Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

15.4.20

Dia 29: por Dani Langer

Sei que amanheceu porque Yoshi morde meus dedos. Primeiro, de leve. Em seguida, ao perceber que já acordei e me faço de morta, aperta os dentes com força. Empurro o gato para fora da cama, aliso os dedos doloridos, vejo a sombra voltando, agora para cima de mim. “Eu já vou levantar, calma”. Taís murmura alguma coisa, enrolada com a coberta até o queixo, respondo que não é nada, vou levantar. Ainda de dentro do sono ela pergunta “levantar pra quê?”.

Já é de tarde, o que não faz diferença pois desde que nos enfurnamos na rotina da quarentena, o tempo tem sido subvertido. Segunda-feira, dormi o dia inteiro como se estivesse dopada. Na noite anterior, tinha sentido um pouco de falta de ar e qualquer sintoma é gatilho para ansiedade. Eu sei que sou alérgica, que existe uma coisa chamada rinite, contudo o que vejo são milhares de vírus vermelhos, iguais aos da chamada da Globo, grudados nos meus pulmões. Acordei com o som do noticiário local atualizando os números da pandemia. Desejo de voltar para cama, porém me obriguei a ficar pela sala até o que antes seria “a hora de dormir”. Tento manter pequenos rituais para não enlouquecer.

Estamos, eu e o gato, no banheiro. Ele me olha de cima da pia, o rabo em pé, concentrado. “Tá com sede, Yoshi?”, os olhos azuis cada vez mais estrábicos. Dividimos a torneira, escovo os dentes, Yoshi bebe água e encharca pescoço e patas.

O que você fez da sua quarentena? Uns terão feito cursos, aprendido línguas, aperfeiçoado as habilidades em um instrumento. Alguns terão zerado as pendências de leitura, pintado as paredes da sala com a cor no ano, dado um jeito no guarda-roupa. Eu durmo, como, passo aspirador, cozinho e lavo louça. De repente, as tarefas que hoje são consideradas comezinhas e elementares voltaram à carga emocional soterrada por anos de modernidade. Fazer o próprio pão nunca mais será fazer o próprio pão.

Quando não estou assistindo qualquer porcaria na TV (ou Avenida Brasil), me deprimindo com as notícias, ou trocando figurinhas no whatsapp, procuro pelo apartamento qualquer coisa para fazer. Hoje dobrei os lençóis, li uma frase aleatória em um livro. Pode ser o aperto no plexo solar, desejar apenas a posição fetal e chorar. Tento deixar Taís em paz porque ela está em home office e passa as tardes em meio a processos administrativos. Nos dias mais difíceis não consigo, choro ao seu lado. Nos abraçamos e agradeço à vida que tenho uma pessoa a quem abraçar. Então, choro mais um pouco pois lembro das pessoas que amo e preciso manter a distância protocolar de dois metros. Choro por mim, pelos que amo. Também pelo desamparo geral que é ver o país nas mãos de um grupo que pior que horroroso é incompetente. Yoshi sobe no meu peito e se aninha sem ronronar, ele não é um gato motorizado. É quando agradeço mais uma vez por ter, além de uma mulher que me ama, um gato que me acalma.

O sol vai descendo para os lados do Guaíba, e para além das redes de proteção da janela observo o telhado do colégio mudar de cor. Uma paleta de laranjas, cobres e vermelhos até o marrom telha. Moro ao lado de uma escola e nunca acostumei com a gritaria dos alunos, os gritos ansiosos e as vezes desesperançados dos professores em meio à turba de crianças. Ainda a tortura das aulas de flauta duas vezes por semana.

Fosse o tempo de antes, diria que é noite. Agora, apenas digo que escureceu e é na falta de luz que observo as janelas fechadas há semanas. Entre as cortinas, procuro por uma sombra dos dias passados, quem sabe uma criança dizendo palavrões, quem sabe um grupo de flautistas sem nenhum talento, mas entusiasmado, tocando o tema de Titanic, revelando entres os acordes desafinados um pouco de normalidade e esperança.

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