Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

14.5.20

Dia 58: por Raphaela Donaduce Flores


Par ou ímpar

Ganhei no par ou ímpar. Minha vez de ir ao super, nem acredito.

Vou até o quarto, escolho aquela calça jeans maravilhosa que comprei antes da quarentena, que ainda estou pagando e não usei. Nem acredito que terei oportunidade de tirar esse moletom que habito há alguns dias. Escolho uma blusa preta para contrastar com a máscara vermelha de bolinhas que a prima do meu marido costurou. Olho no espelho, estou ótima. O cabelo ainda está bonito, sorte que lavei ontem – já passava dias longe do xampu. Falta só base e rímel. Batom e blush não precisa, ninguém vai ver minha boca mesmo.

Ir ao Zaffari é o grande evento para nós. Uma ótima desculpa para sair de casa sem dor na consciência, afinal é necessário. Só o par ou ímpar é capaz de fazer com que a gente não discuta por isso. Nada de argumentos, justiça ou democracia. Não importa quem foi por último ou quem está precisando ver gente. Sorte é sorte. E eu geralmente ganho, sempre vou no ímpar com um dedo só. Caetano é par, com dois dedos. Não sei como ele ainda não se deu conta.

O Zaffari é aquele momento de colocar fone de ouvido e sair caminhando bem livre e louca pela rua. Cabelos esvoaçantes, vento na cara, sol. Ok. Estou romantizando. Andar com máscara é terrível, eu mal consigo respirar e quem usa óculos sabe: a lente fica toda embaçada por causa da respiração.

Tenho amigas que estão tão desesperadas para sair de casa que cogitamos marcar um encontro em frente à geladeira de Heineken do Zaffari da Ipiranga. Happy hour contemporâneo. Não fizemos.

Ruim mesmo é chegar em casa. A combinação aqui é a seguinte: quem teve o privilégio de ir ao super também deve arcar com o serviço completo. E isso inclui encher um balde com água sanitária e limpar cuidadosamente todas as mercadorias. Todas. Depois, higienizar chaves e celular, passar pano no chão, na maçaneta e em todas as superfícies que encostou. Lavamos até as malditas sacolinhas e estendemos no banheiro para secar. Por fim, tirar a roupa e tomar banho. Nessa hora eu sempre me pergunto se valeu a pena ter ganhado no par ou ímpar. Concluo que sim. Volto para casa cheia de novidades.

Sabia que estão medindo a temperatura de cada um que vai entrar? Fica um moço na porta com um tubo de álcool gel e a gente precisa esticar as mãos e se lambuzar bem. Na frente dele, porque ele confere. Dessa vez tinha uma fila enorme, quase virando a calçada. Entram de dez em dez. Voltaram a vender Perfex. Nas primeiras duas semanas da quarentena um mistério nos assolava: os clássicos panos de limpar pia sumiram das prateleiras. Será que todo mundo resolveu comprar ou a fábrica faliu? Acho que todo mundo resolveu comprar, mas agora, graças a deusa, devem ter aumentado a produção, ou a galera parou de estocar. Encontrei a Lívia perto dos produtos de limpeza. Ela disse que estão tentando organizar uma pré-venda online daquele livro que ia ser lançado, mas não foi. Esses dias, acho que vi o Duca Leindecker no estacionamento. Passei o resto da tarde cantando Pinhal.

Uma ida ao Zaffari rende.

Outra coisa que rendeu assunto foi o convite da Julia Dantas para escrever aqui no blog. Na hora, o sentimento de empolgação se misturava com aflição. Perceber que recém começava maio e que ela já organizava os posts até o final do mês foi um choque de realidade.

Estamos isolados desde 16 de março. No início eu pensava que ia enlouquecer, que não aguentaria tanto tempo sem ver ninguém além do marido e de um bebê de um ano e meio sem escola. Agora estamos chegando aos 60 dias e isso tudo ainda vai bem mais longe. The winter is coming.

Mas a verdade é que não enlouquecemos. E percebo a força do power trio Rapha-Caetano-Joaquim (ou quarteto, considerando Valdir, o pug), com momentos que seguirão na memória. Driblamos os dias de tédio com música, os de ansiedade com pastel de carne feito em família, exorcizamos as incertezas com giz-de-cera colorido nas paredes, e a cabaninha feita de lençóis rende algumas horas de fantasia e distração com o pequeno. Nas noites silenciosas o vinho faz companhia, chamadas de vídeo com amigas mudam o humor, mensagens inesperadas dão emoção ao dia e nada como acordar às 5h para desfrutar de algumas horas sozinha na sala.

Estamos nos adaptando, com algumas estratégias. Diminuir o tempo dedicado a acompanhar as notícias ajudou. Começar a escrever também.

Quando falei com a Julia comentei que eu andava fazendo um diário da quarentena. Ela disse que invejava quem consegue escrever diariamente. Respondi que não faço sempre, só às vezes, mas que já ajuda. “Também, todos os dias são tão parecidos, né?”, ela respondeu.

São mesmo. Exceto aqueles que eu ganho no par ou ímpar.

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