Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

30.3.20

Dia 13: por Charles Dall'Agnol e Felipe Massaro

SEM ABREVIAÇÕES

FELIPE: Cara! Como você está? Certo que sempre foi um ermitão, mas mande notícias da quarentena!

CHARLES: Felipe, cara, saudade. Nesse momento de distanciamento, obrigado por ter entrado em contato. Então, meu... Está uma verdadeira montanha-russa! E você me pegou na parte mais “emocionante” do circuito. Home-office não é pra mim, o isolamento total está no seu vigésimo dia apenas e não está me fazendo nada bem. Logo após o carnaval, ser enjaulado assim, fiquei odiento, pirando dentro de casa com a sensação de que tudo acabou antes mesmo de começar. Estou preso em monólogos tortuosos de nostalgia por uma vida perfeita. Puro ressentimento. Já engordei uns 5 kg. Cancelaram um projeto meu. Foi um golpe, que eu recebi em cheio. Meu pai também não está nada bem das pernas. Estou abatido, Felipe. Mas como estão as coisas por aí? E acima de tudo: como você está reagindo a quarentena?

FELIPE: Charles, mesmo com notícias tristes, é um alento receber tua mensagem em meio a este amontoado de garrafas boiando nas redes sociais. Mensagens de esperança, links de desespero e infográficos sóbrios perdidos em grupos e feeds revoltos, sem respostas ou comentários. É sempre bom ter um retorno. Por aqui as coisas estão difíceis também: muita informação, medo e quilogramas adicionais (estou perdendo pra você, 3kg por enquanto). O que muda é que na Noruega não temos essa dose de sacanagem que Deus, brasileiro, reservou para os seus conterrâneos. Espero que os teus projetos voltem logo, quando esse pesadelo acabar, e que teus pais fiquem bem. Aqui continuo trabalhando, apreensivo, a tese parada, a musa voltou pra floresta, o sol chamando lá fora...

CHARLES: Eu sairia de casa, preciso muito ir dar uma corrida no parque – eu que gostava tanto de sol agora acho excessivo e só me sinto feliz quando acordo de madrugada pra curtir aquele silêncio que me tira de mim mesmo. Sim, porque minha mãe já acorda me ligando pra saber como eu estou e pra me impedir de ir. Me ama tanto que me sinto o próprio inseto do Kafka, Felipe! Sou um gorila na jaula, realmente. Logo após o carnaval, ser trancafiado assim... Escrevi uns poemas. Mas muito eróticos.

FELIPE: Mas são os melhores! Hehe Você me apresentou o Knausgård, sabe o que é o inverno norueguês. Aqui, desde outubro vivemos na escuridão de Oslo. Ontem pela primeira vez encontrei uma leva de formigas escandinavas na cozinha (são iguais às do Jardim do Salso). Depois de tanta noite e tanto frio, vemos enfim a claridade lá fora, mas continuamos presos aqui dentro, quase indiferentes à primavera. Uma sensação estranha de que o tempo já não é mais o mesmo, de que estamos numa grande insônia transatlântica... ou de que sonhamos no fuso horário de Brasília.

FELIPE: Digo isso, mas acho que você foi dormir.

FELIPE: Sobre esse lance do tempo. A pandemia chegou para nós algumas semanas antes do que aí no Brasil e, lendo alguns dados epidemiológicos e modelos matemáticos, fomos capazes de ver o futuro, como que numa espécie de astrologia reversa, microscópica – e um tanto óbvia. Alertamos amigos e familiares: vão ao mercado, isolem os idosos, se preparem, a tempestade está chegando na América Latina. Um negócio de profeta amador… um peso enorme, o desespero de abrir o jornal e pressentir a chegada dessa força que faz as extremas-unções de Bergamo serem dadas por Skype; essa face da morte que nos mostra a solidão vinda do Sul (lembra do siroco em Veneza?) e eu sem entender palavra do que diz o Aftenposten, Det ligner på krig, ikke sant?, porque o Google Tradutor às vezes não funciona no Google Chrome do celular. Enfim, estamos aqui mais preocupados com o Brasil do que com nós mesmos. Meu pai virou um bolsonarista doído. Tentei traduzir e retraduzir minha própria mensagem, em vão. A realidade talvez chegue muito dura para alguns membros da minha família, como chegará para muitos brasileiros.

CHARLES: Oi. Bom dia. Pois então, minha prima disse que por SC já estava normalizando tudo, que só faltava o transporte público. Ontem, aqui em POA, passou uma carreata na avenida Ipiranga com gritos de “o povo quer trabalhar! Deixa o povo trabalhar!”. E minha vizinha que já tinha dores nas costas em 1964 continua indo no caça-níquel clandestino da mercearia. Ao mesmo tempo a guarda municipal faz rondas – em Belém Novo e no Moinhos de Vento – obrigando as pessoas a ficarem em casa! Na garagem do meu prédio, um vizinho me mostrou sua 9mm, me falou das balas traçantes e da fabricação argentina e do treinamento e dos games que joga. Bom, você deve ter visto o discurso do Bolsonaro! Deve ter imaginado o impacto disso no povo! Uma loucura...

CHARLES: Tá aí um outro vídeo do presidente. O que é esse cara??? Ele não tá vendo o caos em Nova Iorque? O que aconteceu em Milão, na Espanha.... parece que o governador de SC mudou de ideia, minha prima falou. Tudo acontecendo tão rápido!

CHARLES: Acho que você já foi dormir, esqueci do fuso...


A janela está aberta. Latidos, uma conversa indistinta na televisão do vizinho do 312, um pássaro em marcha miúda dançando na lama acumulada no meio-fio. 


CHARLES: Estou entediado. Fiquei imaginando como você me responderia.

FELIPE: Esse discurso do Bolsonaro foi escrito e revisto por muitos e muitos assessores. Eles querem o caos! Nós, que temos o privilégio de poder estar dentro de casa, que temos uma casa, devemos fazer bom proveito disso. Felizmente temos acesso à informação e um nível de conhecimento que nos permite minimizar os riscos. É uma situação sem precedentes e talvez nunca mais o mundo passe por algo igual enquanto vivermos. Ou talvez isso aconteça com cada vez mais frequência, não sei. Não temos como saber, mas uma coisa é certa: vamos precisar aprender, cada vez mais, a viver com o desconhecido e o imprevisível ao nosso lado. 

CHARLES: Ah, o sono não vem! Já vi e li tudo o que existe! Entretenimento e cultura não significam mais nada pra mim. Voltei a anotar meus sonhos nessa quarentena. Às vezes são só imagens, “dinossauros comedores de calcinhas”, “monstrengo de pudim claro”, ou frases como “lenta é a dor infinita” – quem me disse essa foi o Larry David; subíamos uma montanha verdejante e ele tirou o tênis e a meia e enfiou um belo dum alfinete no seu próprio pé e disse lenta é a dor infinita. Em outro, caminho numa estrada, mas estou de olhos fechados, dormindo e caminhando, então vou atravessar a rua, aparecem milhares de ciclistas, e causo um grande acidente, e, ao terminar de atravessar a rua, escuto uma voz bem pertinho do meu ouvido dizer “a maçã está pronta”. É isso, é esse tipo de coisa o que mais me anima no isolamento. Ficamos mais próximos de nós mesmos... Está vindo, enfim, o sono...

FELIPE: Bom dia!

CHARLES: Bom dia!

FELIPE: Essa noite sonhei que anotava no seu caderno um sonho meu...

CHARLES: Está tudo muito estranho... também sonhei com você.

No caderno de sonhos de Charles está escrito assim:

30/03/2020

Estamos em uma grande varanda da casa de campo de algum familiar, sentados ao redor de uma mesa de jantar retangular rústica. É noite. Olhamos para o horizonte. Por trás das nuvens pretas, o céu está vermelho como se coalhado de framboesas frescas. Ficamos admirados com a beleza do fenômeno. Vindo de dentro do casarão de madeira, uma mulher surge atrás de nós. Não vemos o seu rosto, mas ouvimos sua voz dizer: “é preciso esconder a arma”. Estamos agora intrigados com a associação entre o céu vermelho e a necessidade de esconder a pistola 9mm, que não havíamos notado à nossa frente, sobre a mesa. Quando olhamos para o pátio do jardim, abaixo do pequeno lance de escadas da varanda, vemos os convidados da festa jogando cadeiras e revirando as mesas. Estão tomados pela cólera. Todos brigam entre si.

Nos olhamos e uma só voz sai de nossas bocas: “é preciso inventar uma nova maneira de lidar com a morte”.

A mulher sem rosto sussurra, como se fizesse parte de nós: “é lenta a dor infinita da História”.

Ao fundo, toca Haircuts for men: nothing special, nothing wonderful.

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