Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

2.4.20

Dia 16: por Luciano Mattuella

Cada um vive a sua catástrofe íntima.

Venho atendendo - sou psicanalista - exclusivamente online, de casa, há 17 dias. Algo que tenho aprendido com meus pacientes nestes últimos tempos é que a pandemia não é impessoal, ela tem um rosto, um cheiro, um gosto, muito especifico para cada um. Ainda que nem todos nossos corpos tenham sido contaminados pela infecção, há um contágio que parece mais alastrado, e também mais profundo: estamos lembrando mais de nossos sonhos.

Os sonhos são os anticorpos do inconsciente.

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Acordei às sete e trinta com a mesma sensação dos últimos dias: a de que eu deixei de fazer algo no dia anterior. Os meus sonhos têm sido a repetição mais ou menos de um mesmo roteiro: estou em algum lugar remoto (uma cidade pequena, um vilarejo, uma ilha) e fico sabendo de alguém que precisa de ajuda. No sonho desta noite, alguém me falava de uma pessoa que teve um infarto - não lembro bem se era isso - e eu me sentia na obrigação de ajudar, de fazer algo. Eu via um hospital ao longe, em cima de um morro (palavra estranha: morro; palavra que dói na polissemia). Era um hospital pequeno e eu duvidava se daria conta da complexidade do caso. Surge agora a analogia com o castelo, de Kafka. Talvez porque ontem uma amiga psicanalista enviou um vídeo sobre a pandemia em Praga e ao fundo estava lá o castelo, indiferente às mazelas do tempo. Praga, peste, vírus.

Freud, em sua primeira viagem aos Estados Unidos, confidenciou a Jung - à época ainda eram próximos - que estaria “levando a peste à America”. No meu sonho, eu não consigo chegar a tal hospital - pequenas tarefas vão se impondo, entraves simples que consomem tempo. Terá morrido o homem infartado?
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Meus sonhos dos últimos dias são escanções do inacabado: não conseguir sair de um shopping center lotado, não poder desviar de alguém na rua, não dar conta de levar alguém até o hospital. Narrativas da impossibilidade. Lembrei de Sarah Manguso, falando sobre o seu hábito de manter diários: "Apesar do meu contínuo esforço - em público, de modo privado, no meio da noite, em veículos em movimento - eu sabia que eu não conseguiria replicar a minha vida inteira em linguagem. Eu sabia que a maior parte dela seguiria com meu corpo em direção ao esquecimento.”

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A linguagem como um mar que banha um corpo de terra. Alguns dias a maré está alta e o mar avança, dando sentido ao deserto. Em outros, maré baixa, corpo exposto. De toda forma, há também aquilo do mar intocado pela terra: a profundidade que assusta. Funduras da palavra. Os sonhos não só como anticorpos, mas como escafandros: a profundeza íntima é mais ampla que a pandemia. É por onde sairemos disso tudo: por dentro.

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Tenho sentido falta das pequenas coisas da vida: chegar cedo ao consultório e olhar a caixa de correio. Adoro revistas. Quase sempre tem alguma à minha espera. Sentar na poltrona tomando um café e organizando a agenda antes da chegada do primeiro paciente. O barulho de alguém entrando na sala de espera.

O mundo todo parece ter virado uma imensa sala de espera.

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Escrevendo esse pequeno texto, percebo que aquela angústia inicial, dos primeiros dias de isolamento, virou algo diferente. Apesar dos meus sonhos, começa a surgir uma sensação boa de não precisar estar em todos os lugares, cuidar de todos e de tudo ao mesmo tempo. Uma relação mais próxima com a minha insignificância parece estar sendo libertadora. Preferi acompanhar as notícias apenas pelos sites de jornais. As redes sociais amplificam tudo: a tristeza, o susto, a indignação. Sempre detestei esse imperativo de indignação das redes, como se a revolta fosse uma moeda de troca. Caronte e a moeda. Atravessar o rio.

Ainda que o mundo se imponha, sinto que a gente tem a possibilidade de não responder diretamente ao peso da realidade. Sim, temos um genocida como presidente - mas os governadores, apesar de tudo, têm sabido ignorar o governo federal. Sim, é importante acompanhar o alastramento da epidemia pelo Brasil, mas penso que ficar contando os mortos todos os dias pode virar uma espécie de complacência com um certo fascínio pela morte.

Cada pessoa que morre leva um mundo de possíveis consigo - mas também nos convoca para que estejamos aqui, em nossa vida, próximos de nossos sonhos e de nossas realidade inventadas.

Seguir vivendo é uma forma de honrar os mortos.

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Todos meus livros teóricos estão no consultório. Sinto falta deles. Aqui no meu escritório de casa, entretanto, tenho meus livros de ficção (e não são todos?). Mais uma vez Kafka, em carta a Felice Bauer: “Eu sou feito de literatura; não sou mais nada nem posso ser nada mais do que isso”.

Abro o site da Folha de São Paulo: "Estados e municípios relatam subnotificação gigantesca de casos de Covid-19”.

Mas hoje à noite vou ler “Marrom e amarelo”, de Paulo Scott, e tomar chá de maçã com canela antes de dormir.

Um comentário:

  1. Oi! Me identifiquei com "Uma relação mais próxima com a minha insignificância parece estar sendo libertadora." Não posso cuidar da minha mãe. Me resfriei duas vezes e não posso sair de casa. É um pouco como ser criança, vivendo o que aparece.

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