Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

29.4.20

Dia 43: por Joelma Terto

“Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol”

Hoje o sol não saiu. Há 44 dias, desde que comecei o isolamento voluntário, as manhãs começam com 15 minutos de banho de sol, na rede armada em um dos dois pátios do apartamento em que vivo, sozinha, na Cidade Baixa. Há 44 dias penso no quão privilegiada sou de morar nesse apartamento térreo, com pátio, no meu bairro preferido. Pensar que comecei 2020 com planos de me mudar desse apê...

Na verdade, comecei 2020 cheia de planos e projetos, como há muito não começava um ano. A decisão de mudar de casa foi das menores e com menos argumentos. “Tá na hora de ir prum lugar maior e com banheiro de porcelanato. Quem sabe trocar os pátios por uma vista bonita? Ver o movimento da rua”, divagava. Mal sabia a sorte que seria continuar aqui quando, no 15º dia de home office, fui dispensada do trabalho como editora, em uma agência de Conteúdo. Antes disso, foram as festas. Além de jornalista, sou DJ de música brasileira e as discotecagens são parte das minhas atividades remuneradas. Sem renda alguma entrando, nem dos eventos, nem da Comunicação, o aluguel barato desse apê é um presente. Ter uma pequena reserva também. Privilégios.

O mais estranho tem sido inventar uma nova rotina, que não é de férias, mas não inclui responsabilidades profissionais. São incontáveis dias preenchendo as horas com tentativa de meditação, exercício físico indoor, botando as leituras em dia, alguma Netflix, assistindo mil aulas online e entrevistas sobre qualquer coisa, web encontros com as pessoas que amo, cozinhando receitas inéditas só pra mim, lavando a louça que se multiplica como gremlins na pia e zapeando lives nos stories do Instagram. Novos hábitos gerados pela pandemia. No início, os panelaços contra esse governo genocida, às 20h, ajudavam a distrair, mas agora são mais raros. Alguns dias danço na sala. Noutros, me encolho, choro no sofá e janto paçoca.

Com tempo livre, me voluntariei a ajudar na moderação de um grupo virtual, criado por amigas, no Facebook, que conecta mulheres com dificuldades econômicas (a maioria em situação precária e sem poder trabalhar em função da quarentena imposta pelo Covid 19) e pessoas que queiram colaborar financeiramente. É bonito ver o tanto de gente disposta a dividir o que tem com quem precisa e enxergar alguma humanidade em tempos tão sombrios.

Nos dias quentes, que vão rareando à medida em que o Outono avança, o pátio onde tomo sol é o local preferido. A rede convida a ler mais um pouquinho, ouvir um podcast enquanto brinco de ver as formas das nuvens no céu ou dar um cochilo ao sabor do balanço, quase sempre embalado pelo som do trompete de um vizinho que, pelo jeito, aproveitou o confinamento pra se aprimorar no instrumento.

Não hoje. Porque hoje o dia foi todo nublado e porque preciso me concentrar em um orçamento. É a primeira possível proposta, em quase 30 dias sem trabalho. Coisa mais difícil que existe é precificar-se. Quanto vale, de fato, a minha força de trabalho? A pandemia faz a minha capacidade produtiva valer mais? Faz valer menos? Coisas que a gente pensa no meio de uma quarentena.

Há alguns dias tive a epifania: nunca fiquei tanto tempo, sem abraçar, nem tocar alguém. Mas, peraí, não é exclusividade minha! Assim como eu, milhões (!?) de pessoas, no mundo inteiro, também estão vivendo essa mesmíssima incomum situação: nunca ficaram tantos dias sem contato físico. Estão experimentando essa mesma estranheza que é sentir falta do toque. Sequer um aperto de mão. E agora, privados dos sorrisos, que se escondem atrás de máscaras de pano que contribuem para a não propagação de um vírus letal. Ainda nos restam os olhares, ufa.

Hoje são 44 dias sozinha. Sem gato, nem cachorro. Poucas plantas. Longe 3 mil quilômetros da família de sangue. Numa entressafra de amores. Questiono minhas escolhas, meus caminhos, meu auto-exílio voluntário que me trouxe, há 20 anos, a Porto Alegre. Faço um esforço pra lembrar o cheiro que tem o último pescoço que cheirei. Em vão. De palpável: a cama em que durmo, o lençol que estendo, todas as manhãs antes de tomar sol, o chão de madeira em que piso, o álcool volátil que bebo. O celular e o notebook também, tão reais. Dispositivos que se tornaram ponte. Devaneio.

Em dias nublados, como hoje, eu trocaria meus pátios por uma sacada, de onde pudesse enxergar a rua do meu bairro boêmio, sem movimento algum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário