Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

24.3.20

Dia 7: por Alexandre Rodrigues

Uma das piores coisas sobre antecipar uma pandemia, aprendi a duras penas e você deve saber a essa altura, é o quão difícil é calcular um estoque.

Passei a comprar mais comida no começo de fevereiro. Por obrigação profissional, estava atento ao dia em que o vírus começou a derrubar bolsas de valores, 24 de janeiro, para ser mais específico. De modo que a cada ida no Nacional na Encol, um lugar triste, mas que não substitui a tristeza essencial de meu supermercado anterior, o Nacional da Protásio (era mesmo um dos lugares mais tristes da Terra), passei a comprar comida a mais.

Macarrão, arroz, feijão, mais macarrão, a despensa foi se enchendo, eu pensando nos preparadores, aqueles malucos nos Estados Unidos que eram ridicularizados por passar a vida abastecendo abrigos nos Estados Unidos onde poderão viver por meses, anos, a essa altura gritando para todos nós: “VIU, VIU!”  Estava virando um deles.

Tudo foi feito razoavelmente antes das pessoas se darem conta do que viria, sob o olhar cético da minha mulher e a constatação velada da babá da minha filha de que eu enlouquecera de vez. De modo que ali pelo dia 1ª de março estava pronto. Se os supermercados lotaram quando o isolamento se tornou inevitável, não é culpa minha.

O que não quer dizer que tenha sido muito bom nisso. Macarrão e algumas outras coisas foram na medida certa, assim como a quantidade de frango. Papel higiênico, estamos ok. Mas uma geladeira, principalmente um congelador, dificilmente consegue guardar comida para três meses.

E velas, por exemplo. No momento, contamos, Simone, eu e Dora, com dois tocos e a confiança na bateria do celular se a luz faltar. Simone lembrou dos produtos de limpeza. E precisamos de vegetais frescos, que aprendi a desinfetar em um dos 1.113 textos que li sobre me proteger. E pão, sou um desses infelizes que precisam comer pão.

De modo que sábado, com a sensação de derrota, liguei para o mercadinho e encomendei tudo que faltava. Quando o entregador chegou, saí pela garagem, deixei o dinheiro numa pedra e disse a ele, um cara que conheço, com quem já fiz brincadeiras mais de uma vez, para pegar ali, me mantendo a uns cinco metross.

Depois de ser fuzilado pelo olhar de quem não acredita que aquilo está acontecendo, sem a menor crença de que minhas desculpas foram aceitas, peguei as sacolas, entrei pela garagem, subi pelas escadas e, deixando tudo em um canto, depois de lavar as mãos, desinfetar, lavar de novo e tomar banho, fui verificar se estava tudo certo - estava.

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Também não quer dizer que tudo iria ficar tranquilo. À noite, abastecidos, Simone veio me avisar.

– A chave da despensa não abre.

Algum maníaco decidiu que uma fechadura doberman, que tem três linguetas e é à prova de arrombamento era a ideal para proteger minha despensa. Devia ser alguém que valorizava a comida, mas ignorou algo: fechaduras doberman travam muito fácil.

A sensação de desespero começou a dominar à medida que tentava e não conseguia girar a chave. Quando nem a caixa de ferramentas deu jeito, Simone e eu nos olhamos: teríamos de chamar um chaveiro.

Nunca uma discagem foi tão difícil e certamente nenhuma outra foi acompanhada do pensamento de que meu epitáfio um dia poderia ser “Morreu por causa de uma chave”. Quando ele chegou, uns 40 minutos depois, não estava menos intranquilo.

Por sorte, o trajeto até a cozinha é curto, o que não me impediu de observar cada lugar onde pisou - descalço - e tocou. O conserto foi impressionantemente fácil. Poucas vezes me sinto tão burro na vida como observando um chaveiro fazer às vezes em dez segundos o que não consegui em uma hora.

Dessa vez, ele tirou uma chave de fenda, enfiou na fechadura e bateu com um martelo até abrir. Foi meio bruto, mas estava concentrado: o tempo todo, enquanto o observava trabalhar, tentava verificar se estava fungando ou parecia febril (como alguém aparenta febre, aliás?).

Finalmente a porta não resistiu mais e abriu em menos de um minuto. A fechadura, lógico, arruinada, mas tudo bem. Depois de pegar o dinheiro (em cima da mesa, a três metros de distância) de mim, se despediu e saiu. Precisei apenas limpar o chão, as paredes, a mesa, a fechadura e, depois de fazer tudo isso uma segunda vez, libertei Simone e Dora do quarto.

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É paranoia demais, eu sei, mas ter uma filha de um ano e sete meses muda tudo a respeito de como seria o confinamento em outra situação, Começa pela busca constante de como equilibrar o home office e cuidar de uma criaturinha linda, maravilhosa, divertida, a maior pessoa do mundo e mais autoritária do que Stálin.

Mas também existe o medo. Vivi com zero medo na vida até 9 de agosto de 2018. Quando Dora nasceu, foi como se a médica, no fim me entregasse um balão imenso: “Toma. É seu medo”. Em dias normais, o medo rege muitas atitudes e pensamentos. Medo dela não respirar ao dormir, de se engasgar, de cair e se machucar, de não ter como sustentá-la…

Esse sentimento se exacerba a níveis gigantescos agora. Mesmo assim há algo de muito familiar na rotina. Falo disso da próxima vez.

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