Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

28.3.20

Dia 11: por Priscila Pasko

Sábado/ 12° dia de quarentena

Sonho 1: Uma festa de gala. Diversas mesas redondas no salão. Vestidos longos. Alguém me beija no rosto e eu fico preocupada.

Sonho 2: Caminho no calçadão do Centro de alguma cidade. Pessoas circulando. Aos poucos, dou-me conta que, entre elas, há muitas ciganas. Passam por mim com um sorriso enigmático. Não falam, nem me pedem nada.

Meu dia preferido da semana. Há alguma promessa nas manhãs de sábado, uma esperança abstrata demais para eu defini-la. Melhor assim, o segredo.

*

Abro a janela do quarto. Pouco movimento na rua, levando em conta que seja sábado. Algumas pessoas insistem em suas corridas e caminhadas. Outras voltam da feira, do mercado. Retirei parte da rede de proteção da janela para enxergar mais adiante. Também para saber de onde vinha o barulho: do café aqui ao lado. Eram 9h quando escutei batidas, ruído de destroços caindo, serraram algum metal. Eu ainda estava deitada e com olhos fechados quando imaginei as faíscas luminosas em várias direções. Tudo chama a atenção agora. Qualquer sussurro grita.

Fiquei um bom tempo apoiada na janela. O seu Gerson, o chaveiro, concentrado, varrendo a calçada. Uma mulher caminhou por cima do montinho de areia, espalhando parte da sujeira. Não estou sozinha. Vejo que o cara do mercadinho da esquina observa o vai e vem da vassoura, que parece nova. No prédio da frente, o Gato Amarelo aproveita o sol, se distrai com algo invisível a mim. Logo ele deixa a diversão de lado e se espreguiça. Quero que o gato me ensine a sobreviver à quarentena.

*

Hoje o Jeferson foi ao mercado. Era a vez dele. Estamos nos revezando. As compras são feitas uma, duas vezes por semana, no máximo. Isso, para evitar nossa exposição - e porque é extremamente cansativo sair de casa. Precisamos adotar inúmeras medidas higiênicas: ele chegou, foi direto ao banho. Eu coloquei todos os produtos dentro da pia e lavei um a um. Impossível não refletir a que ponto chegamos. Lavei meia dúzia de ovos. Quebrei um deles em minha mão. Talvez eu tenha exagerado na força - eu sempre exagero na força. Nas embalagens de papel, passei um desinfetante. Em seguida, limpamos a casa com um pano molhado etc etc.

Tive que sair no final da tarde para ir à farmácia. Causa um estranhamento - e, hoje, certa tristeza - perceber, na prática, as ações preventivas. Paguei o medicamento com cartão de crédito. Para isso, precisei ficar na ponta dos pés para poder alcançar a máquina. Entre o balcão e eu, uma faixa exigia distanciamento. Assim que digitei a senha, a moça do caixa limpou o equipamento com álcool. Aquilo, o gesto. Me abalou. Acho que ela sorriu atrás da máscara que cobria quase todo o rosto. Sorriu com o olho.

Sei, obviamente, que as medidas são necessárias. Apenas lamento que, além do vírus, estejamos apagando cheiros, marcas, sinais. Qualquer vestígio do outro. Sem migalhas de pão pelo caminho. “Aguarde do lado de fora”, “mantenha a distância, por favor”.

*

Assistimos Self Made. Depois fiz a sequência de Pilates, do Circo. Sigo com os exercícios, três vezes por semana, além dos alongamentos nos outros dias, acompanhada do Jeferson. O lugar garantido é o corpo, li, certa vez, em um estúdio de dança.

Tenho lido poesia antes de dormir. Mesmo assim, desde que a quarentena teve início, tenho sonhado muito pouco. Amanhã vou dedicar mais tempo à leitura. Preciso sonhar mais.

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