Em cômodos
Nestes tempos, coloquei um cacarejo no despertador, e o galo urbano acorda pelas nove da manhã, depois do cachorro fanho da vizinha.
Gosto de pensar que estou isolado muito antes das máscaras, das notícias e da falta de papel higiênico e álcool gel, antes mesmo de todo mundo se fechar em casa e de acabar a comida das prateleiras, do armário, da geladeira, do vizinho. Quando se parecia contar com aquela sorte calculada e uma virtude transitória.
Permanecer em casa, além do hábito, agora se faz necessário, como sair para trabalhar também já foi.
É um momento de provações, em que se podem despertar ou descobrir habilidades adormecidas ou novas, como prever a chuva apenas olhando para as nuvens; alongar as chamadas com os parentes, inventando olás e prolongando as despedidas à medida que o volume da voz vai diminuindo; e, ainda, cozinhar o dia pela receita do cardápio da semana, com pitadas de esperança cuidando para que a realidade não amargue o gosto pela vida.
Nesse período, aprendi também a valorizar mais a luz do sol. Apesar de que tenho trocado o dia pela noite, em razão da sensação de que o isolamento parece se amenizar quando todos estão silenciosos, recolhidos em seus sonhos, como uma grande reunião onírica flutuando pela madrugada. Algum vizinho também aderiu à prática, e, ao vermos ambas as janelas acesas, sei que compartilhamos, em silêncio, uma cumplicidade ansiosa, como se um dissesse vai começar, daqui a pouco, o filme às 2h, e o outro respondesse vou fazer uma pipoca, mas antes vou ao banheiro.
Então vou ao banheiro, depois de notar a falta da pipoca, sair da cozinha, ter feito baldeação no sofá e uma parada na janela.
Mercado marcado pra hoje.
Revejo mentalmente a lista, pensando nos preparativos da viagem. Máscara no rosto, cara de preocupação em face da situação, a moeda da sorte do cara ou coroa no bolso, e a ida ao mercado é o evento da semana, com direito a fila, segurança na entrada e, às vezes, até som ambiente, enquanto se troca um sorriso mascarado aqui e ali. E sorrir é um ato de resistência quando abraçar parece uma lembrança antiga, talvez um conceito abstrato a ser ensinado futuramente.
Volto pra casa, e tudo parece estar em ordem, apesar de o tempo estar meio esquisito mesmo. Às vezes, em sequências de repetição, quando surge um desconforto, como num serviço enfadonho, de novo e de novo, repetindo, sem perceber, essa repetição, e de novo, e mais uma vez. De repente, por um prisma, me é revelado um lado diarista, limpando aqui, arrumando ali, uma música no fundo; um lado que quer sair, e outro que não pode; um lado meio por fora, esvaziado, e outro por dentro, de saco cheio; e, além de tudo, um lado cozinheiro, com o corpo cru e os dias cozidos.
Ao final disso, é de se esperar um novo começo, aprender com os erros, agarrar, com polegares opositores, a lembrança do que fomos; valorizar uma boa conversa como moeda de troca, assim mesmo; treinar os ouvidos para o amanhã, para quando dissermos coisas como lembra quando..., foi assim, foi assado, cozido, vou estar lá e não vou me atrasar, como senti saudades e como é bom te abraçar (que é quando os braços das pessoas se cruzam e as envolvem, podendo ser rápido, demorado, sem jeito, nostálgico, bom, repetido, demorado, apertado, bom).
Bela escrita... Tempos de reflexão e de novos talento Los brotando.
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