Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

23.5.20

Dia 67: por Liége Biasotto

Antes de começar a compartilhar minhas percepções cotidianas sobre o isolamento, permitam-me que eu me apresente. Acho necessário contextualizar como era a minha vida  antes pra que se possa entender o agora. 

Sou produtora cultural, moro com meu companheiro Mateus e nossos três gatos, e minha rotina sempre foi muito ativa. Embora já trabalhasse de casa, meu dia era ocupado por diferentes reuniões e encontros, refeições em restaurantes - por não ter tempo e nem vontade de cozinhar -, academia e vida social agitada, onde a melhor parte do dia era ir para um bar, para um show e encontrar pessoas. Sempre me ocupei muito, um pouco por querer fugir da realidade, por ansiedade, pela vontade de devorar o mundo.

Mas hoje faz 65 dias que tudo mudou, virou de cabeça para baixo.

As primeiras semanas de quarentena foram difíceis. Vi vídeos de pessoas isoladas em outros países, relatando o que estava por vir. O que me trouxe pânico e, metódica e planejadora que sou, montei logo uma rotina, cheia de metas e objetivos. Comecei aulas online de yoga e de francês, me inscrevi em três cursos gratuitos online, criei um projeto pessoal para me dedicar, comecei a desenhar estratégias de trabalhos alternativos em nova versão e conceito, pensando em manter a cabeça ocupada e as perspectivas ativas.

As semanas têm passado como uma montanha russa de emoções. A euforia de preencher os dias deu lugar a um par de semanas de muito sono e depressão. Medo e desmotivação pela falta de caminhos, pela de falta de controle, por não ver mais sentido em fazer ou criar nada novo. E então chegamos no aqui e agora. Dois meses e um punhado de dias.

Faz duas semanas que não me exercito, larguei as aulas de yoga, não faço mais as aulas de francês. Um mês que não abro os cursos gratuitos e quase dois que não encosto no meu projeto pessoal. Meu tempo foi reconfigurado. Minha prioridade passou a ser as próximas horas, o hoje. E começo a gostar disso. 

Gosto das pequenas coisas. Do dormir sem despertador e ver que meu corpo acorda sozinho depois de 8 horas de sono bem aproveitadas. E não importa mais que horas são neste acordar, se é cedo, se é tarde. Saio da cama e faço meu ritual: tomo café com calma e fico procurando os cantinhos de sol pela casa. No amanhecer, pega sol no sofá da sala. Perto do meio dia, tem sol na cama e posso voltar pra lá por mais um tempinho pra ler alguma coisa. Pelas 16h, o sol atravessa o apartamento e posso pegar mais um calorzinho. 

Fazia dois anos que eu não cozinhava. Agora, é uma das coisas que mais me acolhem nesta quarentena. É como se a cozinha fosse meu espaço de criação. Abro a geladeira, vejo o que tem, o que está prestes a estragar e precisa ser cozido antes. Me arrisco a fazer uns pães. Pão leva tempo, demanda paciência. Sova, descansa, sova de novo, descansa mais. É como se o tempo do pão fosse um presente.

Esses dias, falava com uma amiga sobre como a quarentena nos trouxe conexão com a nossa casa. Descubro os cantos, os livros, os objetos, a poeira acumulada embaixo dos móveis, umas teias de aranha e mosquitos no gesso do teto. Descubro coisas que comprei há anos, nunca usei e que agora me são úteis. Utensílios de cozinha, lápis de cor, blocos e cadernos, temperos e chás que não venceram. Parece que o tempo das coisas mudou junto com o meu. 

Coisas que eu comprava uma vez por ano, passaram a ser compras rotineiras: detergente, azeite, álcool, esponja, grãos… Minha geladeira, que era descongelada semestralmente, agora pede uma atenção mensal. O gelo se forma rapidamente lá dentro, fico sem espaço para congelar minhas criações. 

Nossas saídas de casa estão cada vez mais esparsas. Começamos indo ao mercado uma vez por semana, depois a cada dez dias, a cada quinze e, agora, estamos na meta dos vinte dias. Os ranchos são maiores e estranhamente mais baratos, pois nossos hábitos de consumo também mudaram. Faço uma lista ao longo dos dias para garantir que, quando tenha que sair, não esqueça de nada. Atenho-me ao essencial, às coisas que duram mais, e faço a manutenção dos itens frescos com a feira online.

Mas o sair de casa passou a ser o auge do estresse enquanto casal. Por isso a necessidade de espaçar cada vez mais as idas ao supermercado. Quando saímos é quando normalmente discutimos. Um excesso de cuidar do outro e de paranoia. Mas ainda preferimos fazer isso juntos, dividir a busca pelas coisas da lista, ficar o menor tempo possível na rua.

Sair de casa para ir às compras essenciais necessita um planejamento. O que era tão comum e tranquilizador para mim, agora se torna um grande fardo. Precisamos já ter almoçado antes de ir, pois a função levará horas. Precisamos já ter lavado a louça para que a pia esteja vazia ao chegar. Uma pré-faxina antecede a ida ao super. Casa limpa, chão varrido. 

Quando chegamos, eu entro primeiro, sem sapatos, lavo as mãos e prendo o Madruga no escritório para que ele não fique se roçando nas sacolas. Mateus lava as compras, eu seco e guardo. Sacolinhas de molho na água com sabão e alvejante, que depois serão estendidas ao sol, secas e dobradas uma por uma. Álcool em tudo que encostamos. Roupas na máquina, banho e pano com clorofina no chão de toda a casa, a finalização da faxina iniciada. Todos limpos e assépticos. As compras, a casa e nós. Essa função nos toma um turno inteiro e nos ilude que assim estamos a salvo.

Minha rotina de trabalho também mudou. Agora, trabalho quase um turno por dia. Divido todas as tarefas da semana em pequenas porções diárias, pois o tempo de executá-las já não importa, nada é urgente. Faço pequenas etapas de cada projeto por dia. E isso já me basta. Transformei o desespero de falta de renda, que é inevitável, em resignação. Me acostumo com a ideia de viver com menos, mas com mais tempo.

A situação também trouxe soluções. Não exatamente soluções, mas tudo pode ser adiado e isso me tranquiliza. Conseguimos congelar o financiamento do apartamento e do carro por alguns meses, diminuir o valor do condomínio e o cartão de crédito, com a falta da vida social, se estabilizou. Nossos custos diminuíram para um quarto do que gastávamos anteriormente. Sei que essa conta vai voltar, algumas com novos juros, mas me atenho ao que posso controlar agora. O amanhã é o amanhã.

Só sei que me acostumo e começo a gostar dessa nova vida. Os encontros sociais passaram a ser online, estamos ainda mais conectados com amigos que não moram na cidade e nos vemos muito mais do que nos víamos antes, mesmo a quilômetros de distância. Voltei a falar com pessoas que há anos não via pessoalmente. Penso que as conexões se fortaleceram, as pessoas estão mais próximas de alguma maneira.

Ainda tem a comodidade do cansar do encontro social e ir dormir, na porta ao lado. Não precisar esperar o companheiro querer ir embora, nem pagar a conta, chamar um uber. Basta, simplesmente, trocar de cômodo e capotar, sem nem precisar trocar a roupa. Porque sim, sou daquelas que adotou o outfit moletom o dia inteiro, só mudo quando fica sujo. 

Inclusive, tenho lavado mais toalhas e panos do que roupas. Meu hábito de tomar banho também mudou. Antes ele era necessário ao acordar, para ajudar a conectar o cérebro e ficar em dia para os encontros sociais. Agora, a prioridade é dormir limpinha e quentinha. Os banhos passaram a ser à noite.

Parece que o tempo mudou, as prioridades mudaram. Mudou a percepção do que realmente é importante, quem queremos por perto. E gosto dessa ideia. Tenho medo de tudo voltar ao normal, da obrigação social, do custo de vida mais caro, da agenda cheia, da desconexão com a minha casa, da vida amortecida pelo externo. O isolamento, que chegou me tirando o chão, agora até poderia durar mais uns meses. Me sinto preparada para esperar essa tormenta passar.

O sentimento de resignação me trouxe a liberdade do tempo, a transformação do olhar e daquilo que é essencial. Espero encontrar equilíbrio na volta à normalidade, para quando o ermitão que há em mim sair da caverna, ele não esqueça que as urgências do mundo podem ser ilusórias. E lembre de limpar as teias de aranha que habitam a casa.

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