Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

22.5.20

Dia 66: por Luís Felipe dos Santos

Dois João Pedro acordaram na segunda-feira, 18 de maio. Os dois precisavam ficar em casa: a escola não abria, a rua poderia fazer deles vetores de contágio. 

Os dois não poderiam sair, nem ver os amigos, nem aprender coisas novas, nem olhar para a cara das suas professoras para saber se elas estão de mau humor ou de bom humor. Não sentiriam o cheiro da cantina, também não iriam vestir uniforme. Não saberiam se o tênis deles iria apertar, se o sol seria quente demais para arregaçar as mangas da camisa, ou se o amigo iria apresentar uma coisa nova no caminho para a sala de aula.

Um deles eu conheço bem. Ele acordou, teve que fazer o seu ritual de café da manhã. A irmã, que estuda virtualmente pela manhã, já estava de pé. Almoçou um prato de yakisoba, sem legumes, a não ser alguns que o pai escondeu de forma estratégica. Tomou banho, jogou Minecraft, assistiu a uma aula por videoconferência. Descobriu mais algumas coisas novas sobre programação, correu a casa inteira enquanto assistia a um vídeo, brigou para dormir.

Eu nunca tive que enfrentar uma pandemia enquanto criança. Nem qualquer um de vocês, a menos que tenham passado pelo Congo na época do ebola. Adulto que sou, eu consigo olhar a curva do número de casos e saber da minha responsabilidade ao ficar em casa.

Fique em casa, diz a TV. O comercial. A hashtag. A celebridade. O youtuber. O filtro do instagram. O cartaz. O governante. Bem, nem todo governante.

O meu João Pedro sabe que tem que ficar em casa e usar máscara. Ele está em casa. Se sente seguro em casa. Em casa, ele não é vetor de contágio. Tudo vai ficar bem. Eu acredito. Ele também.

O outro João Pedro eu não conheço tão bem. Tudo que eu sei é que ele tinha 14 anos e que estava em casa. Ele se sentia seguro, assim como o meu. Deveria estar entediado, assim como o meu. Vivia algo inédito, assim como nós. Devia sentir saudade dos abraços, dos amigos, dos cheiros, assim como todos.

A diferença é que ele não vai poder sentir nada disso de novo, pois a polícia invadiu a sua casa à procura de bandidos que fugiram. A sua residência, onde ele se sentia seguro, onde todas as pessoas diziam para ele ficar, foi alvejada com no mínimo 70 tiros.

E nem mesmo o seu corpo ficou seguro, pois os policiais sumiram com ele e só foi encontrado 17 horas depois.

Todo dia nasce um novo João Pedro. Dependendo da cor, ele se torna um alvo. Na rua ou em casa. 

Não ser um alvo é privilégio.

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