todo o kit limpeza instalado na entrada do apartamento. Álcool gel, lenço umedecido, compartimento com pares de tênis que não passam dali para dentro de casa. Tudo pronto para o banho de profilaxia do retorno – pés, mãos, patas e guia de coleira, maçanetas e espelhos para acender a luz. Banhamos uma toalha com água sanitária e a colocamos como capacho do lado de fora, para as solas de sapato e coxins de vira-lata.

No mercadinho, a dona concorda comigo quando eu comento sobre o desespero de quem não consegue ficar em casa. Ela concorda, pequena comerciante, diz: “eles precisam saber esperar, pois logo passa”. É que nem todo mundo está preparado para olhar a própria casa, eu complemento. Ela arregala os olhos e concorda de novo, sorrindo.

20h
Li o conto A preocupação do pai de família, de Kafka. Estarrecido com algumas correspondências sobre o presente. Mas o que faz Kafka senão isso? Agora vou fazer hambúrguer. Mais tarde, a sessão de cinema será Morte em Veneza. Amanhã é sábado e tudo pode ser diferente.

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