Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

5.4.20

Dia 19: por Vitória Vozniak

(home with mammi, 5 de abril de 2020, por Julia Soboleva)


Pega aqui na minha mão. Calma. É uma maneira de lhe convidar a passear por aqui, entre essas palavras. Abro agora esse labirinto que está a minha mente. Venha, é por aqui:

Desperto de sonhos longos e intranquilos e percebo que acordo cada dia mais tarde. 

Noites atrás levantei com falta de ar, rasgando minha garganta com as unhas como se aquilo convencesse o oxigênio a percorrer aquele caminho. Ouço ao longe os miados de um dos meus gatos (é incrível que os donos saibam reconhecer quem é quem pelo tom, da mesma maneira que reconhecemos as vozes de pessoas) e cambaleio para fora da cama. Lynch (sim, em homenagem ao diretor) começa a ronronar nas minhas pernas, contornando-as em formato de 8, o que dificulta meu andar. Quando ele faz isso, sei que quer me levar a algum lugar, e lá vou eu segurando a garganta e sem óculos e com um gato contornando cada passo que dou pelo escuro e, apesar de ser minha casa, não consigo saber bem onde estou e a tontura do recém despertar de um sonho que se mistura com a realidade. Recobro um pouco mais dos meus sentidos e caminho lentamente até a cozinha, acompanhada de uma bola de pelos brancos agitada. Encontro meu inalador e observo a contagem. Ainda tenho para mais alguns dias, o que me leva a anotar em um papel que devo comprar mais um assim que acordar depois de voltar a dormir, se é que vou conseguir dormir, devido a esse acontecimento. O jato do medicamento entra esquisito pela minha boca e eu me afogo um pouco e penso: pronto, agora vai morrer engasgada com o próprio remédio para asma, que grande façanha. O Lynch solta um miado alto e comprido, comum quando começa a ficar irritado que eu não lhe dou atenção. Não sei quem foi que me disse que era tranquilo ter gatos. Pega um gatinho, vai. Olha esses dois ali sozinhos numa caixinha de papelão. Leva eles pra casa. Pois cá estou eu às 4h da manhã sendo xingada por um gato chamado Lynch, todo branco e vesguinho (são uma fofura seu olhos azuis e tortinhos) enquanto procuro por David (não ri, na época eu jurava que eram nomes geniais) que se meteu sei lá onde e eu nem vou contar da última vez que ele fez isso e mijou no meu ipod mini (lembra quando existia essa maravilha?) que eu nunca mais achei para comprar. Começo a abrir gavetas, portas, armários e penso no barulho que estou fazendo e que por favor, vizinhos, não achem que eu pirei em meio à pandemia pois juro que meu gato tá perdido dentro de casa. Perdido. Dentro. De. Casa. E penso em todos os lugares onde ele poderia estar, pois saibam que é incrível a quantidade de lugares onde um gato consegue entrar e se esconder e então os miados aumentam e eu volto a ficar mais angustiada e penso que porcaria eu já abri tudo que tinha nessa casa e me bate o desespero que ele esteja trancado para fora da janela entre as telas ou vai que o gato tá lá dependurado e como a imaginação pode ir longe nesses casos e eu acho que entendi um pouco o que as mães sentem quando o filho não atende a ligação e elas acham que eles morreram e eu me sinto um tanto cansada e sento na cama para reorganizar meus pensamentos quando ouço um “huff” e me desato a rir. Arqueio minhas costas em direção ao chão e vejo o reflexo branco de pequenos olhos embaixo da minha cama. Pego meu celular, acendo a lanterna e miro nos olhos que brilham de volta em tons de verde. Ali está o David, entalado, piando baixinho um último pedido de socorro. Puxo ele de volta e percebo que ele engordou um tanto. É isso, nós temos comido demais. Trago ele para a cama, o Lynch se aconchega junto e nos unimos num emaranhado de cobertas, carinhos e pancinhas. Voltamos a dormir. 

Ainda que solteira, arrumo a cama com dois travesseiros. 

Tenho estado cada vez mais triste e vejo muita beleza naqueles atos bobos e tão sinceros, mas tão tão feios e disformes como o artesanato tosco de uma velha senhora que vende suas coisinhas na feira do centro da cidade. Se fosse lhe explicar, seria mais ou menos assim: ela sorri com o canto dos olhos e ninguém mais a nota e isso lhe leva a comprar um de seus objetos pois tem pena do trabalho duro sem frutos, mas esconde-o no bolso do casaco como se fosse um crime possuir aquilo. Ninguém pode vê-la fazendo isso, vai que achem que tem mal gosto, ou que adivinhem que morre de pena de coisas assim e que podem usar isso contra você. Então, vai esquecer e guardar o casaco até o dia que reabrirá o guarda-roupa e o encontrará amassado e com aquele cheiro de mofo que também é de nostalgia e não vai entender naquele momento como pôde ter esquecido uma roupa tão bela e então vai voltar a vesti-lo e pode ser que no meio da rua, naquele momento que o sinal fechará e involuntariamente seu corpo se escorará no poste e sua perna se dobrará nele e o dia estará cinzento de novo e ao colocar a mão no bolso tudo vai voltar com rapidez e seus olhos marejarão e então será uma adulta chorando em plena avenida de farol vermelho.

Coloco a água para esquentar, vou até a janela pegar sol e me distraio olhando o horizonte de prédios quando ouço o chiar da água fervendo, corro para desligar a chaleira e queimo meu dedo.

Minha vontade é de ter agora aqui na minha frente um piano, o piano de minha vó materna. Quem sabe assim meus dedos tenham onde tamborilar e achem seu caminho. Mas o que me sobrou foi um teclado perdido, sabe-se lá em qual casa. Tenho muitos instrumentos musicais sem uso. Meu violão continua pegando cada vez mais pó, e não apenas pela falta de uso, mas também por que tenho limpado menos a casa. Comecei a revirá-la no intuito de mexer em cada cantinho nela, de doar coisas que não uso, de manter o mínimo possível de objetos, alcançar apenas o necessário. Mas sobram os instrumentos. Gosto deles. Gosto de vez ou outra pegar minha ocarina e levantar e abaixar os dedos pelos furos, como se dançassem com a própria música que criam. Fui bailarina clássica dos 3 aos 15 anos. Totalizo um total de 10 anos, visto que dos 3 aos 5 anos eu ainda nem sabia bem o meu nome, quanto mais as diversas palavras em francês, ainda que aos 4 já soubesse ler e escrever. Fui dessas crianças que aprendi as coisas cedo, e por isso os adultos deram a entender que eu era mais inteligente que as outras. Não era isso, eu apenas aprendia mais rápido, mas também logo esquecia algumas das coisas que aprendia, e na ânsia de corresponder às expectativas adultas, estudava mais e mais para não esquecer de nada e tentava me tornar uma miniatura de Funes, o memorioso. Contava os passos que dava, e na primeira oportunidade de conversa, falava: “sabia que daqui até minha casa são exatos 142 passos de criança? Sabia que o pé de uma criança é o equivalente a cerca de 20 cm? Quanto será que mede o passo de uma criança? Se colocarmos uma média de...”. Eu não sei quantas teclas possuía o piano de minha vó. Mas eram daqueles verticais de cauda, de madeira, lustroso. E até hoje é assim, nunca aprendi bem como se tocam os instrumentos, mas gosto de dedilhar as cordas, passear pelas teclas, batucar pelo corpo. Gosto dos sons que não tem nome, que não são só letras alinhadas.

Volto para a janela, o sol já se foi, o aroma do café é sequestrado pelo cheiro da grama sendo cortada pelo vizinho. 

Ouço os tiros de treinamento... A paranoia aumenta. Aqui perto de casa, cerca de duas ou três quadras, tem o 3º BPE – Batalhão de Polícia do Exército. É comum ouvir tiros do que parece ser uma metralhadora ou a combinação de diversas pessoas (eu não sou entendida do assunto). Eles estão treinando para atirar no quê? Em quem? Por que às vezes insistem em treinar mira às 3h da manhã de dia de semana? O barulho é altíssimo e incômodo para qualquer hora do dia, especialmente a essa hora da madrugada. Barulho de civil comemorando o Carnaval, maior festa brasileira, incomoda todo mundo, mas tiro tudo bem. A felicidade do outro é um eterno incômodo aos infelizes.

Ligo o computador, recebo um convite para uma live de máscaras confeccionadas por si mesmo.  

5 de abri. Hoje é aniversário da minha vó paterna. Pego o celular e disco o número do seu telefone. Ela atende. Conversamos sobre os sumiços dos gatos e conto sobre a noite em que o David entalou embaixo da cama enquanto ela conta das vezes em que o Dino (diminutivo de dinossauro) sumia e ao voltar de uma caminhada na praia ela o encontrava na frente de casa, se espreguiçando e a esperando. Ela fala para beber água [no início da pandemia eu tive uma crise renal e passei três dias no hospital, observando o vaivém das enfermeiras e dos médicos, o início do susto e das fofocas pelo corredor, as moças da limpeza falando sozinhas enquanto varriam o chão e eu sendo passada de cadeira a cadeira enquanto meu braço era perfurado em diversos locais até que as últimas medicações foram feitas por uma agulha no pé (se antes eu nunca tive medo de agulha e observava com interesse a retirada de sangue, agora peguei um certo receio) e de como foi divertido o passeio dentro da ambulância pois nunca tinha visto imagem mais bela que a cidade vazia de noite com as placas da rua sendo refletidas pela luz vermelha que também piscava em outros tons que dançavam na frente dos meus olhos perambulantes e de como aquela sinfonia de sentidos me aliviava a dor e a mão da socorrista nos meus ombros e o sorriso de minha mãe conversando com o socorrista que dirigia se misturavam com a medicação que entrava na minha veia e meus músculos se soltavam aos poucos, liberados da dor] e logo em seguida comenta: “se não tem água, não tem lagrima.” Ela comenta sobre os alimentos que possuem oxalato de cálcio e me pergunta se não é engraçado que o feijão e a vagem sejam tão parecidos. Existe humor nos grãos e legumes e então eu lembro do aroma doce dos tomates de Harini que me leva a lembrar que quando criança eu achava que se enterravam as frutas e os legumes vencidos que nem gente, para dizer adeus e agradecer pela vida ao lado deles, para dar um funeral em sua homenagem. Então eu rezava para os tomates e os morangos para dizer que tudo bem, que agora eles estão bem, que no céu vai florescer mais uma arvore frutífera (de onde acham que vêm a maçã do paraíso se não da morte de uma maçã na Terra?) e que aqui ia logo logo crescer seus filhos da mesma maneira que eu nasci irmã de um pé de alface. Os grãos, legumes e frutas são todos nossos irmãos. E entendendo a vida assim eu parei de pedir um irmão para minha mãe. Eu já tinha muitos para cuidar.

São seis da tarde e me preparo para ver a live do Arthur sobre o conto Feliz Ano Novo.  

Esses dias eu pedi uma entrega de alimentos orgânicos das feiras em que costumo ir. É só mandar um oi para o número de whats da Satvva Produtos Orgânicos que eles mandam uma tabela de Excel em que se preenche o que se quer. A entrega ficou para quarta, dia 2, e eles chegaram tarde da noite, como previsto. A campainha tocou e eu me preparei para descer: troquei meu pijama para uma roupa que eu uso para ficar na rua, desinfetei o trinco de novo só por precaução, assim como a chave e ao sair do apartamento calcei meus chinelos da rua. Pedi o elevador apertando com a ponta da chave, abri a porta com o chinelo e usei a chave para apertar no T. Sigo o mesmo com as outras portas e avisto de longe o entregador de máscara e luvas. A realidade avança sobre mim como o início de uma corrida de cavalos e me sinto culpada por não estar usando máscara. Sou do grupo de risco. Observo seus olhos e nos encaramos com vergonha. Ficamos ali, ele segurando a caixa com meus alimentos e eu segurando a porta com o pé. Alguém grita de uma van que é pra se apressar com isso e eu não sei como reagir. São muitas coisas para levar sozinha. Os olhos do homem que me atende são lindos e fico perdida com tanta informação. Eu falo que vou buscar o carrinho do prédio e ele disse que pode entrar e largar a caixa na frente do elevador. A pessoa da van grita que não e ele entra mesmo assim, e eu me sinto cada vez mais idiota com o acontecimento. Corremos até o elevador, como se a velocidade fosse diminuir o contato dos sapatos no solo contaminado e ele segura a caixa enquanto eu largo as compras no elevador, voltamos pelo mesmo caminho e sinto que me olha enquanto caminho na frente, abrindo a última porta necessária para sair do prédio. Não nos tocamos. Continuamos ali, nos observando. A pessoa da van chama ele da volta, eu me viro e não espero até ele sair. Caminho devagar, o elevador pode esperar. Subo com as compras, largo o chinelo do lado de fora, entro apenas com os alimentos. Cumprimento meus gatos de longe e vou ao banheiro. Pego o sabonete e passo pela palma das mãos. Circundo as dobras e ligo um pouco da água para molhar a glicerina e começo a esfregar as mãos uma na outra, essas velhas conhecidas que dividem um banho lento em que uma ajuda a outra a alcançar os lugares em que elas mesmas não alcançam e se tocam onde sabem que devem se tocar e uma se deita sobre a outra e se apertam em um abraço ensaboado e as peles se juntam e se separam em leves movimentos repetidos e quem sabe depois convidem uma laranja para se juntar ao banho e se esfreguem pela bordas de uma abóbora.

O tom da paisagem vista da janela começa a se transformar em safira.

Outras coisas aconteceram. Minha irmã de 12 anos veio falar comigo pela primeira vez (marcamos de jogar Legends of alguma coisa, às 16h de hoje), estou sóbria há 50 dias (da última vez foram 104, tudo isso nos últimos sete meses), defendi minha dissertação online (sou mestraaa), infelizmente sem nenhum colega ou amigo por perto para me dar abraços e comemorar junto; voltei aos meus hobbies antigos como fotografar, bordar, estudar entomologia e ficar caçando fotos de anuros pela internet, já que ao vivo estou temporariamente proibida. Bom, todas essas coisas ficam para outros textos. Até logo e muita saúde.

3 comentários:

  1. 104+50 = 154 / (7X30) = 73 %. Nada mal. Nota de aprovação! E também parabéns pela dissertação, mestra! E bons "outros textos"!

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    1. Obrigada, Janete! Uau, eu não havia pensado em relação à porcentagem, é bem alta mesmo (e pode ser ainda maior, visto que eu só contei os dias seguidos). Em breve já vou postar os "outros textos". Até breve e muita saúde! :)

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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