Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

20.5.20

Dia 64: por Jota Machado

Quantos dias já se passaram? Não sei...
Hoje saí de casa para atravessar a rua até a padaria em frente.
Impressão minha ou a rua está mais limpa? Quase não há carros e poucos transeuntes.
O cachorro do vizinho late insistente; digo: e aí amigão? Ele me reconhece e sacode o rabo.

O que não mudou, mesmo com a pandemia e quarentena a que nos propomos, é o garoto da outra rua com seu carro sobre a calçada, tocando aquela "coisa" que chamam música.

E vejo estranhos na rua, ou as máscaras escondem os rostos e já não reconheço ninguém.
Mas reconheci a vizinha.
Minha vizinha, parada diante de mim, na fila do pão.
Olho bem; será ela mesmo?
A todo momento passa a mão para ajeitar uma mecha de cabelo que insiste em cair sobre o rosto.
Tento não olhar, fico de cabeça baixa quase todo tempo, mexendo com as mãos.

Estou constrangido.
Aqueles olhos... aqueles grandes olhos verdes.
E aqueles cílios... Imagino nossos filhos com esses olhos.
A mesma mecha de cabelo loiro caindo sobre os olhos...
Tenho vontade de falar que tinha planos mas ela mudou de ideia; que tínhamos ideias e ela mudou de planos.

Estou parodiando alguém?

Me dói o estômago quando lembro daquele dia de chuva. Nos molhamos andando da parada de ônibus até nossa rua.
Ela disse um ‘oooooooiiiii vizinho...."; claque! Quase um desfibrilador  no meu peito.
Daí falei: chuvinha boa né? Boa pra ficar na cama vendo um bom filme.
Anhan! Pois é...
Tens planos pra hoje à noite?
Ela disse que nada, eu respondi "então tá...".
Falei: tô a fim de um cinema. Você iria se te convidasse? Ela fingindo receio: "mas você não vai tentar me agarrar?"
Mas é claro que não. Ela: "Ah, que pena..."
Sou tímido, fiquei vermelho e só não tive febre porque a chuva esfriava a minha cabeça.

Cinema vazio, cabeça cheia. Sua roupa permissiva permitiu me apaixonar.
Acabamos a noite enchendo e esvaziando taças, sorvendo borbulhas e brincando com espuma.

Lembro de sua boca me desviando dos planos de toda uma vida.

E o que parecia para sempre... sempre acaba! Olha aí meu cérebro dando um nó e plagiando alguém!
Ela pegou o táxi antes de eu acordar.

Quase morri, dias depois, quando soube que ela tinha casado, papel passado e tudo.

Vou falar!
Falar assim: depois de conhecer você, nada mais interessa.
O tempo não mais interessa então p'ra que ter pressa?
Para que caminhar pelas ruas? Para que servem as ruas?
As conversas, as fotos; as minhas e as tuas...

O silencio no quintal, as roupas no varal são as minhas, não as nossas.
Os discos empoeirados, os livros amarelados, as viagens adiadas.
Nunca as mãos dadas...
O silencio é companhia no jantar.
História não acontecida não termos nos amado
Noites em que não ficamos juntos, lado a lado deitados, as horas passando as horas, os olhos felizes, corpos cansados.

A semana toda passando; e o que viria depois da sexta? Esperava um sorriso teu logo ao acordar em plena segunda-feira.

Tenho raiva de mim mesmo e minha timidez idiota! Eu sou um idiota!
Eu seria capaz de dizer tanta coisa, mas as coisas são mais difíceis quando a gente fica sem ar.

O ar são como as palavras, no momento de nervosismo elas faltam, no auge da discussão elas somem.

Divagando cabisbaixo ouço a moça do balcão gritar: "o próximo!" O próximo sou eu.
Quase me esqueço de quem sou e o que faço aqui.

Então fico ali, estático, surdo e mudo, vendo tudo passar, vendo o tempo passar, vendo ela passar...
Quem sabe um dia você não passe; pare, sorria e me olhe com esses olhos – Ah! esses olhos – e então eu crie coragem de não ser só...

Ainda espero?
Gostaria de saber quanto tempo vai durar esta espera tão inútil.
Bom, não foi Jung que disse que a felicidade perderia seu significado se ela não fosse equilibrada pela tristeza?

Estou devaneando mas é o que sei fazer de melhor.

Quantos pãezinhos? Que voz irritante da atendente; eu acho estranho como algumas pessoas crescem e a voz continua infantil.
E lá vou eu atravessar a rua, rumo a meu bunker. Comidas congeladas, pizza congelada, Netflix, o especial do Yes pela quarta ou quinta vez.
Esqueci a máquina de lavar ligada; espero não ter escapado a mangueira e molhado todo o piso como ontem. Preciso consertar aquilo.
A pia está cheia de louça para lavar.

Acho que já são quase dois meses que voltei daquela viagem. Sim, metade de março.
Até quando isso?

Pelo menos ficando em casa tenho motivo para estar à janela, vendo a vizinha passar.

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