(Há de vir.)
Vou acordar num sobressalto, pois terei ouvido um barulho vindo da rua — daquele apartamento que sempre fazia festa, mas que andava tão silencioso. Como não poderia ser diferente, puxarei o celular aos olhos. Dez e quinze da manhã. Vou pensar Eu bem que poderia dormir mais, e a dúvida aterradora, existencial, profunda, me fará perder — ou ganhar, não saberei dizer — quinze minutos a mais naquela cama quente. Quente como foi em todos os dias anteriores, sem exceção, disso não poderei reclamar.
Às 10h30 será hora de contrair o abdômen e gemer baixinho enquanto me ponho sentado junto aos lençóis emaranhados e ao travesseiro úmido. Os pés serão lambidos pelo chão gelado e lembrarão, comunicando a cada poro que se segue à subida do corpo, sobre as baixas temperaturas que já tomam conta do estado. Vou sorrir em um pequeno êxtase. Sempre gostei do frio e já sentia falta dos casacos compridos e dos cachecóis ao redor do pescoço. Jogando o celular sobre a cama, me arrastarei para o banheiro.
Os vizinhos do apartamento ao lado vão dar outro grito e esse último, especificamente, me fará ter um sobressalto, justo no exato momento em que mergulho meu rosto naquela pia de porcelana verde militar, craquelada pelo tempo.
Aquela será a manhã em que me sentirei como a pia: craquelado pelo tempo. Com os olhos fixos ao meu próprio rosto — que, sim, seguirá sendo meu e somente meu — vou me questionar, ainda sem a clareza dos despertos, Quantos meses se passaram? Quantas rugas decidiram ignorar o isolamento e abraçar o meu rosto, sem pena, sem medo, sem qualquer ruído que meus ouvidos — ainda atentos aos gritos da rua — pudessem ter escutado?
Enquanto a minha boca estará reclamando dessas Rugas completamente histéricas, fodam-se elas, Gabriel, fodam-se, serei silenciado à força pela escova de dentes e pela preguiça de seguir pensando. Vou sair do banheiro um pouco confuso, como se sentisse que há algo de estranho no ar. Talvez seja só a poeira acumulada, afinal de contas.
(Perceberei que, mesmo com tudo aquilo, minha capacidade de fazer piadas comigo mesmo não terá acabado.)
Será hora de tomar um café, mesmo que o horário do almoço já esteja se anunciando à distância. Grande coisa, é fim de semana. Enquanto dou bom dia aos meus familiares, que estarão sentados em frente à mesa e aos seus farelos, pegarei a xícara que mais se parece com um pequeno balde e subirei ao terraço que se acostumou a acomodar meu corpo, meus livros e duas cadeiras de praia: uma para a bunda e outra para os pés. Refletirei por alguns segundos sobre a dor nas costas que venho sentindo, mas a interrupção se dará sem rodeios — assim como devem ser feitas as boas interrupções.
Outro grito dos vizinhos barulhentos mas que andavam tão silenciosos, ou talvez seja um grito de outra casa, ou quem sabe da minha própria mãe. Vou me levantar tão rápido quanto sentei. Naquele instante, a verdade cairá aos meus pés, como um clarão divino, um bater de panelas ou um clique. O famoso clique sobre o qual tanto se fala — este, um clique de acender.
Antes do meio dia, terei lembrado de algo que a força do hábito me fez esquecer ou empurrar para baixo do tapete. E descerei as escadas, abandonando naquela cadeira de praia o livro que planejava passar o dia lendo.
Correrei ao quarto, me juntando ao coro de gritos, calçarei os tênis, colocarei o cachecol e abrirei a porta.
Aquele será o dia em que estaremos todos prontos.
Enquanto o dia não chega, respiro fundo.
Não sou, ainda, de abandonar livros
— nem de me comparar a pias rachadas.
Os dias passam. E a cama segue quente.
Amei demais o texto! Achei muito sensível a tua visão sobre esse dia hipotético que todos nós estamos esperando tão impacientemente. Achei reconfortante também a incerteza trazida — do que está acontecendo, do tempo que se passou, de como reagir. Nesse tempo não existe certeza de nada. Arrasou demais! ❤
ResponderExcluirMuito bom, lindo texto!!
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