Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

18.5.20

Dia 62: por Cândida Castro


Este é um diário da pandemia. Engraçado, não estou com vontade de escrever esta palavra.

Esperei algumas vezes por esta segunda, com uma expectativa de que algo extraordinário acontecesse, só porque este era o meu dia de escrever aqui. Faz seis semanas, pelo menos, que a minha rotina mudou e por isso, tive também pequenas surpresas, como ir de bicicleta ao supermercado e encontrar, na volta, uma calçada vicinal tomada de butiás. Que eu recolhi, lavei com vinagre e deliciou uma das minhas tardes de trabalho a distância.

Trabalhar no meu computador, no meu quarto, se revelou um prazer maior do que eu poderia imaginar. Eu acompanho o ocaso do Sol todos os dias, um banho de luz e cor na minha visão periférica, enquanto cadastro documentos e produzo relatórios. Aprendi nos primeiros dias a não ligar a luz enquanto a noite não chegasse por completo. Tenho visto o mundo fechar as cortinas do dia para abrir o espetáculo da noite. Porque seis semanas de noites estreladas e silenciosas, na sua maioria, é algo que eu só posso chamar de espetáculo.

A vida ganhou uma dimensão cósmica, só porque eu parei de andar de ônibus e fiquei parada o suficiente para perceber algo que o Sol e a Lua fazem há muitos anos. Ou o que meu coração faz, sem cessar, há mais de três décadas. Isso é extraordinário, fora da compreensão das pedras, dos metais, do plástico.

Eu temi quando soube que teria de voltar ao trabalho presencial. Senti a mão do destino pesando sobre meu caminho, e eu, impotente, chorei de rosto erguido. Eu me perguntei sobre como aproveitar minha última semana de vida, se eu mudaria algo. Fiquei feliz em perceber que eu não precisava mudar nada. Encontrei entre meus escritos um único conto que vale a pena, fiz uma visita rápida aos meus pais, ganhei um pedaço de panetone da minha irmã confeiteira, toquei violão, telefonei para as amigas mais próximas, dei mais uma volta de bicicleta e por fim, às 17 horas da sexta, fui a padaria do bairro e comprei um mil-folhas de creme novíssimo, que comi com um café recém-passado (grãos de Minas Gerais, meu favorito). Assim me despedi da vida.

Amanhã é o terceiro dia que tomarei um ônibus mascarada, com meu cabelo preso num coque, carregando água e comida de um dia todo na mochila. Tenho passado álcool gel nas mãos até para abrir a gaveta da escrivaninha. Uso quatro máscaras durante o dia, que vão direto para a máquina de lavar assim como toda a minha roupa logo que chego em casa.

Talvez eu esteja exagerando. Afinal, na quarta passada, descobri que nesse tempo todo eu não limpei nenhuma embalagem dos produtos que eu trouxe para casa. Pode estar aqui, no meu balcão de cozinha, perto dos pratos fundos.

Se eu morrer, ao menos voltarei para a terra e serei parte de tudo que já viveu neste planeta, como outros antes de mim. Não será o fim de tudo. Se não, vamos a outro mil-folhas na semana que vem.

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