Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

21.5.20

Dia 65: por Rodrigo Schuster

Tomo o café sentado na varanda enquanto observo as vacas, que limpam suas penas e tentam controlar os animados bezerros que brincam eufóricos com suas recém aprendidas habilidades de voo. Enquanto meu planeta de origem está em quarentena, tenho aproveitado para visitar outros mundos, em dimensões paralelas. Conheci 33 mundos diferentes e, até aqui, esse, o décimo terceiro, é meu favorito.

Aqui o sol é verde, as vacas laranja-escuro quase ocre (a cor chama “aiotfes”, que significa “vaca”, na língua local), as ovelhas continuam com cara de idiota e bolsonaro é apenas o nome de um musgo cinza que surge durante o orvalho e desaparece nos primeiros raios de sol.

Gosto desse mundo. Descobri que nessa dimensão Hortelã é a divindade suprema e eu pareço ser alguma entidade que ela protege, ninguém sabe por que ou do quê, e já aceitei que ovelhas são idiotas em todas as realidades possíveis, paciência. Queria passar mais um tempo vendo os bezerros se divertirem fazendo novas manobras aéreas, porém Hortelã tem um reunião na cidade e preciso ir junto “para minha segurança”.

A cidade é perto, mas para não perder tempo resolvemos utilizar os TLRs (Tubos de Locomoção Rápida). A reunião parece importante, diversos cães apareceram. Hortelã deu instruções a todos e demonstrou o correto posicionamento dos gravetos. Agora, que temos tempo, decidimos não voltar pelo TLR, que, segundo Hortelinda (ela é uma divindade, tem vários nomes), resseca minha pele com o vento quente. Caminhamos um pouco e logo encontramos Jurandir, um boi amigo nosso que nos oferece carona. Eu nunca tinha voado tão perto das nuvens daqui, que são rosas porque o sol é verde e não por serem feitas de algodão-doce. Fiquei um pouco decepcionado. 

Chegamos na choupana. Hortelã se retira para atingir a iluminação e ir para o plano celestial. Nunca falamos sobre isso, mas imagino que os deveres dela no plano celestial tenham alguma relação com as reuniões matinais, pois, quanto mais agitada a reunião, mais tempo ela passa no plano celestial durante a tarde, mas pode não ser nada disso. Há coisas que um simples humano não pode entender. Enquanto Hortelã cumpre suas tarefas celestiais de Deusa Suprema do Multiverso, eu uso um TLR para ir ao centro comprar comida e encontrar alguns novos amigos. São muito práticos os TLRs: encontramos os amigos quase imediatamente, e depois entramos em outro e já estamos em casa, sem o inconveniente de perder tempo de deslocamento, durante o qual sempre lembramos de mais alguma coisa para dizer, como acontece lá no meu planeta de origem.

Parece que faleceu uma artista importante que eu, evidentemente, não conheço, e a maioria das pessoas com as quais falei também não conhecem, mas todas pareciam sinceramente consternadas. Quando um artista morre, o musgo cinza cresce nas calçadas e não some com o sol. Eu estava comendo e bebendo com uns amigos quando alguém leu uma nota de pesar sobre a morte da tal artista, era compositora e cantora, então me mostraram algumas músicas. Abraço meus amigos efusivamente, me despeço com uma quantidade exagerada de beijos que eles não entendem muito bem, caminho em direção ao TLR, nativos cantam uma das músicas que acabei de conhecer, e escaravelhos multicoloridos saem de suas tocas e devoram o musgo cinza.

Estou no sofá da choupana quando Hortihorti sai do estado de iluminação e retorna ao plano mundano.Ela se aproxima de mim com uma bolinha, para que eu corra atrás dela. Hortelã precisa fazer eu me exercitar todos os dias, para gastar energia e dormir bem. Um som forte chacoalha as janelas, e a Princesa mais Rainha de todas as Deusas manda eu me proteger. Reconheço o som do Devorador de Ovelhas, o cruel Deus principal do décimo sétimo mundo. Hortelã o rechaça com seu ataque “Fera Feroz” (ela mesma nomeia os ataques) e me avisa que posso sair: estou seguro.

Já é noite. As estrelas, lilases, brilham no céu azul-claro, as vacas formam um círculo e estendem suas enormes asas, formando uma cabana e protegendo umas às outras do sereno e do musgo cinza. Vou dormir porque amanhã a Bonitinha tem outra reunião, ainda não sei onde, mas espero que seja aqui.

Posso viajar por dimensões, conhecer mundos de diferentes tempos, em diferentes galáxias de diferentes universos. Mas só posso dormir, só pego no sono, na minha cama, do meu apartamento no meu planeta de origem.

Eu não sei onde nem quando você está lendo isso, mas no meu planeta de origem, nesse momento, a louça não se lava sozinha, cerveja engorda, um vírus está matando mais de 30 mil pessoas por semana e eu não encosto em outro ser humano há 68 dias. 

Boa noite, escaravelhos multicoloridos. Boa noite, lua rosa. Boa noite, aiotfes. Boa noite, Hortelã. Até amanhã.

"Eu vo mata o Corona" - Hortelã sobre sofá

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