Este é um diário da pandemia. Engraçado, não estou com
vontade de escrever esta palavra.
Esperei algumas vezes por esta segunda, com uma expectativa
de que algo extraordinário acontecesse, só porque este era o meu dia de
escrever aqui. Faz seis semanas, pelo menos, que a minha rotina mudou e por
isso, tive também pequenas surpresas, como ir de bicicleta ao supermercado e
encontrar, na volta, uma calçada vicinal tomada de butiás. Que eu recolhi,
lavei com vinagre e deliciou uma das minhas tardes de trabalho a distância.
Trabalhar no meu computador, no meu quarto, se revelou um
prazer maior do que eu poderia imaginar. Eu acompanho o ocaso do Sol todos os
dias, um banho de luz e cor na minha visão periférica, enquanto cadastro
documentos e produzo relatórios. Aprendi nos primeiros dias a não ligar a luz
enquanto a noite não chegasse por completo. Tenho visto o mundo fechar as
cortinas do dia para abrir o espetáculo da noite. Porque seis semanas de noites
estreladas e silenciosas, na sua maioria, é algo que eu só posso chamar de
espetáculo.
A vida ganhou uma dimensão cósmica, só porque eu parei de
andar de ônibus e fiquei parada o suficiente para perceber algo que o Sol e a
Lua fazem há muitos anos. Ou o que meu coração faz, sem cessar, há mais de três
décadas. Isso é extraordinário, fora da compreensão das pedras, dos
metais, do plástico.
Eu temi quando soube que teria de voltar ao trabalho
presencial. Senti a mão do destino pesando sobre meu caminho, e eu, impotente,
chorei de rosto erguido. Eu me perguntei sobre como aproveitar minha última
semana de vida, se eu mudaria algo. Fiquei feliz em perceber que eu não
precisava mudar nada. Encontrei entre meus escritos um único conto que vale a
pena, fiz uma visita rápida aos meus pais, ganhei um pedaço de panetone da minha
irmã confeiteira, toquei violão, telefonei para as amigas mais próximas, dei
mais uma volta de bicicleta e por fim, às 17 horas da sexta, fui a padaria do
bairro e comprei um mil-folhas de creme novíssimo, que comi com um café
recém-passado (grãos de Minas Gerais, meu favorito). Assim me despedi da vida.
Amanhã é o terceiro dia que tomarei um ônibus mascarada, com
meu cabelo preso num coque, carregando água e comida de um dia todo na mochila.
Tenho passado álcool gel nas mãos até para abrir a gaveta da escrivaninha. Uso
quatro máscaras durante o dia, que vão direto para a máquina de lavar assim
como toda a minha roupa logo que chego em casa.
Talvez eu esteja exagerando. Afinal, na quarta passada,
descobri que nesse tempo todo eu não limpei nenhuma embalagem dos produtos que
eu trouxe para casa. Pode estar aqui, no meu balcão de cozinha, perto dos
pratos fundos.
Se eu morrer, ao menos voltarei para a terra e serei parte
de tudo que já viveu neste planeta, como outros antes de mim. Não será o fim de
tudo. Se não, vamos a outro mil-folhas na semana que vem.
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