Chega pela janela um frio tímido, que alonga as manhãs de ócio e deixa os cães mais preguiçosos. Uma olhada rápida no celular, um gole de café, outra olhada no celular, a bateria é pouca, a tomada está longe, não foram só os cachorros que ficaram mais indolentes, pelo jeito. Intempestivamente, decido inverter os planos: pedalarei na ergométrica pela manhã, antes mesmo de tomar banho, e não ao final da tarde, como de praxe. E me permitiria cabular a aula de yoga pelo YouTube. Me sinto subversivo, aventureiro, revolucionário, invencível. Troco a calça de pijama por um short de futebol e monto no aparelho cuja existência eu havia esquecido completamente antes da pandemia.
Lembro que, na noite anterior, o Uber Eats cancelou meu pedido alegando que o entregador não havia localizado o endereço. Mentira, obviamente. O cara deve ter ficado com meu xis e mandou esse migué. Não o recrimino: tá difícil para todo mundo. Mas fico puto igual porque o Uber Eats avisou que não iria estornar o valor da compra e uso a força do ódio para impulsionar os pedais da ergométrica - não muito, porém, porque a bichinha é antiga e um esforço a mais pode arrebentá-la.
Enfrento os olhares inconformados da minha cadela, ainda irresignada com a ideia de que os humanos encontram-se em casa, o sol brilha na rua e ainda assim ninguém a leva para correr na praça. Uso da prosódia para tentar confortá-la; elejo os horários noturnos para os passeios mais longos. Durante o dia, noto uma atmosfera de paranoia: cada transeunte mira o próximo como um inimigo, um irresponsável, um portador da peste, um traidor do pacto coletivo de isolamento, ignorando automaticamente quaisquer razões e contrarrazões exceto as suas próprias, que o justificam e o absolvem. Não lido bem com a pressão e, por isso, explico à Judi que aguardaremos o anoitecer para circundar a quadra.
Um pouco antes do almoço, meu pai me telefona para me desejar feliz aniversário. Conta, quase acidentalmente, que na semana anterior passou mal, sentia a respiração curta, manifestava dores pelo corpo. Não foi ao médico; confinou-se dentro de casa; melhorou. Repreendo-o por não ter mencionado nada disso em nossas conversas anteriores, ao que ele responde que não queria causar preocupações. Intimamente, eu o compreendo: faria o mesmo.
De fato, lembro agora, o fiz. Duas semanas atrás, retornando de um dos plantões do trabalho (a escala foi instituída para evitar aglomerações; é uma medida apenas paliativa e não garante que estejamos mais protegidos), percebi que a tosse persistente se convertera em irritação na garganta. Senti medo. Busquei refúgio na racionalização. As dores nas costas caberiam à má postura; a cabeça latejando tinha na cafeína o culpado perfeito; o respirar pesado seria creditado à angústia comprimindo o peito. Mas invariavelmente pensava nas minhas crises de bronquite da infância, superadas espontaneamente com o crescer, e que voltavam vez e outra em companhia de alguma crise alérgica, e nos relatórios que apontavam as comorbidades pré-existentes como responsáveis pelo agravamento dos quadros respiratórios, e em tantas renúncias feitas em nome de um futuro que... Mas então não pensava mais, subia na ergométrica e pedalava, confiando que colocar os pulmões para trabalharem lhes conferiria alguma dose extra de resistência contra a doença, e aguardava, na falta de melhor evidência disponível, que o destino se manifestasse informando se eu fui ou não sorteado na maldita loteria viral.
Todavia, nada veio.
À tarde, em meio a outras ligações, perco o ritmo da leitura de É isto um homem? e não me animo a retomar Years and years, mas encontro fôlego para dedicar alguns minutos a The wolf among us. Aproveito o contato dos amigos para prometer fazer muitas coisas depois que o fim do mundo passar. É provável que não cumpra nenhuma delas.
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