Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

16.4.20

Dia 30: por Kelli Lorenz

Preciso olhar a data para ver em que dia da quarentena estamos.

Hoje acordei com o alarido dos papagaios que sobrevoavam o terreno do estacionamento que fica na rua da República, em frente à janela do meu quarto. Dizem que os papagaios gritam para se localizar entre o bando. Penso que nunca entendi a sutil diferença entre o grito e o canto dessa aves.

Levantamos por volta das 9h. Preparamos o café da manhã: Ana gosta de batida de banana, enquanto eu não passo sem o meu café; coloco água no fogo, preparo o filtro sobre uma generosa caneca, adiciono duas colheres de café e, quando a água começa a ferver, derramo sobre o pó marrom, que reluz à medida que vai sendo absorvido. Seu aroma invade a cozinha e desperta os últimos sentidos que ainda restavam adormecidos. Aquecemos pães na tostadeira e comemos com manteiga.

Em seguida, Ana lava a varanda com mangueira e trata Fidel, João e Francis, nossos gatos, e Pequena, nossa cachorra, enquanto eu cuido da louça. Recolho, dobro e guardo a roupa que estava no varal. Dou uma rápida passada nas redes sociais só para ver mais do mesmo. Demoro-me pegando sol na varanda por 20, 30 minutos, enquanto termino o último capítulo do livro que andei lendo. E são recém 11h31min.

Francis me aguarda na porta do quarto enquanto me preparo para trabalhar. Ele já entendeu a nova rotina e me espera para dormir o dia todo no sofá ao meu lado enquanto trabalho. Da janela do improvisado gabinete onde instalei meu home office ouço pássaros cantando durante toda a tarde. Hoje foram os Sabiás que iniciaram a cantoria. Depois, vieram os Bem-te-vis. Parece que se organizam por espécie e vêm em bandos, livres, altos e fortes. Mais pro final da tarde os Bem-te-vis deram lugar aos Quero-queros, que fizeram coro com o panelaço que aconteceu durante o pronunciamento do presidente da república lavando as mãos com a demissão do ministro da saúde.

O fim do expediente é marcado pela presença da Pequena dando voltas ao meu redor choramingando: está na hora do passeio. Troco minhas roupas de casa pelas de sair, visto máscara, ponho a coleira na cusca, pego saquinhos plásticos, calço as alpargatas que estão do lado de fora da porta e vamos. Ela, faceira; eu, assustada. Nossos passeios consistem em desviar das poucas pessoas que estão na calçada até chegarmos a uma rua mais tranquila onde ela possa passear, soberana. Corremos um pouco, ela cheira os postes que encontra no caminho de volta. A Ana nos espera com um paninho com sabão, lava patinhas, corpo e carinha da Pequena e desinfeta o chão por onde passamos enquanto vou pro banho.

O entardecer vem acompanhado do canto das cigarras, o que me alegra ao mesmo tempo em que me deixa triste. Alegra porque é a vida, a natureza sendo cantada. Entristece porque só temos a oportunidade de ouvir o canto dos pássaros quando não há vida humana circulando, quando não há máquinas rodando. As pessoas, engaioladas; as aves, faceiras. A humanidade precisa pausar para que possamos escutar a natureza.

Um comentário:

  1. Gostei muito da vida do seu texto composta por bichos em sua maioria, dentro e fora de casa. Concordo que precisamos aproveitar a pausa compulsória para compor com a natureza. Não tem volta isto.

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