Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

12.5.20

Dia 56: por Gabriel Eduardo Bortulini

A irritação surge de qualquer coisa. Já foi da luminária quebrada, da marca de cerveja em falta, do molho de tomate queimado. Hoje, a sugestão de leitura, algumas páginas de um livro de autoficção, tarefa negada no mesmo instante e que persistiu até agora, quando paro para escrever. A Sara, que não tem culpa de nada, diz que eu preciso de terapia. Eu concordo, mas não é suficiente para melhorar. Preciso enviar um cronograma de escrita para o meu orientador e isso reforça a raiva.

– Autoficção? Hoje?

A Sara remexe os lábios e me deixa sozinho. Já entendeu que nesses momentos eu preciso me isolar.

Abro o Twitter e me irrito ainda mais. Anoto a ideia para uma notícia falsa sobre a saúde do presidente. Leio um poema sobre astrologia no Instagram e nada poderia ser pior. Amaldiçoo o anticientificismo, penso na futura prisão dos homeopatas, invento uma vertente astrológica obscura e coloco a culpa no zoroastrismo renascentista.

Me levanto para esquentar a água. Dos cinco tipos de erva, escolho a de sabor médio. Canarias Serena, la mejor yerba del mundo, el mate de mi país. Têm razão os uruguaios, embora a erva seja brasileira. Mas algumas coisas se ignoram pelo romantismo.

Recebo uma mensagem do Iuri, falando da rodada do torneio de contos e vejo que saiu notícia na Folha. Dou uma olhada. Mais tarde paro para ler com atenção, tenho que escrever o diário. Dia doze de maio, agora me dou conta, exatos dois meses do meu último evento público, aquele Grenal da Pandemia (gracias pela alcunha, Iuri) que me perturbou durante as duas semanas seguintes, apesar do tubo de álcool gel no bolso, distribuído a cada quinze minutos aos que estavam comigo, incluindo o próprio Iuri que tanto me irritou naquele segundo tempo dando a volta na Superior Leste até parar no local vazio ao lado da torcida do Internacional – mas veja só que ótima ideia –, onde acompanhamos toda a pancadaria entre os gritos colorados.

Ouço a água fervendo e já não me importo. Misturo alguns goles de água fria e ya está, quem dá bola para purismos tradicionalistas nessas horas?

Me sento ao lado da janela, pernas esticadas no sofá (algum dia vou me adaptar às escrivaninhas?). Lá fora é maio, dizem a luz da tarde, a frente fria sobre Porto Alegre, o som dos pneus na Perimetral. Lembro de outro diário, em outro maio, naquele de 2018, o primeiro frio do ano, seis horas de ônibus para velar a morte de uma mãe no dia das mães. Quantas terão sido anteontem?

A Luna pula no sofá e chora. Levanto a coberta que aquece as minhas pernas e ela entra, dá três giros anti-horários e se acomoda sobre minhas coxas. A luz cai rápido e agora já posso perceber a luminária acesa ao lado da estante, esquecida na noite anterior. A Sara fala alguma coisa sobre a sua sessão de terapia, mas eu estou no meio do parágrafo. Agora ela usa de fones de ouvido e limpa com álcool algum objeto minúsculo, que não sou capaz de identificar.

Porto Alegre começa a piscar no horizonte. Às 18h, como de costume, abro a janela para xingar o presidente. Nos primeiros dias, eram ofensas mais assombrosas e, por isso mesmo, ineficazes. Então, em vez de genocida ou miliciano, passei a gritar corno (perdão ao bom senso), enquanto bato o sininho das contações de histórias da Sara.

A irritação ameniza e percebo que coloquei muita água fria na térmica. Volto a aquecer e o mate agora tem sabor metálico. A Sara aproveita minha folga e fala sobre conceitos de casamento e maternidade e a Luna está com a língua para fora. Eu ouço e concordo, ela diz que me ama e, neste momento, eu sinto a mesma alegria que voltará mais tarde, quando eu abraçar seus sonhos numa cama de outono. Mas apenas digo que vou usar algo do discurso dela neste diário. Ela ri, comendo uma maçã, e teme que eu a exponha.

Algum vizinho grita e bate portas e a Sara e a Luna vão até a parede para entender o conflito de outra quarentena. A Sara volta para a mesa e olha feliz para a Luna, que ganhou metade da maçã. Não há melhor som neste momento do que o de um cão mastigando uma maçã, nem melhor visão do que duas covinhas nas bochechas de quem eu amo. Ou talvez sejam apenas algumas noções de paternidade.

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