Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

21.3.20

Dia 4: por Moema Vilela

8h. Tinha colocado o despertador para 8h30, para assistir a uma aula de uma amiga no Instagram, mas acordei antes. Tema da aula: recursos do Zoom, uma plataforma de videoconferência, para professores/as em transição para as aulas à distância. Tenho dormido menos de cinco horas nos últimos dias. Costumava gostar de dormir sete ou oito horas, antes. Ainda mais em final de semana. Falo para o José que vou fazer um bolo de milho porque sábado é dia de bolo. O bolo é aprovado, “só que não existe mais sábado", ele diz. Agora todo dia é dia de bolo, todo dia é dia de ver capotar minhas referências mais naturalizadas: o tempo, o espaço, o gesto tão simples de tocar meu próprio rosto enquanto assisto à minha amiga colocar um cactozinho de crochê na frente da tela do computador. "Faz de conta que esse é um aluno", ela diz, para ilustrar como ficaria a visualização. Minha amiga está de maquiagem, eu estou de cabelo sujo e pijama de oncinha. Me despeço com gratidão, coração vermelho e um beijo.

10h52. Ontem consegui não acordar e olhar os números de mortos da Itália e da China para ficar traçando cenários para o Brasil, calculando possíveis paralelos de progressão a partir do que vi em um punhado de entrevistas e dois artigos científicos. Era a primeira coisa que eu vinha fazendo ao acordar, nos três dias anteriores. Ontem disse para mim mesma parar com isso. Não tinha nada de novo ali para mim, ficar repisando essa realidade brutal não ia ajudar ninguém a sobreviver nem a ser mais feliz. Isso fui eu me convencendo. A necessidade de informação é justíssima, geradora das melhores decisões, de autonomia, também de cuidado coletivo... Mas não é fácil digerir e regular internamente esse fluxo de informação, bololô de emoções, grude pegajoso de telas. Tenho falado com muitas pessoas, todos os dias, centenas nos últimos três dias, em grupos e individualmente. Anteontem foi um dia pesadíssimo. “Amanhã você vai se ocupar de outras informações”, eu me determinei. E me obedeci. Mas sei que me peguei, umas três ou quatro vezes, como Orfeu no inferno querendo ver Eurídice. Entendo esse seu titubear, Orfeu. Queria saber, com esses olhos que a terra há de comer, se Eurídice ainda estaria ali, né? Vai que algo novo surge e muda tudo? Como todo detox tem seu tempo de atuação, hoje acordei e nem lembrei de nada disso - de número de mortes, de leitos, de fomes nessa recessão que se aprofunda a cada madrugada. Só lembrei ao escrever o diário. Coisas que, extraordinariamente, não fiz hoje: não trabalhei demais com as aulas, não fiz escutas empáticas, não estive em muitas ligações e chamadas de vídeo, quase não vi notícias sobre o coronavírus.

13h No grupo do condomínio no WhatsApp, combinamos de revezar a limpeza das áreas comuns. Durante todo o dia houve fotos e comentários sobre a lavagem do pátio, subsolo, bancos, elevadores, botões, maçanetas, campainhas. Carrinhos de mercado. Uma das vizinhas se ofereceu para começar hoje a do nosso andar. Contou que tinha usado água sanitária pura, sem diluir, depois de o professor de violino do 5º andar comentar sobre qual seria uma proporção correta de água e Qboa para higienizar o piso. De noite, meu coração deu um salto ao ouvir a campainha. Só uma semana de isolamento mais completo e tanta coisa parece agora já muito distante do ordinário. Em dois ou três metros de distância da porta, o vizinho com um pano na mão alertava para cuidarmos com o chão molhado, que ele tinha acabado de lavar.

18h. O YouTube não está carregando no meu login, que tem os canais de yoga selecionados na semana passada, então coloco na busca “yoga” e clico num dos primeiros vídeos que aparecem, porque tem uma paisagem estonteante. Verdes refrescantes, água que brilha com o sol. Grito para o José na cozinha se quer se juntar e ele vem. Descobrimos que o vídeo é da Sibéria, de 2019. A professora propõe uma série veloz e avançadíssima. Mudo para outro vídeo, no mesmo canal, cujo título é “Para iniciantes”, e que é também avançadíssimo. Suamos, nos batemos, passamos um sufoco. Vira aqui, dobra ali, postura da cobra, do cachorro, do morcego.“Relax and let go of stress and tension". Ficamos rindo, que se não tivéssemos os dois experiência com aulas de yoga amanhã não levantaríamos. Quando fazemos yoga ou exercícios juntos agora, nos esticamos um sobre o outro na sala pequena, e não nos incomodamos com isso. Depois que a aula acaba, aparecem as próximas sugestões de vídeo, e vejo um do mesmo canal enviado dois dias atrás, com as palavras Covid-19 no título. “Strange times". É a professora e o namorado. Estão em Vancouver. Falam para os seguidores do canal mandarem pedidos sobre o que poderia ajudar nesse período. Falam que há a possibilidade de doação de algum valor pelas aulas, mas que se alguém não puder não importa, o importante é fazer o que se precisa para apoiar a saúde mental de todo mundo.

20h44 Minha mãe falou para eu não assustar minha avó de noite, só de dia. Essa avó foi para a fazenda antes de tudo isso acontecer, sem televisão, rádio e internet, e é difícil para ela conceber esse novo mundo.

21h59 Quero pegar um chocolate, mas está na caixa da última compra e tenho preguiça de desinfectar. Tomo água com gás com limão, bem feliz.

23h19 Tanta coisa aconteceu hoje comigo, de que não falei. É mesmo muito difícil conceber esse mundo. 

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