Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

31.3.20

Dia 14: por Lu Thomé

Acordamos. Eu digo: bom dia, filho. E ele responde: bom dia, mãe.

As manhãs, as tardes e as noites são rápidas por aqui. O tédio ainda não encontrou uma brecha em nossa agenda. Embora mencionar "agenda" seja falso. Porque, de fato, seguimos sem uma programação estabelecida. Durante o isolamento, temos os compromissos das refeições e apenas outros dois: o sol na rede, entre 10h e 11h, quando a luz toma conta da sacada; e a aula de taekwondo do Lucas pelo Zoom às 15h. O restante vai acontecendo. 

O verdadeiro e grande obstáculo é dar conta de uma criança de sete, quase oito anos, cheia de energia, querendo brincar e que pergunta a cada minuto quando poderemos sair de casa. Você que está colocando as leituras em ordem, maratonando no streaming ou faxinando a casa inteira: parabéns. Por aqui, a missão é encontrar coisas que possam entreter o pequeno. O ritmo escolar reduziu e (confesso) tenho ignorado os e-mails com exercícios e temas. Preferimos outras atividades. Já conversamos por horas, menos sobre o vírus e mais sobre as teorias dele de que vivemos em uma narrativa onírica. Nas palavras do Lucas: o sonho de um cara meio maluco, quem sabe. Ele encenou uma grande guerra com bonecos e desenhou os cenários. Já vimos duas vezes todas as temporadas de O incrível mundo de Gumball (que eu amo) e uma vez os episódios de Clarêncio, o otimista (que eu detesto).

Hoje começou igual a todos os dias das últimas duas semanas. Café da manhã. Lucas na sala vendo tv, e eu trabalhando em ritmo usual. Banho de sol na rede. Almoço. Conversa pós-almoço. Mais trabalho para mim e lápis de cor para ele. Bolo de lanche para ele e café para mim. Aiáá, aiáá, aiáá às 15h no meio da minha sala. Depois seguiremos com mais tv, mais um lanche, janta, tablet para ele e um livro para mim e vamos dormir. As eventuais e tensas saídas para a rua (supermercado e farmácia) eu deixo para fazer sozinha, nas folgas que o Lucas vai para o pai. E, nestas excursões, é fácil notar o aumento da distância que acompanha a redução dos sorrisos. Como se qualquer afeto possa também transmitir o vírus, escolhemos segurança e leves acenos de cabeça.

Às vezes, bate o cansaço. Já dormimos mais do que o relógio permitia. Já acordamos cedo. Já madrugamos fazendo qualquer coisa. Ele já me disse "tu está de saco cheio de mim" e era verdade. E já falamos mais "eu te amo" do que em muitas outras épocas. Eu te amo. Também te amo.

E, talvez, o momento mais revelador tenha acontecido na rede. Estávamos amontoados. Ele: o cotovelo acavalado no meu braço e um celular velho nas mãos jogando Tape it up. Eu: esparramada no tecido e com a mão apoiada no chão, impulsionando de vez em quando para garantir um balanço. Vai e vem. Vai e vem. Foi no sábado. Dia do meu aniversário. Lucas disse: vamos tirar uma foto e tiramos com as línguas de fora e caretas tenebrosas. E depois veio: tem uns vídeos aqui.

O que veio foi catarse: por mais de três minutos, acompanhamos som e imagem de uma caminhada nossa até o supermercado. Duas quadras e meia. De diálogo, passos e perguntas. Algum YouTuber ensinou que não se filma os rostos. Então, Lucas mirou apenas a calçada e os pés. Pelo chinelo que ele usava imaginei que era dezembro. A minha saia jeans longa e os tênis brancos. O play avançando e uma sensação gigante de nostalgia foi preenchendo os espaços do pensamento. As nossas caminhadas quase diárias para saudar os cachorros da rua e comprar tomates. Sempre compramos muitos tomates. Um ritual que, agora, perdeu o sentido. Que não existe na quarentena. E que, bem possível, passe a carregar o peso dos dias que estamos aprendendo a viver.


É feito um perfume de flor que enfeita o ar. Só que é mudança, transformação.

Muito se fala sobre a necessidade das pessoas encararem o fato de que o mundo não será mais o mesmo. Eu acho que as pessoas não são mais as mesmas. Pelo menos aquelas que se depararam com algum sinal ou reflexão. Aquelas que, no meio do caos, do medo e da incerteza, conseguiram - como eu e o Lucas - elaborar algum tipo de arqueologia genética. Estamos aqui. Escavando carinhos e receios, e seguindo no isolamento presente para aguardar a versão futura de um passado nosso que já está perdido.

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