Se quiser participar, é só mandar um e-mail pra organizadora em juliadantas@gmail.com pra combinar uma data pro teu relato. Os participantes estão em Porto Alegre ou abandonaram a cidade temporariamente para a quarentena.

24.5.20

Dia 68: por André Roca

Saí para correr. Deixei o celular em casa para não cair na tentação de ligar o Strava e registrar meu crime (mas usei máscara, o que me faz um criminoso à moda antiga. Se bem que...).

Tive de intercalar, claro. Corre um pouco, caminha muito mais, corre outro pouco. Porque são sei lá quantos dias de quarentena, sem futebol, sem outras corridas, sem qualquer atividade física mais intensa fora as aulas do Filipe via Instagram, e com uma bagagem extra que já está literalmente na cara.

De casa até o Pérola Negra dá uns quatro quilômetros, pensei, e isso deve queimar alguma coisa do café da manhã e, com aquele morro no meio do caminho, talvez parte do almoço.

Foi bem nessa subida, na volta, já pensando no café da tarde, que me dei conta, pela primeira vez, que odeio correr sozinho.

Era isso! Faltava uma parceria para competir, ver quem chega primeiro, quem vai mais rápido, quem vai pedir antes para ir mais devagar.

Pensava nisso quando dois cachorros, um branco e um preto, cruzaram por mim, língua pra fora, uma cara de felicidade. Eles corriam livres, sem saber dos perigos do coronavírus. Provavelmente, competiam.

Cheguei a me virar para ver aqueles dois rabinhos abanando enquanto se distanciavam em velocidade.

Já estava no pé do morro quando uma idosa com ares orientais me interpelou:

– Moço, viu dois cachorros, um branco e um preto, passarem por aqui?

Sim, eu tinha visto. Subiram o morro. Foram em direção ao Pérola Negra. Corriam livres e leves e despreocupados. Nem devem saber da pandemia, pensei em dizer.

– Foram por ali.

Apontei. A senhorinha tinha ares muito frágeis. Começou a caminhar apreensiva, mas vagarosamente. Não chegaria nunca até eles.

Pensei nas minhas avós e em como eu gostaria que alguém as ajudasse.

– Faz assim, a senhora segue em frente, mas eu vou correndo, chego antes e seguro eles. Pode ser? Qual o nome dos dois?

E lá fui eu, correndo muito mais rápido do que antes, com uma missão a ser cumprida.

Encontrei Antônio e Joaquim já bem depois do morro. Um deles latia para uma moita, mordiscando o que parecia ser um pano enterrado. O outro, invadia as águas do Guaíba num banho de liberdade.

Chamei-os.

O preto me olhou. Rosnou. Depois latiu com ameaça.

O branco saiu da água e fez mesmo.

Os pedestres não entendiam nada, olhando um cara chamar dois cachorros por nomes de gente sem que surtisse qualquer efeito.

Eu olhava na direção por onde a velhinha deveria surgir, mas nada dela aparecer.

Os cachorros, então, resolveram seguir a corrida.

Fui atrás.

Pararam de novo.

Eu chamava.

– Joca! Antônio! Já pra casa!

Latidos e rosnadas eram tudo o que eu recebia.

Pensei de novo no prazer de competir. E na figura de um orientador. Alguém que por vezes é responsável por nos dizer que a postura está errada, que temos de aguentar mais um pouco, melhorar a passada. E que temos de ir.

Estava na hora de ir.

Peguei uma vareta na grama, tasquei uma chibatada no chão e falei ameaçador:

– Joca! Antônio! Já pra casa, agora!

Ganhei mais latidos e mais rosnadas, mas eles iniciaram a jornada de retorno.

Pude correr de novo, agora atrás deles, batendo a varinha no chão vez ou outra:

– Joca! Antônio! Já pra casa, agora!

Foi tão boa essa corrida que nem dores eu senti no dia seguinte.

Sobre a dupla? Teve uma hora em que sumiram de vista. Mas já estavam nas imediações de casa. Também não achei mais a senhorinha. Talvez ela tenha descoberto o prazer de uma competição naquele dia.

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